sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15444: Notas de leitura (782): “Radiografia Militar”, por Manuel Barão da Cunha, Âncora Editora, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Em 1975, a apreensão do livro deu brado, discutiu-se calorosamente a liberdade de expressão. 40 anos depois, Barão da Cunha reformula a estrutura da obra, adiciona-lhe depoimentos, aclara conversas, introduz novos testemunhos.
Sugiro que estejam atentos ao que refere sobre a Guiné, obteve do dirigente máximo da PIDE em Bissau, Fragoso Allas, um depoimento onde este procura esclarecer o teor da conversa entre Senghor e Spínola. Fica indiciado que em Julho de 1973, no exato momento em que o PAIGC vivia uma euforia político-militar, Costa Gomes sugere-lhe uma intervenção junto de Nino Vieira, e Spínola terá comentado: "Agora? É tarde".
Uma longa viagem nas memórias de um coronel da cavalaria que recorda com imensa saudade o ideal de camaradagem e o espírito de corpo instilados na corporação, nos longínquos anos da década de 1950.

Um abraço do
Mário


Radiografia Militar, por Manuel Barão da Cunha

Beja Santos

A “Radiografia Militar” surgiu em 1975 e foi motivo de larga polémica por um sindicato se ter oposto à sua impressão. O Coronel Manuel Barão da Cunha voltou 40 anos depois aos motivos que o levaram a escrever esta série de reflexões sobre o MFA, os valores democráticos, o desenvolvimento e a descolonização e juntou-lhe novas achegas com comentários que foram produzidos até 2014: “Radiografia Militar”, por Manuel Barão da Cunha, Âncora Editora, 2015. Há diferentes secções que a obra contempla: as memórias do Cadete da Escola do Exército, onde se refletem o espírito de corpo, avultam amizades, a nobreza da camaradagem, críticas à pesporrência e vanidades de certos quadros militares, etc; as comissões em Angola e na Guiné, entremeadas de meditações em que o oficial de cavalaria passa a duvidar da natureza da guerra, como disse expressamente: “Depois a guerra foi perdendo a heroicidade, a motivação; foi-se banalizando. As pessoas foram-se cansando. Guiné; Moçambique… Partidas; chegadas… A guerra cansa; tudo cansa… os jornais falam de outras guerras e de futebol! Entretanto, há cidadãos que não fazem a guerra. Uns buscam o exílio, outros têm padrinhos (…) A Academia Militar qualquer dia tem mais professores do que alunos”.

Procura entender os movimentos sinuosos e ziguezagueantes do MFA, fala-nos demoradamente sobre Otelo, as divisões nas Forças Armadas, recolhe depoimentos, esboça o perfil de certos políticos, chega ao 11 de Março, continua a pensar, como outros, que foi uma armadilha montada pelo KGB; o seu livro apreendido deu-lhe matéria para discretear sobre a liberdade de informação, regressa ao passado para nos dar impressões sobre os cursos do Instituto de Altos Estudos Militares e não esconde um certo desprezo pelos oficiais do Estado-Maior, e de novo voltamos à formação militar, à intrusão da Legião Portuguesa e da Brigada Naval na esfera militar.

E assim chegamos à descolonização, aqui disparam críticas em diferentes direções, denuncia alguns dos erros maiores do colonialismo e enumera situações que dão conta da precipitação da saída de Angola, é nesse contexto que igualmente volta ao passado para nos descrever o seu desempenho e dos seus homens na Operação Viriato, dando-nos igualmente um quadro da impossibilidade de se defender o Estado da Índia, uma situação politicamente desastrada que os militares nunca esqueceram.

Segue-se a narrativa da sua comissão na Guiné, no regulado da Pachana, em primeiro lugar, vêm ao de cima novos desencantos com o comportamento da hierarquia; e por último assenta a sua lente sobre a guerra em Moçambique.

Assim chegámos ao depois e onde se interpretam o curso da guerra, o que se podia ter feito para evitar calamidades de parte a parte. Barão da Cunha colhe o depoimento do Inspetor-Adjunto Fragoso Allas, o dirigente máximo da PIDE na Guiné levado por Spínola. Fragoso Allas dá-nos a sua versão sobre os encontros de Spínola com as autoridades senegalesas, tem todo o interesse ouvir o que ele diz:
“O General Spínola, eu e o Embaixador João Nunes Barata, então alferes miliciano e seu secretário, fomos duas vezes a Cap Sikiring, no Senegal.
A primeira reunião, em 27 de Abril de 1972, foi com o Ministro da Informação do Senegal. Foi uma reunião preparatória com vista ao futuro encontro com o Presidente Senghor.
O ministro referiu: “(…) O facto do Senegal ter bastantes afinidades com Portugal e existirem na cultura senegalesa vincados casos de lusitanidade (…) ao povo guineense competia decidir o seu destino, mas também pensava que a Guiné deveria manter os seus laços de afinidade com Portugal, como o Senegal mantivera com a França (…)”.

