domingo, 22 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15394: Libertando-me (Tony Borié) (44): Simplesmente Fernando

Quadragésimo quarto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.




Simplesmente, Fernando

Quando um caminho rural se separa, com uma simples placa de sinalização, normalmente colocada numa velha árvore, paramos, pensando por momentos, mas seguimos o nosso destino, ficando no nosso pensamento, onde nos levará o outro caminho, na outra direcção. É como em tudo na vida, ninguém tem o poder de adivinhar o futuro, seguimos o nosso caminho, pensando sempre que para a frente haverá primavera, flores aqui e ali, algum sol, aves exóticas chilreando, homens, mulheres e crianças sorrindo, árvores com fruto, rios de água pura, prados verdes onde animais pastam, um sossego divino, enfim, um mundo agradável para se viver.

Quase nunca queremos voltar para trás, ir ver de novo a placa de sinalização, pois sabemos que não está lá escrito, que naquela direcção é inverno escuro, frio, não existe vegetação, árvores, sol, homens, mulheres e crianças sorrindo, enfim, só lá existe guerra pela sobrevivência, entre outras muitas coisas, alguma fome, injustiça, discriminação, onde só nós, os seres humanos, podemos modificar o ambiente educando, dando exemplos de solidariedade, perdoando, tentando fazer a diferença.

Tudo isto, companheiros, vem a propósito de que ele, o Fernando Vasconcelos, andou por lá, em Bissau, na Guiné, nos anos de 1965/68, não como militar, trabalhava para um “colonialista”, perdão, vamos aqui interromper para explicar que, ao mencionar a palavra “colonialista”, não é nossa intenção desprestigiar o verdadeiro “colonialista”, pois todos sabemos que havia “colonialistas” no verdadeiro sentido da palavra e, as “pessoas ou até famílias colonialistas”, que única e simplesmente foram para África procurar um meio melhor de sobrevivência, eram honestas no tratamento com os naturais, ajudavam, ensinavam, conviviam, repartiam a sua casa, os seus bens, criavam motores de desenvolvimento, dando comida, trabalho, ajudando em caso de doença, enfim, proporcionavam aos naturais uma vida melhor, uma vida mais fácil, criando e desenvolvendo uma comunidade, onde todos se conheciam e entendiam, onde os naturais tiravam algum proveito da presença das tais pessoas que iam da Europa, na procura de uma vida melhor.

Vamos continuar, este “colonialista” tinha estabelecimento em Bissau, os seus negócios desenvolveram-se com a situação de guerra que se vivia na altura, a chegada de militares, vindos da Europa, eram potenciais clientes, pois todos os que conseguiram sobreviver àquela maldita guerra, sempre que vinham, ou mesmo se estivessem estacionados na capital, entre duas cervejas, um passear pela marginal, reparavam naquelas letras pintadas por cima da porta de entrada que anunciava a Casa António Pinto, “Pintozinho”, onde compravam a máquina de fotografar “Leica M6”, o rádio portátil a pilhas “Sony”, o par de sapatos “de pala”, (que não eram necessário atacadores), a camisa branca de manga curta, importada de Macau, o relógio de pulso “Cauny”, (alguns, muito grandes, com cronómetro), para não falar nos óculos “Ray-Ban”, que eram um “luxo” e faziam “manga de ronco”.


Voltando ao Fernando, ele nasceu no Bairro da Mouraria, vivendo e trabalhando na altura em Lisboa, no Bairro das Mercês, o seu pai, que relembra, enxugando uma lágrima furtiva, tocava guitarra, conhecia melhor o nome das ruas da capital que um motorista de táxi, pois caminhava todos os dias daqui para ali, fazendo entregas ou outras coisas, lidava com pessoas, era, e ainda é, muito comunicativo, houve uma oferta de emprego para uma província do então Ultramar, recomendaram-no, ele lá foi à entrevista, numa casa com algum luxo no Estoril, ficou entusiasmado com a oferta, umas semanas depois, navegando no barco “Alfredo da Silva”, da Companhia Colonial de Navegação, com paragens de rotina na Ilha da Madeira e em Cabo Verde, desembarcando finalmente na então província da Guiné e, para quem o tinha visto em Lisboa, agora podia vê-lo em Bissau, atencioso por trás do balcão e não só, fazendo vendas, explicando, falando a nossalinguagem de nós, militares. As vendas aumentaram, já andava por fora, nos aquartelamentos, fazendo contratos para produtos de consumo, já conhecia e convivia com alguns militares com patente superior, deslocava-se mesmo a Cutia ou a Mansoa, o patrão prometia, mas no final do mês, no acerto de contas, havia sempre uma desculpa em favor deste.

