Quadragésimo quarto episódio da série "Libertando-me" do nosso
camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.
Simplesmente, Fernando
Quando um caminho rural se separa, com uma simples
placa de sinalização, normalmente colocada numa velha
árvore, paramos, pensando por momentos, mas
seguimos o nosso destino, ficando no nosso pensamento,
onde nos levará o outro caminho, na outra direcção. É
como em tudo na vida, ninguém tem o poder de adivinhar
o futuro, seguimos o nosso caminho, pensando sempre
que para a frente haverá primavera, flores aqui e ali,
algum sol, aves exóticas chilreando, homens, mulheres e
crianças sorrindo, árvores com fruto, rios de água pura,
prados verdes onde animais pastam, um sossego divino,
enfim, um mundo agradável para se viver.
Quase nunca queremos voltar para trás, ir ver de novo a
placa de sinalização, pois sabemos que não está lá
escrito, que naquela direcção é inverno escuro, frio, não
existe vegetação, árvores, sol, homens, mulheres e
crianças sorrindo, enfim, só lá existe guerra pela
sobrevivência, entre outras muitas coisas, alguma fome,
injustiça, discriminação, onde só nós, os seres humanos,
podemos modificar o ambiente educando, dando
exemplos de solidariedade, perdoando, tentando fazer a
diferença.
Tudo isto, companheiros, vem a propósito de que ele, o
Fernando Vasconcelos, andou por lá, em Bissau, na
Guiné, nos anos de 1965/68, não como militar, trabalhava
para um “colonialista”, perdão, vamos aqui interromper
para explicar que, ao mencionar a palavra “colonialista”,
não é nossa intenção desprestigiar o verdadeiro
“colonialista”, pois todos sabemos que havia
“colonialistas” no verdadeiro sentido da palavra e, as
“pessoas ou até famílias colonialistas”, que única e
simplesmente foram para África procurar um meio melhor
de sobrevivência, eram honestas no tratamento com os
naturais, ajudavam, ensinavam, conviviam, repartiam a
sua casa, os seus bens, criavam motores de
desenvolvimento, dando comida, trabalho, ajudando em
caso de doença, enfim, proporcionavam aos naturais uma
vida melhor, uma vida mais fácil, criando e desenvolvendo
uma comunidade, onde todos se conheciam e entendiam,
onde os naturais tiravam algum proveito da presença
das tais pessoas que iam da Europa, na procura de uma
vida melhor.
Vamos continuar, este “colonialista” tinha
estabelecimento em Bissau, os seus negócios
desenvolveram-se com a situação de guerra que se vivia
na altura, a chegada de militares, vindos da Europa, eram
potenciais clientes, pois todos os que conseguiram
sobreviver àquela maldita guerra, sempre que vinham, ou
mesmo se estivessem estacionados na capital, entre
duas cervejas, um passear pela marginal, reparavam
naquelas letras pintadas por cima da porta de entrada que
anunciava a Casa António Pinto, “Pintozinho”, onde
compravam a máquina de fotografar “Leica M6”, o rádio
portátil a pilhas “Sony”, o par de sapatos “de pala”, (que
não eram necessário atacadores), a camisa branca de
manga curta, importada de Macau, o relógio de pulso
“Cauny”, (alguns, muito grandes, com cronómetro), para
não falar nos óculos “Ray-Ban”, que eram um “luxo” e
faziam “manga de ronco”.
Voltando ao Fernando, ele nasceu no Bairro da Mouraria, vivendo e trabalhando na altura em Lisboa, no Bairro das
Mercês, o seu pai, que relembra, enxugando uma lágrima
furtiva, tocava guitarra, conhecia melhor o nome das ruas
da capital que um motorista de táxi, pois caminhava
todos os dias daqui para ali, fazendo entregas ou outras
coisas, lidava com pessoas, era, e ainda é, muito
comunicativo, houve uma oferta de emprego para uma
província do então Ultramar, recomendaram-no, ele lá foi
à entrevista, numa casa com algum luxo no Estoril, ficou
entusiasmado com a oferta, umas semanas depois,
navegando no barco “Alfredo da Silva”, da Companhia
Colonial de Navegação, com paragens de rotina na Ilha
da Madeira e em Cabo Verde, desembarcando finalmente
na então província da Guiné e, para quem o tinha visto
em Lisboa, agora podia vê-lo em Bissau, atencioso por
trás do balcão e não só, fazendo vendas, explicando,
falando a nossalinguagem de nós, militares.
