Quadragésimo quinto episódio da série "Libertando-me" do nosso
camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.
Antes, éramos Cowboys, agora
somos Índios!
Era ainda manhã, a estrada rápida número 75, no sentido
norte, nas proximidades da cidade de Atlanta, no estado
da Geórgia, era uma azáfama, todos procuravam o seu
rumo, a estrada dividia-se, havia seis ou sete pistas para
cada lado, mas passavam uns pelos outros, fazendo sinal
para esquerda ou para a direita, procurando a saída para o seu
destino. O nosso rumo era o norte, lá íamos
seguindo, até que o trânsito ficou mais livre, já tínhamos
passado a cidade, estávamos quase na fronteira,
passando-a, para o estado de Tennessee, continuámos no
sentido norte, passando ao lado da cidade de
Chattanooga, até nos surgir a placa de sinalização da
estrada estadual número 60, depois a 58, tomando em
seguida uma estrada rural, que dá pelo nome de Blythe
Ferry Lane, que segue entre pequenas povoações,
quintas, pequenos lagos e pântanos, acabando em frente
ao rio Tennessee, onde está localizado o “Cherokee
Removal Memorial Park”, onde parámos.
Companheiros, temos que interromper para vos dizer que
hoje, nas nossas viagens por aqui, vamos falar de um
local que nos merece muito respeito, onde a história nos
diz que uma nação se constrói por períodos bons e
outros menos bons, como esta grande Nação que nos
recebeu de “mãos abertas”, a nós europeus e nos deu
aquilo que o nosso País de nascimento, por quem todos
demos a vida numa frente de combate, e agora falando de
nós, pessoas simples do povo que éramos, sem educação
superior e, essa mãe Pátria, esse nosso querido Portugal,
sempre nos colocou numa posição de pessoa inferior,
talvez por entre outras coisas, os nossos progenitores
sempre dizerem não a certas situações que
privilegiavam outros, que nada faziam para contribuir
para uma sociedade mais justa.
Perdoem lá, já me estou a desviar com palavras que nada
têm a ver com a nossa conversa de hoje, vamos
continuar. Este local, cujo nome já mencionámos, que
quer dizer mais ou menos, “Parque Memorial da Remoção
do Povo Cherokee”, é visitado por quem tem, ou quer ter,
algum conhecimento do que foi o destino dos verdadeiros
americanos, aqueles a quem ainda chamam “Índios”.
Aqui, neste local, existe alguma informação daquilo que
foi um dos capítulos mais sombrios da história americana,
que foi o acto desprezível da remoção de alguns povos,
entre eles os “Cherokees”, os “Chickasaw”, os “Choctaw”,
os “Creeks” e “Seminoles”, na altura chamadas de “As
Cinco Tribos Civilizadas”, que por aqui viviam com alguma
autonomia política e que deveriam ser considerados
americanos do sul. Aqui começou o “Trail of Tears”, que
tem muitas traduções, mas para nós quer dizer mais ou
menos o Caminho das Lágrimas, mas na linguagem
Cherokee é chamado de “Nunna daul Isunyi”, “O caminho
onde eles choraram”, que fez correr muitas
lágrimas e é uma marca negra na história americana, que
nunca poderá ser justificada ou explicada, mas como em
tudo na vida, nenhum de nós tem qualquer culpa de
actos menos felizes, praticados pelos nossos
antepassados, temos é que aprender e fazer com que
nunca mais se repitam.
Em 1835, alguns representantes auto-nomeados da
nação Cherokee, ao fim de alguns anos de negociações,
assinaram o Tratado de “New Echota”, onde diziam que
trocavam as suas terras a leste de Mississippi por cinco
milhões de dólares, que envolvia assistência para a
deslocalização assim como a compensação pela
propriedade perdida, deste modo, as tribos indígenas
localizadas a leste do rio Mississippi foram forçadas a
viajar no “Caminho Cherokee das Lágrimas”.
A história diz que, pelo resultado deste tratado,
documento com base numa lei de 1830 (Indian Removal
Act), assinado pelo Partido Ridge nunca foi aceite pelos
líderes ou pela maioria da tribo Cherokee, representada no
Partido Ross, mas esse pormenor pouca influência iria ter,
pois as tensões entre os representantes do estado da
Georgia e do povo Cherokee ficaram tensas com a
descoberta de ouro nas proximidades de Dahlonega, no
estado da Georgia, em 1829, onde alguns historiadores
dizem que esta foi a primeira “corrida ao ouro” na história
dos EUA.
Quando o povo Cherokee assinou o tratado, foi-lhe
prometida a tal quantia em dinheiro, que devia ser paga
em ouro, todavia não sabemos se foi paga em ouro ou em
papel impresso, cedendo as suas terras ao governo
federal, começando assim a sua migração forçada por
mais de 1200 milhas para o chamado Território Indígena,
que é hoje o actual estado de Oklahoma. Os nativos
sofreram muito com esta migração, e vários morreram
durante as viagens e nos acampamentos forçados, que se
formavam durante esta migração, estimando-se que, da
tribo Cherokee, de uma população de 15.000, vieram a
falecer cerca de 4000.
