sábado, 19 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15510: Memória dos lugares (326): Fui destacado várias vezes para o Depósito Disciplinar no Forte de Elvas. Subia e descia o morro a cavalo e dormia lá quando calhava ser oficial de serviço (Marques Leandro, ex-Tenente Miliciano, 1953/55)

1. Comentário, deixado no Poste Guiné 63/74 - P10734: Memória dos lugares (197): Elvas, património mundial da humanidade - Forte de Nossa Senhora da Graça (ou Forte Lippe) - A barrilada (António José P. da Costa), pelo nosso leitor, José Manuel Marques Leandro1, ex-Tenente Miliciano, que entre outros quartéis conheceu, nos anos 50, o Forte de Elvas.

CAROS AMIGOS
Não fiz parte do vosso batalhão, mas admiro-vos. Prestei serviço militar como oficial miliciano de cavalaria no ex-Regimento de Lanceiros 1 em Elvas nos anos de 1953, 1954 e 1955.
Fui destacado várias vezes para o Depósito Disciplinar no Forte de Elvas. Subia e descia o morro a cavalo e dormia lá quando calhava ser oficial de serviço.
Há dias enviei um texto2 sobre essa minha experiência ao Senhor Presidente da CM Elvas que muito amavelmente me respondeu que esse texto seria integrado no site do Forte da Graça. Ali conto peripécias no Forte, na barrilada, na cidade e em Badajoz onde folgávamos a nossa juventude. Vi a vossa fotografia da barrilada. Confirmo.
Peço-vos que me cedam essa foto o que desde já muito agradeço3.
Solicito resposta para o endereço que indico.

Desejo a todos Boas Festas com um abraço.
JM Marques Leandro

************

2. Entretanto recebemos o texto que agora publicamos


Trunfo era espadas

O Exército não me dispensou logo que terminei o curso em 1953. Eu e a maior parte dos meus colegas fomos incorporados nas Forças Armadas, na Escola Prática de Cavalaria, então em Torres Novas, para ali frequentarmos o curso de oficiais milicianos. Depois, já como oficial, mandaram-me para o Regimento de Lanceiros 1, em Elvas. Nesse tempo, Elvas ficava muito longe de meus pais e a tropa não concedia facilidades, de modo que raramente ia a casa. Contudo, foi um período de que guardo boas recordações. O Alentejo ficou para mim a região de eleição. O Alentejo, Badajoz e as espanholas. A guerra civil em Espanha tinha terminado havia menos de vinte anos, tempo insuficiente para curar feridas e nós bem sentimos isso. Sentimos quando nos contavam os horrores dessa guerra, principalmente, a queda de Badajoz perante as tropas de Franco, em Agosto de 1936. Nessa altura, centenas de habitantes de Badajoz, fugindo aos bombardeamentos e à irracionalidade da guerra civil, atravessaram a fronteira e espalharam-se pelas planícies do Caia. Deste lado, essa gente foi internada no Forte da Graça, fortaleza no cimo de um morro que domina a cidade. Entretanto, o regime de Salazar entendeu-se com o regime de Franco e as pessoas internadas no Forte da Graça foram devolvidas a Badajoz. As camionetas espanholas que as transportavam despejavam-nas na praça de touros e ali eram fuziladas. Um major do meu regimento era nesse tempo alferes e fora encarregado de ir a Badajoz colher informações. Assistiu a fuzilamentos, mas nada podia fazer para evitar o massacre. No meu tempo de tropa, muitos habitantes de Badajoz não esqueciam isso e, sabendo que nós éramos militares, recebiam-nos com alguma animosidade. O que nos valia eram os militares da cavalaria espanhola sediada em Badajoz, os jovens espanhóis e principalmente as espanholas, que nós presenteávamos com pacotes de café, produto muito apetecido em economia depauperada pela guerra. O Forte da Graça, no meu tempo, era uma prisão militar e os oficiais do quadro permanente não paravam lá quando destacados para a guarnição, de modo que o comando territorial ordenava o destacamento de oficiais milicianos do meu regimento para ali prestarem serviço. Fui sujeito a esse destacamento várias vezes. Subia e descia a cavalo o morro íngreme do forte. Dormia lá quando me calhava ser o oficial de serviço. À tardinha, chegavam novos militares presos que marchavam a pé durante vários quilómetros a partir da estação do caminho-de-ferro, cada um deles escoltado por um cabo e dois soldados.