As vendas aumentaram, já andava por fora, nos
aquartelamentos, fazendo contratos para produtos de
consumo, já conhecia e convivia com alguns militares com
patente superior, deslocava-se mesmo a Cutia ou a
Mansoa, o patrão prometia, mas no final do mês, no
acerto de contas, havia sempre uma desculpa em favor
deste.
Um dia até lhe disse, com ar muito sério: “Se conseguirmos
vender “mil contos mensais”, vou dar a cada
funcionário um corte de fazenda para um fato, dos
melhores”.
Vendiam até mais, mas dava a desculpa de que os produtos
que não davam lá muito lucro, portanto a promessa não
era cumprida e o tal corte de fazenda, que aqueles
“costureiros, fulas, papeis, balantas e mandingas”, que
nós todos víamos nas ruas de Bissau e não só, em frente
a uma máquina de costura “Singer”, nunca tiveram
oportunidade de tirar as medidas ao corpo do Fernando
para lhe fazer o tal fato, da tal melhor fazenda.
Era popular em Bissau, tirou as licenças para conduzir
automóvel e bicicleta, depressa fazia amigos, ajudava,
repartia o seu ordenado por amigos guinéus mais
carenciados, tendo algum dinheiro no bolso não havia
fome ao seu redor, dizia ele que só conhecia “escudos”,
os “pesos” eram da Guiné, portanto eram dos locais, não
eram dele, eram de todos, dava-se com todas as pessoas
com quem convivia, o local onde vivia era visitado e
repartido tanto por civis como militares, andava, conhecia
e confraternizava com pessoas, principalmente ao fim de
semana, nos principais clubes de Bissau, em algumas
festas a Polícia do Estado estava presente e pedia a
sua colaboração, perguntando-lhe se conhecia aquele ou
o outro, jurando-me ele, hoje, que nunca deu uma
resposta comprometendo ninguém, dizia sempre que
conhecia, mas não sabia mais nada, o que às vezes fazia
com que a polícia lhe dissesse coisas como: “qualquer
dia, vais dentro”.
Viveu alguns anos em Bissau, mas o seu patrão
“colonialista”, fez como a outra direcção, da tal placa de
sinalização, que mencionámos a princípio, que nos dirigia
para o tal mundo de inverno escuro e frio, onde as
pessoas não sorriem, não existem árvores de fruto, as
pessoas lutam e morrem, não são compreensivas, não
perdoam, fez com que deixasse de acreditar em
promessas, em ganâncias, no lucro fácil, que
normalmente é só temporário, assim despediu-se dos
amigos e colegas de trabalho, dizendo que tinha que
regressar à então Metrópole, por motivos particulares,
todas as pessoas com quem tinha convivido
acompanharam-no ao aeroporto de Bissalanca, numa
“romaria”, fazendo “manga de ronco”, o que o fez pensar
que o tempo passado na então Guiné foi uma experiência
muito rica, pelo menos em pura amizade.
Hoje, o Fernando Vasconcelos vive aqui, com sua
dedicada esposa, no estado da Flórida, viveu muitos anos
no norte, no estado de New Jersey, onde constituiu
família, de que se orgulha, continua a ser popular, entre
outras actividades, tal com nós, é pescador, quando
saímos a barra, enquanto uns admiram a paisagem, ele, o
Fernando, começa imediatamente a preparar as canas, a
iscar ou a encher os tanques com água salgada, continua
a querer ajudar, às vezes entra pela nossa casa com um
balde de camarão, fresco a saltar, ajudando todos que se
lhe dirigem, levando os que necessitam, ao doutor, ao
hospital, ao aeroporto, ou até a um Centro de Compras,
onde muitos vão comprar coisas simples, onde já não
existe à venda, aquele relógio de pulso, “Cauny”, ou um
rádio a pilhas “Sony”, a que chamávamos, “o meu
transistor”.
Amanhã, vamos à pesca do camarão, Fernando?
Tony Borie, Setembro de 2015.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 15 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15370: Libertando-me (Tony Borié) (43): Pois, se não viste, vê!
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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7 comentários:
Um abraço para ti e para o teu amigo, que tão bem evocas, o Fernando Vasconcelos!... LG
Tony, em português e penso que também em inglês há duas palavras bem distintas para aquilo que pretendes dizer com o que pretendes classificar o comerciante da casa PINTOSINHO.
Uma palavra é ser-se "colonialista", outra é ser "colono" o crioulo colon.
Se eu muitas vezes já aqui me auto-intitulei de colonialista, na realidade se exceptuarmos os militares e funcionários enviados com a missão de impôr pela força a ocupação de um território, a colónia, os outros que vão e habitam, ocupam, constroem, negoceiam, cultivam, produzem etc., esses só lhe podemos chamar correctamente "colonos".
