Quadragésimo terceiro episódio da série "Libertando-me" do nosso
camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 10 de Novembro de 2015.
...Pois se não viste, vê!
Já lá vão mais de trinta anos, muito perto dos quarenta,
recebemos uma mensagem daí de Portugal, a dizer que o pai
Tónio estava doente, depressa fizemos tudo para o ir ver,
sobretudo, mostrá-lo ao nosso filho, pois em todas as
conversas que tínhamos sobre ele, sempre falávamos
dele como um “heroi”, não sabia ler ou escrever, assinava
de cruz, mais tarde, desenhava o seu nome, criou a sua
família, alimentando-a à base de uma agricultura
artesanal, deixou os filhos irem à escola do Adro, em
Águeda, tinha coragem para ser do “contra”, fazia favores
aos vizinhos, por vezes dava o último bocado de broa a
um cigano ou qualquer pobre que por lá passava, sempre
com um sorriso naquele rosto com a pele morena e
encorrilhada, do sol ou chuva que recebia, pegando numa
enxada o dia inteiro, onde aquela boina preta, que
encobria um olhar de sofrimento, lhe dava um ar de
pessoa honesta e amargurada, sobrevivendo numa
sociedade complicada, sempre contrariado quando descia
à vila de Águeda, onde alguns invejavam a sua coragem e
outros o desprezavam, porque eram beneficiados pelo tal
sistema e viam naquela simples personagem, uma negação às benesses com que eram contemplados.
Portanto, depois de tudo o que lhe dizíamos, no
pensamento do nosso filho, ele, o pai Tónio, era um
“herói”. Na nossa viajem “à pressa”, levámos o nosso
filho a ver o avô Tónio, o seu “herói”, fomos os dois, ia
pela nossa mão, desembarcámos em Lisboa, tomámos
um táxi para a estação de Santa Apolónia, trajecto que
conhecíamos do serviço militar, lá indo no comboio rumo
ao norte, era depois da Revolução do 25 de Abril, em todo
o lugar por onde passávamos viam-se cartazes
retratando um militar com uma multidão a apoiá-lo,
ao ponto de o nosso filho nos questionar se a figura
representada no cartaz, era o avô Tónio, o seu “heroi”.
Em Águeda, além da família, convivemos com muitas
pessoas e um companheiro que tinha sido nosso amigo,
mas agora era “representante do povo”. Ao ver-nos,
sabendo que éramos emigrantes nos EUA, logo nos
questionou:
- Então, estás nos Estados Unidos, de lá, no sul, existe
algum local onde se pode ver a ilha de Cuba?
E, com uma expressão que não enganava, pois era
mesmo provocativa, rematou:
- Tu já viste, pois se não
viste, vê, é lá, naquela ilha, naquele líder que está o
futuro.
Nós ouvimos, lembrámo-nos de que não respondemos,
pensando que aquelas palavras, vindo da boca de um
amigo, que naquele momento, parecia se ter tornado
num inimigo feroz, valiam o que podiam valer, no entanto
muitos anos passaram, quis o destino que viéssemos viver aqui para a Flórida, portanto, talvez seguindo a
recomendação do nosso amigo, que parecia ser nosso
inimigo, “representante do povo” e, segundo viemos a
saber, não exerceu por muito tempo a tal “representação”, pois pouco tempo depois abandonou o
mandato, emigrando “a salto” para França, talvez
desolado por todas as manhãs ao sair de casa ver que a
sua rua continuava com o mesmo aspecto. Disse-nos
mais tarde a mãe Joana que queria exercer o tal poder,
mas em seu benefício, pois das primeiras decisões que
quis tomar, após a sua eleição, foi querer alargar a rua em
frente à sua casa, roubando o terreno dos seus vizinhos,
alargando e beneficiando a frente da sua casa, o que não
conseguiu, pois o tal “seu povo”, não concordou.
Enfim, pequenas “coisas da revolução” que podem ser
consideradas normais, em qualquer revolução, em
qualquer país, mas vamos em frente, contando coisas
daqui.
