sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15445: História de vida (43): Anda(va) meio mundo a enganar o outro... Ou o conto do vigário em que caiu a minha pobre mãe quando eu estava em Galomaro e lhe apareceu à porta de casa um falso camarada meu... (Juvenal Amado, autor de "A tropa vai fazer de ti um homem", Lisboa, Chiado, Editora, 2015, 308 pp.)

O Juvenal em Galomaro, c. 1972/74, junto ao arame farpado,
 num dos postes avançados do quartel. Foto do autor.
1. O CONTO DO VIGÁRIO E A GUERRA COLONIAL

por Juvenal Amado

[ Foto à esquerda, o ex-1.º cabo condutor autorrodas, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74; natural de Alcobaça, vive em Fátima, autor de "A tropa vai fazer de ti um homem!", Lisboa, Chiado Editora, 2015, 308 pp.]

Há gente capaz de tudo.

Com um esquema bem urdido, bem montado, acercam-se das pessoas que na sua vida simples nunca pensam que o diabo pode estar atrás da porta e, zás, são enganadas por vezes com coisas, de tão simples e credíveis, que ninguém se atreve a pôr em causa.

Penso que o conto do vigário é a trafulhice em que quase toda a gente pensa que nunca cai. Mas estamos enganados e lá vem o dia em que baixamos a guarda, abrimos as defesas e, pronto, somos enganados pela mais estapafúrdia das encenações.

Uns são enganados pela a ambição, outros são enganados pela sua noção de solidariedade e outros pelas suas fraquezas, pelo seu amor aos que estão longe. Tudo serve para enganar os incautos.

Veio este assunto à lembrança pois também alguém da minha família foi em tempos enganada, quando a mentira fez tocar as campainhas do seu desvelo, da sua preocupação quando eu estava a cumprir o meu tempo militar na Guiné.

Um dia, lá para o fim de 73, apresentou-se em casa dos meus pais um individuo praticamente da minha idade, que se apresentou como meu amigo e a cumprir comissão comigo na Guiné.

Pobre coração da minha mãe deu um salto, franqueou as portas e bebeu avidamente o que ele dizia. Que me conhecia muito bem, que eu mandava cumprimentos e que também lhe tinha transmitido alguns pedidos de coisas que pretendia que ele me levasse.

A minha mãe estava sozinha em casa e ofereceu-lhe almoço, ao que ele disse que não tinha tempo pois ia apanhar o comboio no Valado dos Frades para Lisboa, de forma a embarcar novamente para a Guiné. A minha mãe foi recolher o que ele dizia que eu lhe tinha pedido, embora estranhando pois nunca lhes pedia nada nas cartas, lá arranjou meias, cuecas e mais que ele inventou, juntou alguns chouriços,  uma garrafa de ginja David Pinto,  pois sabia bem a saudade que tinha desses petiscos. Aproveitou para me mandar umas fotos a cores de um rolo, que tinha mandado para ser revelado e deu-lhe o dinheiro todo que tinha em casa, pois também eu o tinha solicitado. Está claro que não deu muito, pois era coisa que não abundava lá em casa, mas deu-lhe o que lhe fazia falta,  de certo.

Já que ele não podia almoçar, fez-lhe um farnel para ele comer no comboio e, ala que se faz tarde, ele foi-se embora.

Capa do livro do Juvenal Amado.
Lisboa, Chiado Editora, 2015.
Tudo isto se passou de manhã e, quando o meu pai chegou a casa para almoçar, ela contou-lhe ainda toda eufórica o que se tinha passado, pois não era todos os dias que se tinha contacto com um amigo do filho, que lhe tinha ido dar de viva voz noticias suas. Ele disse-lhe logo, “já foste enganada”.

Foram logo à praça dos táxis, quando perguntaram pelo sujeito, logo o taxista,  até nosso vizinho, se apresentou como tendo sido ele a ir levá-lo, acrescentando que o dito tinha deixado esquecido um embrulho no banco de trás, que não sabia de quem era.

