GUINÉ, IR E VOLTAR - II
Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)
A festa não era para ele, aquela gente toda na pista de aterragem, alguns com máquinas fotográficas, não estavam ali para o fotografar, nem para lhe dar as boas-vindas, festejava era a chegada da avioneta. Não demorou muito tempo a perceber o porquê de toda aquela agitação e da romaria em volta do aparelho. Caixas de uísque e tabaco, grades de cerveja espalhadas pelo chão e todo o pessoal a rodear um saco, o saco do correio. A pressa em abri-los, maços e maços de cartas nas mãos, Carlos Correia, Manuel Revés, ó Tomé, as mãos estendidas, estou aqui, meu furriel!
Em Cuntima, a Dornier acabada de aterrar. © Foto do autor.
É o alferes que vem substituir o Monteiro, não é? Bem-vindo a Cuntima! Um tipo de mão estendida, calções, camisa de caqui e havaianas, capitão Pato Anselmo, comandante da companhia. Estes são os seus camaradas, o alferes Adilson, mais conhecido entre nós por Didi e o alferes Ferreira, aquele ali é o doutor Lourenço, um açoriano da Terceira. Adilson, hoje já tem que fazer, trate de lhe mostrar a cidade, os aposentos do hotel onde vai ficar, a casa de banho, mostre-lhe tudo.
Cuntima com o edifício do posto administrativo à direita. © Foto do autor.
Cuntima era uma rua, casas de um lado e doutro, pintadas com a cor de muitos sóis em cima e casitas de adobe atrás. A rua, uma recta de 200 a 300 metros, era a estrada de terra que ligava a fronteira com o Senegal a Farim, cerca de trinta quilómetros, com passagem por Jumbembem, mais ou menos a meio do trajecto.
No lado nascente, em frente a um antigo celeiro, que agora era a camarata do pelotão do recém-chegado, ficava a casa do comando, com um quarto para o capitão, outro para a estação de rádio e um compartimento que servia de posto de socorros e de capela quando vinha o capelão. Duas casas depois, a messe, em tempos mais calmos, moradia de alguém importante na terra.
Era aqui que se encontravam para as refeições os alferes da companhia, o capitão, o médico e o 1.º sargento Torres, um senhor a rondar os 50 anos que se fazia acompanhar da mulher, a única senhora branca que ali habitava. À entrada, à frente do bar, o Fininho servia cerveja, uísque, leite condensado, água Perrier, por esta ordem conforme a existência, e a seguir, o que havia num frigorífico a petróleo com aspecto de já ter arrefecido o suficiente para a reforma.
No primeiro jantar em Cuntima, ficou logo a conhecer a história deles e do batalhão. Do capitão não, que se retirou cedo.
O Adilson era mais brasileiro que português, criança ainda fora com os pais para o Rio de Janeiro. Questões relacionadas com morte de familiar e heranças forçaram-no a vir a Portugal. Não havia forma de fugir, tinha que ser. E pronto, foi assim, acabou-se-me a Gávea, Copacabana, Ipanema, o Leblon, o Leme.
Didi, estás em Cuntima, uma beleza de terra também, não tem praias, mas tem bolanhas1, palmeiras, bajudas2, calor, que queres mais, o Ferreira, um tipo pequeno, olhos vivos, muito negros, ar de indiano, à gargalhada.
Dali para a frente, as conversas entre eles eram sempre as mesmas, só umas pequenas variações, um acrescento aqui ou ali. Sempre à volta do mesmo, os meses que faltavam para o regresso. Fosse qual fosse o princípio, terminava sempre na Rocha Conde de Óbidos3 e no encontro com a namorada, mulher, filhos, os pais, os amigos, a rua, o café, o quiosque.
Guiné Portuguesa? Que é isso? Nem penses, esta é uma guerra perdida! Não tenhas ilusões, isto não é Portugal, nunca foi, o Didi ansioso por passar a ideia.
Tirando a tropa, vivem em toda a Guiné para aí 50 brancos, no máximo, o resto da população são naturais da Guiné e algumas centenas de emigrantes que fugiram às secas de Cabo Verde! Quando vires a tralha a cair-te em cima, nessa altura sim, vais começar a pensar no buraco em que acabas de entrar. E toma nota, há gajos em Lisboa que engordam com este negócio, a mercadoria somos nós. Daqui a uns tempos falamos, quando estiveres mais habituado a estes calores. A minha posição é esta, muito clara, sou totalmente contra esta guerra, mas cumpro os meus deveres de oficial do Exército Português.
Depois desta introdução o Didi despediu-se e os outros mudaram o disco, começaram a querer saber novidades da metrópole.
