quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15436: Os nossos seres, saberes e lazeres (130): Um dia na Berlenga, a pensar no princípio do mundo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Outubro de 2015:

Queridos amigos,
Há visitas em excursão que têm o pendor de se tornarem inesquecíveis, mesmo quando são breves.
Ardia de curiosidade por conhecer a Berlenga, via-a praticamente todos os dias a partir da Foz do Arelho, nos dias límpidos, com aquelas pequenas adjacências que são as Estelas e os Farilhões.
Não viajei à procura de um lugar mágico, tinha visto muitas fotografias sobre as suas belezas e recordo-me de há muitos anos ter folheado uma revista, presumo que a Panorama, que mostrava a altíssima qualidade da decoração da pousada instituída pelo SNI.
Mal chegamos à ilha e percecionamos as diferenças: os tons do granito, as rugosidades de todos aqueles rochedos, tudo aquilo parece uma miniatura de um território aberto ao mar e em que o próprio mar é um ecrã total. E depois a guia, com o seu entusiasmo, galvanizou-nos, aquele pedaço de terra é o que resta do que terá sido a separação dos continentes, há não sei quantos milhões de anos. E o resultado é aquele pequeno paraíso árido onde aparece uma fortaleza digna de um épico de cinema, em suma, passei ali um dia muito feliz e partilho-o convosco.

Um abraço do
Mário


Um dia na Berlenga, a pensar no princípio do mundo

Beja Santos



O programa era proposto pela associação mutualista do Montepio, a que pertenço, um dia na Berlenga, passeio guiado e almoço ao ar livre. Pelas 10h da manhã, todos a postos junto da fortaleza, ou forte, ou forte-prisão de Peniche, o incontornável monumento dos tempos em que aqui e na Berlenga se vivia em permanente vigilância contra corsários de vária proveniência, bem como havia que atemorizar os navios espanhóis durante a Guerra da Restauração. As marcas dessa fortaleza abaluartada estão à vista, bem como no soberbo polígono irregular da fortaleza da Berlenga. Tudo mete respeito. Foi depois prisão, por aqui andaram bóeres foragidos e daqui fugiu Álvaro Cunhal e outros comunistas, em 1960, uma invasão das arábias, história para filme. A Avenida do Mar traz-nos até aqui, ao monumento n.º 1 de Peniche.


Deve ser o cabo dos trabalhos urbanizar à volta da fortaleza mastodôntica. A última vez que aqui vim foi para assistir a uma apresentação de arqueologia subaquática, a equipa que na Praia da Papôa, junto a Peniche, desceu aos restos do galeão S. Pedro de Alcântara que se afundou bem perto de terra. Trazia ouro e prata às carradas que Madrid esperava na maior aflição, estava ali o seu orçamento de Estado. Levaram quase tudo e os arqueólogos mostraram, orgulhosos, os resultados da expedição. Andou ali à volta e agradou-me esta mistura de jardim zen, com palmeira e flores. Já chegou a guia, toca a avançar para o porto.




E pronto, uma última imagem dessa mastodôntica fortaleza. Vamos abandonando Peniche, são 40 minutos até à Berlenga, mar calmo, grande nitidez no céu, e registo dois apontamentos desta rugosidade da rocha, aqui acaba a parte continental de Peniche, se bem que haja uma freguesia que tutela os interesses do arquipélago das Berlengas. Viagem sem sobressaltos, como não conheço a Berlenga Grande, as Estelas e os Farilhões, estou ansioso, nunca pus os pés no nosso arquipélago mais vizinho da Europa Continental.




À entrada do porto, somos recebidos por este imponente rochedo cor salmão, mais adiante temos o bairro dos pescadores, gracioso à distância e perto, anunciam que temos meia hora para andar a monte, o restaurante já fechou, tinha lido uma publicação que o dito assentava no resto do Mosteiro dos Jerónimos, vieram os frades e creio que aguentaram umas boas décadas, ou não aguentaram a solidão ou fartaram-se da pirataria, foram-se embora. Como é tudo a subir e está prometido que a guia, uma bióloga entusiasta, começará a incursão lá bem em cima, aproveito e vou à praia, água mais turquesa não conheço, por ali andavam banhistas contentes, nem eles podem imaginar que é o último dia da estação balnear, amanhã haverá forte ondulação, ventos sibilantes, nenhum barco aqui amarará. Aproveitem o dia, fico-me pela contemplação.