Centenas de escravos e afro-americanos libertos, que
viviam com os índios, acompanharam-nos nesta
migração, por este Caminho das Lágrimas, muitos foram
transportados em grandes carroças, mas a neve e o frio
de inverno dificultavam este procedimento e, com a
diminuição da comida, havia racionamento, alguns
moradores das aldeias por onde passavam iam
ajudando, viajando em barcos ou jangadas, quando era
possível pelos rios ou pântanos, mas quando a
temperatura baixava, os rios congelavam, forçando a
pararem e formarem acampamentos onde iam morrendo,
principalmente por serem mal alimentados, onde a
maioria das mortes ocorria por coqueluche, tifo,
disenteria, cólera, infecções ou gripes, assim como a fome,
foram essas as epidemias que ao longo do caminho
assolavam esses acampamentos.
O Presidente Martin Van Buren enviou o General Winfield
Scott 7000 soldados para organizar o processo de
remoção. Scott e as suas tropas forçaram o povo
Cherokee para fora das suas casas, na ponta das suas
baionetas, enquanto outros saqueavam casas e
pertences. Um dos soldados da operação, sob as ordens
do general Winfield Scott, escreveu:
“Eu lutei nas guerras entre países e disparei contra muitos
homens, mas a remoção Cherokee foi o trabalho mais
cruel que eu conheci”.
Um filósofo francês, no ano de 1831, testemunhou esta
migração forçada, escrevendo na altura:
“Pairava no ar um sentimento de ruína e destruição, era o
fim destes atraiçoados, era o seu adeus, ninguém poderia
aqui assistir sem sentir um aperto no coração. Os Índios
estavam quietos, sombrios e tactiturnos, perguntei a um
deles por que deixavam as suas terras, responderam-me,
“para serem livres”. Assistimos à expulsão de um dos
mais famosos e antigos povos americanos”.
Aqueles que resistiram, querendo ficar nas suas terras,
foram objecto de intimidação legal e perseguição, tendo
as suas casas sido derrubadas e queimadas, assim como
o seu gado.
O governo federal prometeu ao povo Cherokee, que a sua
nova terra, ou seja o tal “Indian Territory”, que é hoje o
estado de Oklahoma, iria permanecer sua para sempre,
sem serem molestados, mas a força da colonização
branca empurrou-o para o oeste e foi encolhendo,
encolhendo, o espaço do “Indian Territory” e, claro,
quando em 1907, Oklahoma se tornou num estado, o
“Indian Territory”, tinha ido embora para sempre.
Muitos anos passaram, hoje a população Cherokee, que
mantém o seu próprio alfabeto, portanto fala a sua língua,
teve alguma recuperação e são esses índios o maior
grupo nativo americano.
Depois de algum tempo de meditação, deixámos este
parque, localizado no meio de alguns pântanos, em
silêncio, também sombrios e taciturnos, passados quase
dois séculos, em respeito por este povo.
Tony Borie, Novembro de 2015
____________
Nota do editor
Último poste da série de 22 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15394: Libertando-me (Tony Borié) (44): Simplesmente Fernando
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Brutal a história Tony, além de que estás a escrever cada vez melhor.
Tony, creio que se não tivesses tido a experiência colonial africana de vinte e tal meses, tinhas um ponto de vista muitíssimo diferente da América e dos índíos da América.
Conheço vários velhos emigrantes reformados vindos do Canadá e da América, nunca lhes oiço histórias de índios e cóbois, nem da colonização da América.
Nem lhe passa pela cabeça perderam tempo a pensar em tal gente.
E, sem dúvida, foi porque não tiveram uma experiência como tu e eu.
Eles só falam em dólares e trabalho.
Com os velhos emigrantes brasileiros também acontece a mesma coisa, não têm a percepção que a terra onde estiveram e continuam tinha gente com outros nomes que não índios nem brasileiros.
A única diferença do Brasil e da América, é que aí não dizem que foram os ingleses que mataram os índios, e no Brasil dizem que foram os Portugueses que lhe mataram os seus queridos índios.
Tony, mando-te uma notícia, aqui na nossa vizinha Europa está havendo uma invasão, alguns invasores estão chegando lá vindos das margens do Geba.
Mas pretendem de preferência a Europa, passam de lado e nem querem saber de nós aqui.
Tony, tenho muito orgulho por seres membro da nossa Tabanca Grande!... Li com muito apreço o teu artigo sobre o povo cheroqui, e sinto orgulho por haver portugueses como tu, na grande Nação americana, que têm esta sensibilidade sociocultural... Parabéns... Fiquei a saber muito mais do que sabia sobre os "índios e cowboys"...
Por outro lado, e já que falamos de povos e de línguas, ouvi hoje, na rádio, um professor de Coimbra, que fixei o nome falar do Congresso Internacional LÍNGUA PORTUGUESA: UMA LÍNGUA DE FUTURO, que se vai realizar nos 725 Anos da Universidade de Coimbra, nos próximos dias 2 a 4 de dezembro, em Coimbra, no Convento de São Francisco... Um das coisas que o prof disse é que o português é quinta língua mais falada do mundo, num universo de mais de 6 mil línguas e idiomas que ainda existem... É motivo de orgulho para os lusófinos, mas também um desafio e uma grande responsabilidade... Amílcar Cabral foi visionário ao dizer que combatia o colonialismo português, mas queria que os guineenses (e os caboverdianos) falassem e escrevessem o português.
E já que evocas os cheroquis e a sua língua, é bom também lembrar que mais de metade das línguas do mundo, segundo a UNESCO, estão em risco de desparecer... O cheroqui, falado por 15 a 20 mil americanos, é uma delas...
Um abraço fraterno. LG
Grande abraço, meu caro Tony. Belo texto.
Manuel Joaquim
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