O Tenente-Coronel de Farim insistia em ordens de saída para o mato, patrulhamentos, emboscadas, vigilância das picadas, capinagem, o diabo a sete. Saíam, claro que sim, mas via-se-lhes na cara que a vontade não era muita, as pernas, contrariadas, a arrastarem-se, em fila de pirilau4, muito chegados uns aos outros, como se assim ficassem mais protegidos. Os alferes e os furriéis já não tinham ânimo para imporem as regras de segurança. Já tinham passado por muito.
O Como, pá, o Como! Os dois feridos que tivemos mal desembarcámos! E aquela história, lembras-te Ferreira, e mais um episódio a sair aos bochechos.
Ao fim de uns dias, o alferes maçarico5 era um veterano de guerra, esteve no Como6 aqueles dias todos, os turras chateavam-no a toda a hora.
Ao jantar, à luz do petromax7, a presença do capitão baixava o tom das conversas à mesa. Era o único ali que tinha acesso aos relatórios da situação militar em toda a província. Com voz baixa, ar confidencial, punha-os vagamente em dia com o que se passava nos outros pontos da Guiné, Oio, Morés, Tite, Cantanhez, Buba, Guilege, Bedanda, Cacine, Cameconde. Flagelações, emboscadas, ataques, minas, baixas.
Numa daquelas noites, ao levantarem-se da mesa, o capitão deitou-lhe uma mão no braço, venha daí, vamos até ao posto de rádio. Uma noite linda, não? Mágicas, estas noites de África, não?
Porta fechada, viu-o estender um mapa junto à luz do petromax. As referências bem assinaladas com marcadores grossos a tinta vermelha, o dedo a apontar.
A fronteira, Cuntima aqui, Jumbembem, Farim a seguir, aqui em baixo, está a ver? Agora para cima, emboscada aqui, entre Faquina Fula e Faquina Mandinga, o dedo apontado para um ponto do mapa. Esta madrugada, neste trilho tem que lá estar entre as 6 e as 6 e 30. Preste atenção, levante-a ao meio-dia e saia da zona rapidamente. Fale com o Furriel Covas, ele trata da logística. Boa noite.
A caminho do barracão, antigo celeiro, onde pernoitava com o seu pelotão, Faquina Fula e Faquina Mandinga, nomes absurdamente estranhos, misturavam-se na cabeça com os restos da cerveja que ainda trazia de Bissau.
Pôs o Furriel Covas ao corrente da missão, pediu-lhe que fosse ele a comandar.
Era a sua primeira saída para o mato, até aí tinham sido só treinos em Mafra, Carregueira e Santa Margarida e a G3 tinha-a experimentado pela primeira vez ontem, na pista, contra as garrafas vazias de cerveja dependuradas no arame farpado.
Deixe estar, meu alferes, eu trato de tudo, fique descansado.
Na cama, nada de leituras que a lanterna estava sem pilhas. Num rádio, lá para o fundo, Bécaud cantava baixinho "Et maintenant", de outro saía música árabe e ressonava-se por ali fora com força. E Faquina Fula com Faquina Mandinga na cabeça, sempre a rodar, até adormecer.
Quando o Furriel Covas o acordou, mal se pôs a pé a cabeça voltou a rodar, ao ritmo daqueles dias. Na rua, ainda noite, cheirava a café quente, tomava-se o pequeno-almoço, pão fresco com chouriço e marmelada.
Puseram-se a andar, ainda não eram cinco da manhã. Dois guias naturais da zona abriam a coluna do grupo de combate, armas pousadas nos ombros, mãos a segurarem os canos, coronhas para trás, como quem leva um cajado. Parecia uma romaria a S. Bento da Porta Aberta, um restolho enorme, tanto barulho com os pés. Não se pode andar com menos barulho, Furriel Covas, o pessoal não pode levantar os pés em vez de os arrastar? É, poder podem, os olhos pequeninos do furriel para ele.
Tomava pela primeira vez contacto com a mata, as árvores, os ruídos, ansioso por dar atenção a tudo. Espevitou ainda mais com a floresta a acordar. São macacos-cães a ladrar, quando estivermos perto deles deixam de se ouvir. Falta pouco, é para aqueles lados, o trilho é depois daquela bolanha, ali em frente.
Pouco passava das 7 instalaram-se ao longo das margens de um carreiro, uns deitados, outros de joelhos, G3 em posição, escondidos na mata, abrigados em arbustos dispersos pelo capim e ficaram a aguardar que os turras aparecessem.