O Fernando e o PINTO , patrão do Fernando eram colonos.
«Casa António Pinto, “Pintozinho”, onde compravam a máquina de fotografar “Leica M6”, o rádio portátil a pilhas “Sony”, o par de sapatos “de pala”, (que não eram necessário atacadores), a camisa branca de manga curta, importada de Macau, o relógio de pulso “Cauny”, (alguns, muito grandes, com cronómetro), para não falar nos óculos “Ray-Ban”, que eram um “luxo” e faziam “manga de ronco”».
Tony,a família Pinto continuou após a independência, bem como todos os outros comerciantes de Bissau.
Até com muita ou mesmo total protecção de Luís Cabral.
Mas os comerciantes retalhistas, coloniais, com aspas "colonialistas"continuavam principalmente na esperança, como todo o povo, que se regressasse a normalidade na economia que existia no tempo colonial.
Mas com as políticas do socialismo do PAIGC, em caos inevitável, não foi possível repôr aquela tradição comercial e os chamados Armazens do Povo apenas comercializavam aquilo que os amigos chineses e mais alguns lhe ofereciam.
Assim, passados pouco tempo após a independência, aqueles comerciantes, Pintosinho, Casa Nunes, casa Esteves e a mais pequena mercearia,etc. estavam de prateleiras completamente vazias.
Era muito estranho para o povo e para quem visitava Bissau ver aqueles estabelecimentos fantasmas.
E, parece uma caricatura, mas foi real esta cena.
Os chineses ofereceram um dia uma quantidade enorme de bacias, bacios, penicos. alguidares, baldes etc, tudo em plástico em todas as cores e tamanhos.
Encheram-se as prateleiras daquele colorido de penicos por vários meses, de todos os comerciantes de vendas a retalho, no Natal de 1979.
Já não se viam as prateleira vazias, mas continuava a ser muito estranho.
Tony, ainda a propósito de colon, sabes como o povo simples,após a independência em privado diferenciava o o colono branco, "colon" em crioulo, do cooperante branco, cupêrrante em crioulo?
O colon, fazia casa, fazia horta e dava trabalho a nós, o cupêrrante vem, tira fotografia, ganha manga de patacón e não faz nada.
Continua que terás sempre aqui um leitor, sou o defensor dos colonos todos, tanto do Pintosinhos como dos Fernandos.
Não havia colonos bons nem colonos maus, nem cooperantes bons nem cooperantes maus, é a fruta da época, nem colonialistas bons nem maus.
Eu fui as três coisas.
E ainda Emigrante como tu.
Rosinha, pensava que usavas o termo "colon" na brincadeira, na gozo, com autoironia!... Se tu foste "colon", então o que fui eu, que enverguei a farda do exército "colonialista" ?
Pelo que sei da tua biografia, nunca foste empresário, administrador, missionário... Ah!, sim, cumpriste o serviço militar como eu... De resto, em Angola e depois na Guiné-Bissau foste um quadro técnico de uma empresa de construção e obras públicas!... E a tua "TECNIL" era apreciada pelo governo de Luís Cabral!...
O Amílcar Cabral nunca te chamaria colonialista na Guiné, mas a mim chamou!... E tentou matar-te várias vezes, do princípio ao fim da guerra!
O termo "colonialista" acabou por ser sinónimo de "europeu" (e de um modo geral "branco"!), o que me parece abusivo... O "adesivo" ficou colado na testa de todos os portugueses que viveram e trabalharam honestamente em África!... O Fernando Vasconcelos era um simples assalariado do Pintosinho!... E o empregado dos correios, também era um "colonialista" ? E os poucos médicos e professores que lá existiam, também colonialistas ?
A Casa Gouveia, essa, sim, fazia parte do sistema, tal como mais algumas casas, conmerciais, portuguesas e francesas... Mais: a Casa Gouveia tinha privilégios que as outras não tinham, por exemplo, o monopólia da exportação das oleaginosas!... O colonialismo é, antes de mais, um sistema de dominação económnica e política!
Temos que discutir melhor o que é/foi, historicamente, o colonialismo em África...
Um abraço, para ti, grande "colon"!
Meu caro amigo Tony
Ler as tuas "crónicas" é sempre um exercício que se faz com gosto e até, por vezes, com alguma nostalgia.
É que fazes quase sempre uma ligação muito 'afinada' entre a vida que levas (ou levaste) aí nos 'States' e o nosso passado comum na Guiné, que por mais que se queira, não nos abandona.