Ando por ali às voltas cheio de apetite, são carapaus na grelha e uma boa salada, beberica-se um Ermelinda de Freitas que vem em box, e o pão é muito gostoso. Prometeram café que não veio, quem veio foi a bióloga que pôs os excursionistas em movimento. Com o hálito a saber a carapau grelhado, atiro-me para as alturas, a bióloga está radiante, explica que as Berlengas decorrem de uma fratura que aconteceu há não sei quantos milhões de anos, e fico de boca aberta quando ela diz que isto é o resto dos restos do continente americano, até me aflijo, um dia um louco lá nos States demonstra que isto é solo norte-americano, vem a VIII Esquadra e apoderam-se do arquipélago.




Começou a subida para as alturas, aprendi que estou numa fratura, que esta biosfera está salvaguardada, que desapareceu o sardão, isto enquanto vejo lagartixas em movimento, oiço e ando para ali pasmado, registei o Bairro dos Pescadores de cima para baixo, um pormenor da costa e depois o farol, bem gostava de subir lá a cima, deve ser uma panorâmica de estalo.





Prossegue a dissertação empolgante sobre a fauna e a flora, a raridade deste maciço granítico, houve alguém que teve o desplante de perguntar se não trataria, afinal, de uma erupção vulcânica, a bióloga protestou, isto é mesmo fratura, por aqui é só granito, umas ervas rasteiras e umas aves, tudo mais é uma beleza arrasadora. E é, punha à prova que as minhas artroses nos joelhos estão controladas, vamos descer cerca de 200 degraus enquanto nos encaminhamos para o prato de substância desta visita, a fortaleza cujo alvo principal era deitar barcos espanhóis abaixo. Parece que não deitou um só, mas ficou-nos este património que eu contemplo extasiado.




Vou dando passinhos prudentes, estes caminhos que levam à fortaleza exigem muito cuidado, mas é tudo muito belo e eu escondo os meus receios parando aqui e acolá, e passado o susto de derrapar e me estatelar nas rochas, enfrento a entrada da fortaleza, ali se invoca o regente de D. Pedro, irmão de Afonso VI que lhe tirou a coroa e a mulher. Há anos, muitos, li que o SNI aqui construiu uma pousada, vi fotografias, os decoradores foram nomes sonantes do modernismo português, consta que foi tudo roubado, agora quem aqui quiser passar férias tem que trazer tudo e mais alguma coisa. Esse turismo não me interessa, o que me está a deixar especado são estas rugosidades, estas concavidades, a tonalidade da água, a envolvente da fortaleza e a sua imponência. Veremos mais adiante.




Batemos as palmas quando a bióloga anuncia que não precisamos de subir, vem uma embarcação buscar-nos. É nessa circunstância que procuro captar o que há de verdadeiramente impressionante nesta fortaleza que eu nunca suspeitei existir tal como ela me aparece diante dos olhos. Espero motivar-vos a virem até cá!



Estamos na última etapa, melhor, na penúltima, agora vamos passear no meio das grutas e recambiados para o porto, regressamos na mesma embarcação, já não está o tempo ensolarado da manhã, e não se trata da frescura da tarde, é o tal anúncio que o tempo está a mudar. Foi um dia inesquecível, daqueles como ir a Olivença, ao Castelo de Almeida e a Freixo de Numão, descer o Guadiana, por exemplo. É um país muito belo, quando se viaja em grupo é tudo formalidades ao princípio, estamos a medir-nos uns aos outros, depois do almoço começam os comentários, a partilha de comes, os pequenos desabafos. Nisso, somos únicos. E ainda bem. O passeio chegou ao fim, já estou a pedir mais.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15409: Os nossos seres, saberes e lazeres (129): Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (8) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

antonio graça de abreu disse...



Depois de todo o nosso império colonial ter sido devorado pela insensatez dos homens, ficámos com as Berlengas e a ilha do Pessegueiro. Aguardo reportagem sobre a ilha do Pessegueiro, com o vizir muçulmano, o Carlos Tê , mouras encantadas e o Rui Veloso.

Abraço,

António