segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15373: Notas de leitura (776): Reler Álvaro Guerra: “O Capitão Nemo e Eu” (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
O melhor é estar sempre disponível para um achado precioso, encontrar um livro que vale a pena reler sempre, num caixote de saldos, e numa livraria que nos marca a existência, a Assírio e Alvim, na Rua Passos Manuel, em Lisboa.
Não é uma narrativa fulgurante, arrebatadora, mas tem lá, a páginas 84, a grande frase de literatura da guerra, aquela começa assim: "Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me da fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical...".
Obrigado Álvaro Guerra por nos teres incluídos a todos nós.

Um abraço do
Mário


Reler Álvaro Guerra: O Capitão Nemo e Eu

Beja Santos

Li e reli esta soberba narrativa de Álvaro Guerra sempre em cópia, nunca tivera acesso ao livro. Eis que num caixote de saldos na Livraria Assírio e Alvim encontro-o, logo em primeira edição, mesmo um pouco esmurrado e sujo. E que prazer, voltar a um livro de 1973, devidamente encriptado para que a censura não lhe metesse a gadanha, tendo no arranque uma citação de “20 mil léguas submarinas”, de Júlio Verne: “Portanto, à pergunta feita, há seis mil anos pelo Eclesiastes – Quem pôde jamais sondar as profundezas do abismo – dois homens têm agora o direito de responder. O capitão Nemo e eu”.

O livro dispara com uma das melhores páginas de Álvaro Guerra:  
“Que perdi a memória – dizem. E logo dão o nome a esta imunidade que pretendem retirar-me. Dizem isso com precaução e manha como se quisessem disfarçar o despeito. Defendo-me. Só agora, na metade do tempo em que a droga do sono se esgota e sei que é meu o que me circula nas veias, só agora me visito: primeiro, o estojo duro e branco que esconde o grande golpe na coxa direita, as ligaduras que encontro ao passar a mão pela testa. Também procuro os resíduos invisíveis das anestesias e só me revelo um estranho gosto na boca”.

Álvaro Guerra combateu na Guiné logo no início da guerra, regressou ferido e foi estudar para Paris. O conjunto das suas obras até este livro de 1973, mesmo que esparsamente, reflete sempre as vivências do território onde combateu. Não foi por acaso que toda esta seção do romance ele lhe chama sono, sonos, há mesmo delírios, vultos mal definidos, sons híbridos. Está hospitalizado, e regista o que lhe vai entre a memória e o clarear do real, na estrita dependência em que se encontra: “Devo sujeitar-me aos horários dos remédios, às injeções, a ser colocado sob as placas de vidro dos aparelhos de radiografia e ao emaranhado de fios presos à cabeça através dos quais é possível ler o meu cérebro…
… sentado junto do Cherno e dos homens grandes da tabanca, à volta da fogueira, mascando cola, rodeado por todas a estrelas e astros conhecidos e desconhecidos, no planeta Terra, mais ou menos a 12º de longitude norte e 17º de latitude oeste, olhando as chamas e dizendo – tanaala? nobadeá? A quem se chegava ao nosso fogo e, enquanto ouvia a litania das respostas – djam tu, djam tu, djam tu – murmurava ‘kodé dadi’, que é uma forma de pensar que as estrelas são livres, se apenas delas o brilho existe. As crianças, acocoradas à nossa frente, ventres inchados entre pernas cruzadas, começavam a recitar versículos do Corão, verdade que, segundo Mohamed-al-Ghazali, está apenas no centro de Deus sem ter sido alterada pela passagem ao espírito dos homens”.

O autor, ao tempo, era um praticante incondicional do Nouveau Roman, que tinha como sumo-sacerdote Alain Robbe-Grillet, o que se traduzia por uma escrita fragmentária, um puzzle de textos relativamente curtos, e muito exigentes da atenção do leitor. E por isso ele viaja entre hospitalização e Paris, entre leituras e recordações familiares, os tratamentos prosseguem, começa a convalescença: “Já passeio de muleta, no jardim, à sombra de castanheiros e chorões, pelas áleas ensaibradas metidas entre os canteiros das dálias a quem o sol dá e tira cores que ardem, se consomem e renascem. Sento-me na curva do S verde, no terceiro banco, quase sempre vazio. Os outros doentes preferem o caramanchão, escondendo o escarro, a mazela, cavaqueando, negligentes, sobre males crónicos ou agudos, trepanações, enxertos, visitas, altas e baixas, enfermeiras e senhores doutores, punções, clisteres, anestesias”. De novo recordações do passado longínquo, há quintas, touros, casas imponentes, e a memória desliza até ao sul da Guiné e depois afunda-se no sono. Prossegue a viagem, onde não faltam ilhas e pântanos, estamos de novo na Guiné. E é exatamente aqui, na página 84, que Álvaro Guerra escreve o parágrafo de ouro de toda a literatura da guerra da Guiné, até prova em contrário: “Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar”.

A recordação mais pungente é de Safi, uma fula, mas aquele branco sabe que não está no seu lugar, a sua presença é de mera passagem e vem-lhe à memória Nautilus, o doente chega a ter pesadelos: “Nuvens de grandes escaravelhos negros voltam a atacar-me, de noite. Alguns chocam violentamente contra o meu rosto húmido e não sei como defender-me desta praga e do zumbido de milhares de asas agitadas com incrível velocidade. Quando começam a entontecer-me e os meus braços se cansam de abrir caminho através dessas inúmeras carapaças que desesperadamente se abatem sobre o meu corpo, acordo”. É um romance feérico, aqueles sonos são contributivos dos quadros mágicos que se misturam com as recordações da guerra. Dentro em breve acabar-se-á a convalescença e o doente sempre pesar, viajou muito por vários continentes, assentou em muitas moradas, desceu aos abismos com o capitão Nemo, chegou mesmo a visitar a Atlântida, foi visitado pelo anjo branco. E o autor despede-se, chegara ao termo a noite. Cambaleante, sentou-se à secretária, começou um texto: “Perdi a memória – dizem. E logo dão um nome a esta imunidade que pretende retirar-me. Dizem isso com precaução e manha como se quisessem disfarçar o despeito. Defendo-me”.

Não chegou ao fim da página. Substituiu o papel na máquina e escreveu: “O capitão Nemo e eu”. Acendeu um cigarro. Olhou pela janela as nuvens brancas que viajavam do norte para o sul. Entre parêntesis acrescentou: “Crónica das horas aparentes”.

E Álvaro Guerra não mais voltou à Guiné, a sua vida seguiu outro curso, depois do 25 de Abril, pôs a imaginação e o talento noutros serviços, mas deixou-nos aquele parágrafo imorredoiro, a páginas 84, maior declaração de fé não conheço, mais amor entranhado de um combatente não existe, entre o amor e a morte, como deve ser.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15359: Notas de leitura (775): “Nos Celeiros da Guiné”, por Albano Dias Costa e José Jorge Sá-Chaves, Chiado Editora, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

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