O tempo a passar, turras nem vê-los, o silêncio cortado de vez em quando por um ou outro ronco de alguém a passar pelas brasas, o sol bem alto a queimar, moscas grandes, peludas, a pousarem neles, e nem se ouviam. O Covas aproximou-se, apontou para o relógio, é quase meio-dia, hora de levantar a emboscada, vamos?
Curvado nas margens do caminho, percorreu-o com os olhos de uma ponta a outra. Viu pegadas e sinais de rodas de bicicleta.
Sim, pessoal passou aqui. Ontem, sim, pode ser, sinal fresco ainda, arriscou-lhe um milícia guineense num português difícil.
Este é um caminho que eles utilizam para introduzirem armas, comida, sei lá que mais, pensou. Só que passam aqui a outras horas, claro. E se continuasse aqui até eles passarem? Agora não, que as ordens são outras.
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Notas:
1 - Terreno alagadiço, próprio para a cultura do arroz
2 - Rapariga, donzela, moça virgem
3 - Cais da Rocha Conde de Óbidos, de onde partiam os navios com tropas para África
4 - Coluna por um
5 - Designação pejorativa que era dada aos acabados de chegar. Com o tempo passaram a chamar-se piriquitos.
6 - Operação ‘Tridente’. No Como gastaram-se 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia, 550 granadas de morteiro, 8900 rações colectivas de combate e 4000 rações individuais, no meio de 15.500 garrafas de cerveja, 22.900 litros de vinho e do fumo de 10.100 maços de tabaco.
7 - Candeeiro a petróleo.
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Os dias em Cuntima
Andamos a enlatados, lulas, sardinhas e atum, há 3 semanas sem reabastecimentos. Não há frescos, acabou a cerveja e o vinho, há batatas e arroz. A proibição é absoluta de insistir com a população para vender galináceos ou cabritos. A situação não é inédita, já ocorreu antes e houve problemas com as queixas da população.
O Didi chegou agora de férias da metrópole.
Então como está Lisboa? O que é que se diz por lá?
O que se diz por lá, pá? O que é que querias que se dissesse? Que se falasse da Guiné e da malta? Guerra é aqui, pá, lá não há guerra! Na metrópole ninguém quer saber da Guiné para nada, querem lá saber da maralha. E em Bissau é a mesma coisa, não há lá guerra nenhuma, há é lá uns gajos empregados no QG que fecham a guerra deles às 5, saltam para a piscina, jantam no Grande Hotel e o resto da noite passam-na a jogar bridge na Associação Comercial.
A CCav 489 formada na estrada que atravessava Cuntima. © Foto do autor.
Estou aqui há pouco mais de dois meses, tiros só ouvi os da minha G3, quando a estive a experimentar contra as latas e garrafas, junto ao arame farpado.
Até agora tenho tido uma vida pacata, sem problemas. A calma é que é excessiva, pesa um bocado. Do posto de radio ouvem-se comunicações de várias unidades próximas relatando a ocorrência de rebentamentos de minas, contactos com a guerrilha, mortos, feridos evacuados.
Isto é mesmo um intervalo na minha vida, passo os dias a olhar para a rua cheia de pó, o nariz cheio de catinga8, o ar abandonado de todos, tudo precário.
Poço de água aberto pela Companhia. © Foto do autor.
Há dias dei por mim a lembrar-me de qualquer coisa que, em tempos, li sobre a entrada do Exército Português na 1ª Grande Guerra. O entusiasmo dos políticos, Portugal não pode ficar de fora, Portugal tem que fazer parte do esforço na guerra contra os boches, não pode deixar de pensar nas colónias, como então chamavam a estas terras. Depois, mal equipadas, mal armadas, desfalcadas de oficiais, as forças portuguesas ainda enfrentaram a falta de rendição das tropas na frente de batalha. De 9 para 10 de Abril, exactamente no dia em que iam ser rendidas, um ataque alemão pôs fora de combate o corpo expedicionário português. O aço alemão vinha de todo o lado às toneladas, as nossas tropas defenderam-se como puderam, mas não conseguiram evitar o desastre de La Lys.
Quem pagou? As tropas, claro. Um massacre9, os gases, as amputações, as vidas desfeitas. Depois despacharam-nos para a terra, umas lápides nas casas de alguns que morreram, nomes em ruas e monumentos a enfeitar praças de cidades, e depois nunca mais quiseram saber deles. Vai acontecer-nos aqui o mesmo? Talvez não, os turras também não são os boches, pelo menos ainda.