Forte da Graça - Elvas

Os militares marinheiros tinham mais sorte, eram transportados em viaturas da Marinha. Também havia oficiais e sargentos presos no Forte. Os oficiais e só esses, mantinham o direito a continências e honras militares. No Forte não havia água canalizada. Todos os dias, de manhã e à tarde, organizava-se uma coluna de vinte ou trinta soldados e marinheiros presos, com barril de madeira de vinte litros às costas e escolta à vista. Desciam o morro, enchiam os barris em fonte improvisada e regressavam ao Forte, carregando a água. Trabalho penoso, trabalho forçado! Alguns dos militares integrados nessas colunas tentavam fugir e vários conseguiam. A escolta dava muitos tiros, mas não acertava em ninguém. Confidenciavam-me que não acertavam porque não queriam. Cada fuga ou tentativa de fuga era uma carga de trabalhos para o oficial de dia que era obrigado, imediatamente, a tomar providências para a captura, lavrar autos, fazer inquérito, eu sei lá!

A barrilada

Nesse tempo, trunfo era espadas. Os militares é que suportavam o regime, de modo que tudo era mais ou menos militarizado. A Cidade de Elvas era um modelo dessa cultura. Centro urbano sem grande expressão demográfica, mas com grande concentração de tropas, por causa do inimigo espanhol, troçávamos nós. A cidade tinha um estatuto especial na orgânica do Exército. Designava-se Praça Militar de Elvas. Tinha um governador militar, integrava vários regimentos e serviços. O Forte de Elvas, então prisão, tinha também alguma autonomia honorária, como Governo Militar do Forte de Elvas, no meu tempo personalizado por coronel de cavalaria na reserva, bem conhecido na cidade pelo seu aprumo militar e farda permanente e integrava uma prisão militar designada Depósito Disciplinar. Organização militar sobrante das preocupações de Salazar durante a 2ª guerra mundial, 1939 – 1945, quando se tomaram providências em face de iminente invasão por Espanha aliada à Alemanha, o que, felizmente, não aconteceu. Havia o culto das fardas e os civis iam adoptando essa cultura. Recordo que eu e os meus colegas, quando chegamos a Elvas, entramos sem farda no Clube Elvense para o visitarmos, porque sabíamos que ali era o local de frequência das elites da terra. Fomos bem recebidos por um director que nos convidou a associarmo-nos aquela instituição. Como nos interessava frequentar os bailes e outras diversões, aceitamos os impressos-propostas para associados, mas o tal director perguntou se todos nós éramos oficiais. Dissemos que todos menos um, esse era sargento miliciano, embora com curso superior. Então ele esclareceu que os oficiais poderiam ser sócios, mas não o nosso companheiro sargento. Perante isso, recusamos a inscrição e manifestamos a nossa surpresa pelo facto de um clube civil adoptar praxes militares. Ficamos queimados naquela sociedade elvense e fomos criticados, já no quartel, por alguns oficiais do regimento. Foi bom assim, porque isso soube-se na cidade, o que levou o Grémio, instituição não elitista, a eleger-nos amigos e frequentadores especiais. E gozamos bem essa facilidade.

Terminei o serviço militar em Abril de 1955.

Marques Leandro
____________

Notas do editor

1 - Licenciado em Gestão e Administração Pública pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, trabalhou em Angola, onde nasceu, e continuou a sua carreira na Administração Pública até se reformar na Inspecção Geral de Finanças. Foi Secretário de Estado da Administração Regional e Local dos III e IV Governos Constitucionais chefiados, respectivamente, pelos Eng.º Alfredo Jorge Nobre da Costa e Prof Dr Carlos Alberto Mota Pinto. Foi ainda dirigente da ARCIL (Associação para a Recuperação de Cidadãos Inadaptados da Lousã).

3 - O editor enviou em devido tempo a foto da "barrilada" ao Dr. Marques Leandro

Último poste da série de 7 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15453: Memória dos lugares (325): Cabo Verde, Ilha de São Vicente, Mindelo: o N/M Uíge em janeiro de 1967, no meu regresso a Lisboa (Virgínio Briote, ex-alf mil cav, CCAV 489, Cuntima; e ex-alf mil comando, cmdt do Grupo Diabólicos, Brá, 1965/67)

2 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Creio que os barris da "barrilada" não iam totalmente cheios, mas quase.
O transporte era dificultado não apenas pelo peso, mas pela movimentação da água dentro dos barris.
Tenho ideia de que acabou quando foi denunciado num programa da BBC.

Um Ab.
António J. P. Costa

Anónimo disse...



Uma bela descrição que nos transporta a uma época em que se enalteciam as virtudes militares e a sociedade dos homens era toda bastante militarizada, começando na Mocidade Portuguesa e acabando na Legião , para lá das Forças Armadas, os principais defensores das virtudes e valores pátrios (e do regime também).
Camarada Marques Leandro, doutra geração, pessoalmente sinto-me muito grato e honrado, por te teres lembrado de nós. Escreve mais textos pois deves ter muito para contar e sabes fazê-lo com arte. Um Bom Natal e Boas Festas.
Um abraço. Francisco Baptista