Como dizíamos, talvez seguindo a sua
“recomendação”, um dia pela madrugada, um pequeno
farnel na caixa frigorífica, eis-nos na estrada rápida
número 95, no sentido sul, em direcção à área das
“Florida Keys”, que é um conjunto de ilhas ligadas por
pontes, algumas com quilómetros de extensão, que
começa na ilha de Key Largo, passando por muitas outras
mais pequenas, onde as principais são as ilhas de
Islamorada e de Marathon, terminando na de Key
West.
Levámos as canas de pesca, fomos parando aqui e ali,
vendo vestígios de tempestades, em alguns locais o mar
parecendo um rio, em outros, correntes fortes saindo
Golfo, levando areia e ramagem em direcção ao sul, até
que chegando ao nosso destino, parámos na ponta final,
na ilha de Key West, onde além de muitas outras
atracções existe um marco histórico identificando o local
como que estando a 90 milhas, (140 Km) de Cuba, onde
alguns naturais dizem que com o tempo limpo, com o
auxílio de uns potentes binóculos se pode ver uma
nuvem, que é a ilha de Cuba.
Mas Key West é uma ilha cujas dimensões têm
mais ou menos 6,5 Km de comprimento por 1,5 de
largura, onde a Duval Street é a típica “main street”, ou
seja a rua principal, com quase 2 quilómetros,
atravessando 14 pequenas ruas que vêm do Golfo, onde
a água é calma e quente, até ao oceano Atlântico, onde a
água se caracteriza pela sua cor azul, com muitas zonas
onde existe vegetação submarina, com algas a saírem à
superfície, desprendendo-se do fundo do oceano, vindo
dar à praia.
Nestas 14 pequenas ruas, assim como na avenida
principal, existe todo o tipo de atracções, desde as casas
de personagens famosos que por aqui viveram em
determinado momento da sua vida, como os antigos
presidentes dos USA, Harry Truman, Franklin D. Rosevelt,
Dwight D. Eisenhover ou John F. Kennedy. Um lugar
bastante visitado é o que foi a residência de Ernest
Hemingway, onde viveu e escreveu o famoso livro
“Farewell to Arms”, onde contam as mais mirabolantes
histórias deste famoso escritor que adorava visitar o bar
da esquina, que ainda se chama ”Sloppy Joe’s Bar”, onde
ainda se serve uma bebida composta de rum e coca-cola,
ou seja a união do continente USA com as Caraíbas!
O pôr-do-sol é muito apreciado nesta área,
proporcionando excelentes fotos, onde as palmeiras e
outras ramagens tropicais servem de fundo, em contraste
com com a cor avermelhada do horizonte, principalmente
para o lado da ilha de Cuba. Também por aqui existe um
razoável porto de mar, onde o primeiro navio de cruzeiro,
que se chamava “Sunward”, aqui atracou no ano 1969 e
onde hoje fazem regular visita as companhias de
cruzeiros: Royal Caribbean, Magesty of the Seas ou a
Carnival Fascination.
O local mais visitado, e onde se tiram mais fotos, onde em
alguns dias a fila se prolonga por algum tempo,
principalmente quando chegam barcos de cruzeiro, é o
marco histórico assinalando as 90 milhas de Cuba,
erguido em 1983, pintado com cores distintas e com os
dizeres já famosos, que são: “Southernmost Point
Continental USA”, ou seja, ponto mais ao sul do
território do Estados Unidos. Outras atrações podem-se
considerar única e simplesmente admirar as casas, os
seus telhados, no histórico distrito, onde as estruturas de
casas de madeira, com um ou um e meio andares, com
datas de 1886, se distinguem por serem construídas
sobre estacas de tronco de árvores, sobre a água, com
varandas e passeios em frente das casas, que nos fazem
lembrar um quadro pintado.