Quantos dias faltam para a gente se ver livre desta merda? É o que se ouve a toda a hora, estendidos nas tarimbas, mosquiteiros fechados, uns por cima dos outros, falam alto das amizades, da velha mãe, do pai seco da fome, da jovem mulher a labutar como uma moura, dos filhos que vêem crescer nas fotografias, de tudo o que deixaram no Alentejo10 deles.
Grupo de combate com o antigo celeiro que lhes servia de camarata, atrás. © Foto do autor.
Depois de jantar uma sopa com batatas, arroz e uma rodela de chouriço, papaia e manga, sentamo-nos um pouco nas traseiras da casa que nos serve de messe, a olhar as estrelas. O calor sente-se, a humidade escorre pelo peito, pelas costas, todo o corpo escorre água. É tempo de aguardar que refresque um pouco antes de ir dormir. Ficamos ali, calados, a ouvir os ruídos da mata que nos cerca. Custa-me entrar no celeiro, dou a volta por fora, sento-me nas traseiras, num cadeirão de madeira, com a mata em frente. Olho o céu com tanta luz que nem preciso da lanterna.
Lembro-me da Barca do Lago, do rio Cávado a correr devagar, sem vontade de se perder no mar, dos tempos de ontem, de há 3 meses só, à espera que as conversas dentro do barracão esmoreçam. A sentinela ao meu encontro, olhos na escuridão da mata em frente, a lua africana, um disco de luz a bater-lhe, a recortar-lhe os traços.
A gente, mê alferes, quando chega fica assim, mais saudosa, depois, com o tempo, habitua-se, também não tem outro remédio, não é?
É melhor nem falar, mostrar só um sorriso, tenho medo do que diga, de mim próprio até.
Já nada se ouve, apenas o sono. Acordo dos pensamentos, amanhã não tenho trabalho, é o meu dia de folga. Como se aqui houvesse dias de trabalho e de folga, mas enfim, levantar-me-ei mais tarde, puxarei a corda do regador, a água duma vez por mim abaixo, rexina, água outra vez no regador, corda nele, secar, fresco para o almoço, limpo deste suor pegajoso, disposto a aguentar os queixumes do capitão à mesa.
O senhor é profissional, ofereceu-se voluntário, foi para cavalaria, a especialidade de carros de combate vê-se aí no seu peito. Essas queixas não têm razão de ser na sua boca, apetece-me dizer-lhe. Sei que estou errado, ele é novo como nós, nem trinta tem, também tem direito a dizer mal disto.
Faz-me bem escrever, às vezes não consigo, saem-me palavras sem nexo.
Tenho pensado muito, o ambiente é propício. Espero dias mais claros, menos nevoentos.
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Notas:
8 - Dizia-se do suor característico dos nativos. Estes, por seu lado, diziam que branco cheirava a morto.
9 - Entre mortos, feridos e prisioneiros, o corpo expedicionário português sofreu mais de 7 mil baixas, sem contar com as registadas em África, onde só em Moçambique morreram 4811 militares. Notas recentes indicam que as baixas atingiram cerca de 36% dos mobilizados.
10 - Os soldados e cabos do BCav 490 eram, na sua maioria, originários do Alentejo.
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As noites
Ao fim do dia havia que preparar os petromaxes e acendê-los. Equipas deslocavam-se até ao arame farpado, conferiam as protecções, depois juntavam-se para jantar. No fim ficavam por ali um pouco à conversa até o amanhã de um e depois de outro. As noites entravam rápidas, o silêncio chegava com a noite, entrecortado por uma ou outra fala mais alta que logo esmorecia enquanto, de vez em quando, o vento trazia dos lados da fronteira os tantans de batuques de algures do lado de lá.
Dentro do celeiro, pelo meio dos beliches, orquestra a sono solto, madrugada ainda a meio. Portão entreaberto, o céu a brilhar de pontinhos. Noites como aqui, com tanta luz, parece dia! A casa do capitão em frente, os alfas rómios da casa do rádio a ouvirem-se, aroma a café a vir de lá. Uma novela no quarto de banho do capitão, Capricho ou parecida. Na volta, outra vez o céu, bocados de estrelas a caírem.
As matas, escuras, misteriosas, rodeiam todo o aquartelamento-povoação.
Quando se lembrarão eles de vir até cá? Se soubessem como era fácil, todos a dormir agora, bastava chegarem-se, sorrateiros, escondidos pelo matagal, espiar o movimento das sentinelas, evitar os petromaxes, colados ao chão, devagar a caminho do celeiro, a curta distância, cem metros chegava. Dedos com vontade no gatilho, entrarem, uma chacina nos tugas. Se não tivessem medo também. Algum dia vão perdê-lo.