O que já se temia, ficou logo ali comprovado.

A minha mãe fartou-se de chorar, a debalde das tentativas do meu pai para minorar a importância do acontecido. As cuecas e meias voltaram para a respectiva gaveta, o resto desapareceu como desapareceu o dinheiro.

Costuma-se desejar quando nos enganam com dinheiro, que o patacão lhes sirva para o médico ou para a farmácia. Fraca, forte ou inútil a vingança, mas que parece que nos conforta, à falta de uma justiça mais imediata e vigorosa.

É o que na maioria dos casos a que se consegue arranjar.

Veio-se depois a saber que não foi só a minha mãe enganada pelo individuo que explorou os sentimentos e as saudades de quem tinha os filhos longe.

Crime e Castigo é uma obra de Fiódor Dostoiévski e conta a história de um criminoso que não consegue viver com o sentimento de culpa pelo crime que cometeu. Era bom que isso acontecesse aos criminosos, o Mundo seria um lugar muito melhor de se viver sem dúvida nenhuma.

Um abraço,
Juvenal Amado
________________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15217: História de vida (42): Clube dos Octogenários - Narrativa de 80 anos de vida (Coutinho e Lima)

3 comentários:

Luís Graça disse...

conto-do-vigário | s. m.

con·to·-do·-vi·gá·ri·o
substantivo masculino
1. História complicada, invenção contada a incautos pelo vigarista para apanhar dinheiro.
2. Logro, vigarice.
Plural: contos-do-vigário.

"conto do vigário", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/conto%20do%20vig%C3%A1rio [consultado em 04-12-2015].


... Confesso que não sei a origem da expressão.. Já um ou outra explicação, mas não me convence, nomeadamente em sítios brasileiros... Pode ser que algum leitor saiba e quer partilhar esse saber... LG

Valdemar Silva disse...

Viva, caro Juvenal Amado.
Este teu conto do vigário foi muito 'contado' e 'cotado', naqueles anos em que havia tantos filhos na guerra colonial. Era fácil ao vigário -o que faz as vezes do outro- burlar os pais, principalmente as mães, que só queriam o melhor para os seus filhos.
Mas, o que se passou comigo brada aos céus dos contos do vigário. Brada aos céus por ser o mais totó, o mais naif, o mais inocente dos contos do vigário. Senão vejamos.
Vinha no avião da TAP, passar as minhas férias a Lisboa, quando se avistou, nas janelas do lado direito do avião, o deserto do Saara. Todos fomos ver, cá de cima,
o deserto lá em baixo e até houve fotografias do deserto.
Acabou o visionamento do deserto e, eis chega ao pé e mim um tropa, com uma máquina fotográfica, dizendo 'não vendo estas fotos a ninguém', sentando-se ao meu lado e propondo-me logo um negócio garantido 'tirei umas fotos ao deserto que são vendidas como água'. Se calhar, respondi eu.
Eu sou marinheiro vou de férias e se o...o Furriel avançar já com mil pesos para se fazer, em Lisboa, muitas cópias que são facilmente vendidas, dizia ele, e eu também regresso à Guiné, daqui a um mês, depois das férias e vamos ganhar um dinheirão e fazemos contas.
Pois é, não digas isso a ninguém, o que a rapaziada mais gosta é fotos do deserto, e é pena não teres do oceano Atlântico, disse eu e lá seguimos até Lisboa sem mais conversa.
Evidentemente, que no regresso de férias, a Bissau, do marinheiro/fotógrafo nem pó.
Mas, esta das fotografias do deserto é boa e não lembra ao diabo num conto do vigário

Hélder Valério disse...

Pois é, Juvenal

É lamentável que isso tivesse acontecido, mas foi essa a dura realidade.

Quanto ao teu desejo final, o do 'crime e castigo', será um fraco consolo, que terá algum 'sabor a vingança', mas dificilmente se saberia se ocorreu.

Abraço, amigo!
Hélder S.