A segunda vez, em 18 de Maio de 1972, foi com o próprio Presidente Senghor, na mesma localidade. O encontro iniciou-se cerca das 9h30. Após os preliminares, Senghor referiu-se em termos elogiosos à política em curso na Guiné e deu a entender que preferia ter-nos como vizinhos do que a Sekou Touré e que, entre africanos, o facto de nos conseguirmos sentar à mesma mesa para dirimir pontos de vista opostos, era meio caminho andado para a sua resolução. O resto viria depois, no espaço de um decénio, provavelmente.
Pareceu-me que ele (Senghor) estava convencido que Marcello Caetano era influenciado por militares no sentido de a guerra continuar. Manifestou “o desejo do Senegal ajudar Portugal a resolver o seu problema ultramarino, servindo de intermediário na busca de uma solução”.

O General Spínola referiu que “uma forma regionalista de inspiração federativa seria, a seu ver, talvez a que melhor correspondia às exigências do presente, ocupando o lugar de esquemas políticos rígidos que não servem os interesses de Portugal nem os do povo africano da Guiné”. E que “a solução do problema ultramarino português reside numa política de africanização nos moldes já definidos, preparando as populações para participarem a todos os níveis na administração da sua terra”.

E o diálogo prossegue, Spínola e Senghor parecem sintonizar-se. Senghor admite que haja a necessidade de um período de autonomia interna de, pelo menos 10 anos. Mais adiante, no seu depoimento, Fragoso Allas mostra-se reticente a que tenha havido uma terceira reunião, como alguns investigadores sugerem. Nunca enviara a Spínola, então em férias no Luso, qualquer mensagem dizendo que Amílcar Cabral estava na disposição de ir a Bissau, tal mensagem foi de Alpoim Calvão. Mais adiante, Fragoso Allas refere o seu encontro em 8 de Julho de 1973 com o General Costa Gomes, em Bissau. Costa Gomes ter-lhe-á dito que o Governo central estava disposto a contactar o PAIGC, pelo que queria saber se ele tinha contactos válidos de cúpula. Allas respondeu que, após a morte de Amílcar Cabral não tinha. Mas poderia contactar Nino Vieira, embora levasse tempo. E adianta: “Sabíamos que grande parte dos guerrilheiros já não queria combater e que queriam apresentar-se mediante condições, sendo este o único trunfo que tínhamos, levando em consideração que a ONU já havia decido reconhecer o PAIGC como único representante da Guiné… Costa Gomes disse-me para fazer o que pudesse… No primeiro despacho que tive com o governador, referi-lhe a conversa, mas ele limitou-se a comentar: “Agora? É tarde”.

O livro prossegue com nova diversidade de depoimentos. É uma longa viagem de memórias, parece que o Coronel Barão da Cunha quer que cada um de nós tire ilações em função do manancial de dados que nos oferece.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15425: Notas de leitura (781): A "Guiné do Cabo Verde" (1578-1684), por José da Silva Horta, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Luís Graça disse...

É muito importante que todos nós, ex-militares, que fizemos as "guerras de África", tenhamos oportunidade de deixar, escrito, o nosso testemunho sobre os acontecimentos de que fomos, pelo menos, atores e/ou figurantes. Outra coisa, bem diferentes, são as nossas opiniões, como cidadãos e portugueses, sobre a nossa história contemporãnea: o Estado Novo, a guerra, a descolonização, o 25 de abril, o 25 de novembro, a descolonização, a integração europeia, a moeda única, etc.

Ninguém, nesta matéria, tem "privilégios", soldados do contingente geral, pessoal do quadro, milicianos...A liberdade de expressão não é um privilégio, é um direito fundamental... (Privilégio, do latim "privilegiu(m) (lei individual, excecional, regalia...).

Saibamos sempre defendê-la... Acho que a nossa geração, mais do que ninguém sabe dar o devido valor à liberdade...