De novo na cama, a vontade de dormir a ir-se, as recordações a virem. O comboio da linha de Sintra, a chegada à Amadora nas horas de ponta, centenas a saírem, todos com pressa, a desaparecerem nas ruas, depois nas casas, as luzes a acenderem-se, o vento a dar, as praias de Oeiras, Carcavelos, a areia do Guincho pelo ar, e o vento a levar-me por aí acima até ao Porto, à estação de S. Bento, o passeio das Cardosas, a Avenida dos Aliados, os Clérigos, a ver o eléctrico, o 6, a subir para os Leões, o Hospital de S. António, a Aníbal Cunha, a Carvalhosa, o ardina a apregoar olhó Popular Diário, a subida da Oliveira Monteiro até ao Carvalhido, as ruas, os quiosques.
A circunvalação, a via Norte, a recta do Mindelo, Modivas, sempre a subir até Vila do Conde, terra linda, a Póvoa do Varzim, os banhistas com os sacos às costas, toalhas coloridas debaixo dos braços, a estrada para Viana, Aver-o-Mar, o cheiro da casa dos frangos, tão bons não havia, a Apúlia por fim.
E o sossego daqueles fins de tarde do último Setembro na praia dos sargaceiros, as marés cheias por volta das sete, ondas enormes, certinhas como um compasso, os mergulhos com o André, o Eurico, o Beleza. O regresso a casa, bicicleta nos caminhos pelo meio das latadas das uvas americanas, a secar ao vento, a chegada a casa, o Sol a pôr-se, a mãe à espera, a estas horas, só agora?
Aqui não há mar, jornais da metrópole há, de há semanas, rodam entre todos, a Bola, o Eusébio, o Coluna, o José Augusto, o Pedroto, o Virgílio, o Vicente, o irmão do Matateu, o Costa Pereira a defender fora da área de cabeça, em mergulho, no estádio 28 de Maio em Braga, nunca vira uma defesa assim!
E como é que ela vai reagir à carta? Que ideia, pedir-lhe que o considerasse agora mais que um amigo, estivera com ela mais de duas horas da última vez, não lhe dissera nada, nem um sinal lhe dera. Tão longe, tanto tempo à frente, tão nova ainda, tanta vontade de ir aos bailaricos da queima, em casa das amigas, nas festas familiares. Que absurdo! Que ousadia também! O amor a dar-lhe tão súbito, tão fulminante, talvez por estar longe, ou quem sabe, só uma correspondência que sempre lhe daria jeito, uma madrinha de guerra talvez, com notícias diferentes, da metrópole.
Uma rajada comprida vinda de muito longe entrou-lhe pelos ouvidos dentro. Olhos mais que arregalados, o salto de gato da cama.
Queria gritar outra coisa, saiu-lhe pessoal aos seus lugares, lembrou-se logo do cobrador das camionetas do Marinho em Braga, nada que se parecesse com um grito de guerra. Se calhar, por isso ninguém saiu, só ele. Em voo pelo buraco aberto na parede das traseiras, a pancada na cabeça, um estrondo enorme, estrelas a brilhar mais que as do céu. Finalmente cá fora, a mão na cabeça, o sangue a escorrer, pronto, fui atingido, logo à primeira.
Silêncio, ninguém para o socorrer, só a sentinela a chegar-se.
Pareceu-me ver umas luzes suspeitas ali da mata, mandei para lá uma rajada. Alarme falso, afinal deviam ser pirilampos. Temos que estar sempre atentos!
Sangue na cabeça? O meu alferes bateu com a cabeça na parede, ainda não está calhado com o buraco, é o que é.
Posto de Comando e posto médico. Doentes que aguardavam a consulta. © Foto do autor.
Posto médico, manhã cedo, com nativos da tabanca e outros vindos do Senegal em fila para a consulta, o médico a atendê-los, cheio de paciência, para um ora abre a boca, diz aaah, outra vez, aaah, o enfermeiro com a mão num frasco enorme, comprimidos, drageias, cápsulas, todas as cores da paleta, dá-lhe duas dessas, outra dessa cor, amanhã se não estiveres melhor vai ao feiticeiro.
O que estás aqui a fazer? Praxado esta noite, ah?
(Continua)
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Nota do editor
Primeiro poste da série de 28 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14803: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (I Parte): Introdução, Dedicatória e A Caminho
1 comentário:
Escrita excelente, meu caro Briote,com todo a nossa original, estrafegada experiência e sentir, lá dentro.
Não passámos em vão pelas terras da Guiné.
Abraço forte,
António Graça de Abreu
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