Embora indo um pouco longe na dimensão do
texto, não queremos terminar o mesmo sem vos dizer
que esta ilha em tempos pré-colombianos, era habitada
pelo povo “Calusa”, que foi um povo que entrou no que é
hoje a Florida há alguns milhares de anos, onde o clima
tinha alcançado as condições actuais e o mar tinha subido
para perto do que é hoje o seu nível actual e as pessoas
começaram a viver em aldeias perto de zonas húmidas,
locais favorecidos, que provavelmente foram ocupados
por várias gerações, onde as pessoas apreciavam viver,
ocupando ambas as zonas húmidas, mas com água doce
e salgada, onde por séculos, a sua dieta ficou
dependente, principalmente de peixe, marisco ou aves,
vivendo em grandes aldeias, com montes de
terraplanagem, construídos de propósito, às vezes
formando pequenas ilhas, onde além de outras
ocupações, começaram a criar a cerâmica queimada no
fogo, onde se foi desenvolvendo uma cultura regional
muito distinta.
Tudo isto até que por aqui chegou a primeiro europeu,
que foi Juan Ponce de Leon, por volta do ano de 1521,
tornando-se imediatamente num território espanhol, como
uma aldeia de pescadores e de salvamento, com uma
pequena guarnição para sua defesa. “Cayo Hueso” foi o
seu nome original em espanhol e as pessoas de língua
espanhola ainda hoje usam este termo para se referir à
ilha de Key West. Este nome significa literalmente “ilhota
óssea”, mas na verdade é uma ilha baixa, com alguns
recifes, dizendo-se hoje que a ilha estava coberta com os
restos de ossos de habitantes nativos anteriores, que
usavam a ilha como um cemitério comunal. Um pormenor
importante é que esta ilha, naquele tempo, foi por muitos
anos a Key (em inglês chave), portanto a chave
ocidental, como um suprimento confiável de água.
Em 1763, quando a Grã-Bretanha assumiu o controle da
Florida, a comunidade de espanhóis e nativos americanos
que aqui viviam, foram transferidos para a aldeia ou porto
de Havana, na ilha de Cuba, mas a Flórida retornou ao
controle Espanhol 20 anos mais tarde, no entanto já não
houve reassentamento oficial da ilha, pois informalmente esta foi usada pelos pescadores de Cuba, Britânicos e
mais tarde os USA, após a sua independência, o que quer
dizer que enquanto reivindicada a sua soberania pela
Espanha, nenhuma outra nação exerceu o controlo sobre
esta comunidade, por algum tempo.
Voltando ao tempo de hoje, também existe a parte
moderna, já com centros comerciais, restaurantes e hotéis
“temáticos”, onde nós, na nossa infinita ignorância,
perguntámos o preço de uma dormida e, talvez por ser à
última hora, sem marcação prévia, nos disseram que
estavam superlotados, mas por sermos seniores e talvez
“boas pessoas”, nos arranjariam um confortável quarto,
pagando somente à volta quatro centenas de dólares por
uma noite.
Companheiros, depois de terem a pachorra de lerem tudo
isto, talvez já se estivessem esquecido se o pai Tónio
sobreviveu, sim, sobreviveu e mais tarde veio aqui ver-nos,
andou por Nova Iorque com a mesma boina na
cabeça, viu a Broadway, foi ao cimo das torres gémeas,
tirou fotos na Manhattan Bridge, comparou o rio Hudson
ao rio Águeda, queria descalçar as botas, pois estava
muito calor e queria refrescar-se. Entrando no lago que
existe no Central Park, e apesar de levarmos as
canas de pesca, não tivemos lá muita sorte na “pescaria”,
e claro, da próxima vez que pensarmos em ir a Key West,
vamos levar a caravana, pois derivado ao elevado preço
que se pratica lá, viemos dormir à cidade de
Miami, por os normais $69.99, com direito ao pequeno
almoço.
Até qualquer dia, de novo em viagem.
Tony Borie, Novembro de 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 8 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15340: Libertando-me (Tony Borié) (42): As Regras da Escola
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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