Hoje vieste mostrar-nos o Fernando.
O retrato que fizeste dele, desde Lisboa até lá à Guiné, é o de um "homem bom". Uma pessoa que se integrou facilmente no meio guineense, que soube viver e conviver.
E, pelo que relatas, ainda não perdeu essas características.
Por outro lado, este teu artigo permitiu ao Rosinha fazer um comentário dos melhores que lhe tenho visto fazer. O Rosinha, desta vez, apresentou uma excelente distinção entre "colono" e "colonialista" e no fim apresenta uma excelente distinção entre o "colono" e o "cooperante".
Curiosamente já me tinha apercebido dessa 'desconfiança' para com o cooperante a partir das observações que a Marta Ceitil, me tinha transmitido aquando das suas experiências vividas como 'formadora' na Guiné.
Continua a presentear-nos com os teus textos, que ajudam também a 'fazer a ponte' entre o nosso 'passado comum' e as vivências actuais.
Abraço
Hélder S.
Eu fui para Angola com carta de chamada paguei 3500 escudos num porão de um navio podia considerar-me em emigrante.
Mas como me integrei na Administração colonial, embora como técnico, andei a fazer mapas iguais a esses do blog, que faziam parte do programa e dos acordos coloniais europeus, mapear todas as colónias, o que era eu? não passaria de um mero colaborador directo do colonialismo.
Em 1961 meteram-me uma farda e uma arma na mão para defender a política colonial, o que era? era um colonialista.
Outros a quem o Estado forneciam meios e passagens para irem cultivar terras e criar animais eram aqueles a quem os Amilcar e Agostinho Netos chamavam os colonos.
Este pessoal que se integrava, agricultor, pequeno comerciante retalhista era, para os indigenas o verdadeiro colono.
Estive na Guiné na Tecnil e pelo Banco Mundial, chamavam-me Cooperante a mim e a toda a gente das ONG da ONU, Banco Mundial e CEE etc.
Mas os guineenses mal souberam na Tecnil, sabem tudo sobre quem chega, que tinha feito a vida em Angola, espalharam logo que eu era colon.
Aliás, isso era o melhor certificado para me sentir em casa, por incrível que pareça a muita gente.
Assim como aqueles que foram militares na Guiné e fossem reconhecidos, eram logo "assimilados"
Estive 5 anos no Brasil, era emigrante, ou estrangeiro residente.
Luís, fundamentalmente, para os turras, movimentos anti-coloniais, os africanos em geral, a Administração colonial e os militares em geral é que eram considerados os verdadeiros colonialistas.
Quando Amílcar Cabral lançava aquela boca de que a luta não era contra os portugueses, referia-se exactamente aos brancos "colonos".
Originalmente o termo "Tuga" era exclusivo para os militares na Guiné. depois nós mesmos é que fomos universalizando, mais propriamente nós aqui.
Amilcar e o PAIGC e o MPLA de que ele é fundador também, quando diziam que a luta não era contra os portugueses, referiam-se aos portugueses colonos, radicados, brancos naturais, enfim os"progenitores" da maioria daqueles dirigentes.
Agora podemos olhar para dois casos africanos antagónicos, UPA e MPLA, Mandela e Mugabe.
Claro que isto dá pano para mangas, pois que tudo acabou tão mal, mas tão mal, que os conceitos hoje precisam já de outros dicionários diferentes daqueles da guerra fria e do tempo de Norton de Matos.
As empresas tipo CUF e outras como a Diamang, substituídas pela China, América e Brasil na Nigéria, e em Angola...e mesmo a GALP, qual Pintosinho, Luís Graça!
Eu até coro!
Bom dia companheiros.
Obrigado pelos vossos comentários, ajudam-me, podem crer.
Bem hajam, abraços a todos,
Tony Borie.
Caro Rosinha,
A tua lista classificativa de "colons" nao esta completa, pois para a nova geracao de guineenses que nasceu e/ou cresceu depois da independencia, os mais velhos, os ex-colaboradores: Regulos (antigos oficiais de segunda linha mas que muitas vezes estavam sempre na linha da frente da maldita Guerra) e antigos combatentes (milicias e do exercito portugues que constituiam as CKas...12..21..etc) tambem eram "colons" pela simples razao de que eram Spinolistas e defendiam a ideologia e o regime colonial que consideravam mais ajustado a realidade do pais, um pequeno enclave territorial com um mosaico etnico muito diversificado.
Com um abraco amigo,
Cherno AB
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