Um dia até lhe disse, com ar muito sério: “Se conseguirmos vender “mil contos mensais”, vou dar a cada funcionário um corte de fazenda para um fato, dos melhores”.

Vendiam até mais, mas dava a desculpa de que os produtos que não davam lá muito lucro, portanto a promessa não era cumprida e o tal corte de fazenda, que aqueles “costureiros, fulas, papeis, balantas e mandingas”, que nós todos víamos nas ruas de Bissau e não só, em frente a uma máquina de costura “Singer”, nunca tiveram oportunidade de tirar as medidas ao corpo do Fernando para lhe fazer o tal fato, da tal melhor fazenda.

Era popular em Bissau, tirou as licenças para conduzir automóvel e bicicleta, depressa fazia amigos, ajudava, repartia o seu ordenado por amigos guinéus mais carenciados, tendo algum dinheiro no bolso não havia fome ao seu redor, dizia ele que só conhecia “escudos”, os “pesos” eram da Guiné, portanto eram dos locais, não eram dele, eram de todos, dava-se com todas as pessoas com quem convivia, o local onde vivia era visitado e repartido tanto por civis como militares, andava, conhecia e confraternizava com pessoas, principalmente ao fim de semana, nos principais clubes de Bissau, em algumas festas a Polícia do Estado estava presente e pedia a sua colaboração, perguntando-lhe se conhecia aquele ou o outro, jurando-me ele, hoje, que nunca deu uma resposta comprometendo ninguém, dizia sempre que conhecia, mas não sabia mais nada, o que às vezes fazia com que a polícia lhe dissesse coisas como: “qualquer dia, vais dentro”.

Viveu alguns anos em Bissau, mas o seu patrão “colonialista”, fez como a outra direcção, da tal placa de sinalização, que mencionámos a princípio, que nos dirigia para o tal mundo de inverno escuro e frio, onde as pessoas não sorriem, não existem árvores de fruto, as pessoas lutam e morrem, não são compreensivas, não perdoam, fez com que deixasse de acreditar em promessas, em ganâncias, no lucro fácil, que normalmente é só temporário, assim despediu-se dos amigos e colegas de trabalho, dizendo que tinha que regressar à então Metrópole, por motivos particulares, todas as pessoas com quem tinha convivido acompanharam-no ao aeroporto de Bissalanca, numa “romaria”, fazendo “manga de ronco”, o que o fez pensar que o tempo passado na então Guiné foi uma experiência muito rica, pelo menos em pura amizade.

Hoje, o Fernando Vasconcelos vive aqui, com sua dedicada esposa, no estado da Flórida, viveu muitos anos no norte, no estado de New Jersey, onde constituiu família, de que se orgulha, continua a ser popular, entre outras actividades, tal com nós, é pescador, quando saímos a barra, enquanto uns admiram a paisagem, ele, o Fernando, começa imediatamente a preparar as canas, a iscar ou a encher os tanques com água salgada, continua a querer ajudar, às vezes entra pela nossa casa com um balde de camarão, fresco a saltar, ajudando todos que se lhe dirigem, levando os que necessitam, ao doutor, ao hospital, ao aeroporto, ou até a um Centro de Compras, onde muitos vão comprar coisas simples, onde já não existe à venda, aquele relógio de pulso, “Cauny”, ou um rádio a pilhas “Sony”, a que chamávamos, “o meu transistor”.

Amanhã, vamos à pesca do camarão, Fernando?

Tony Borie, Setembro de 2015.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 15 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15370: Libertando-me (Tony Borié) (43): Pois, se não viste, vê!

7 comentários:

Luís Graça disse...

Um abraço para ti e para o teu amigo, que tão bem evocas, o Fernando Vasconcelos!... LG

Antº Rosinha disse...

Tony, em português e penso que também em inglês há duas palavras bem distintas para aquilo que pretendes dizer com o que pretendes classificar o comerciante da casa PINTOSINHO.

Uma palavra é ser-se "colonialista", outra é ser "colono" o crioulo colon.

Se eu muitas vezes já aqui me auto-intitulei de colonialista, na realidade se exceptuarmos os militares e funcionários enviados com a missão de impôr pela força a ocupação de um território, a colónia, os outros que vão e habitam, ocupam, constroem, negoceiam, cultivam, produzem etc., esses só lhe podemos chamar correctamente "colonos".

O Fernando e o PINTO , patrão do Fernando eram colonos.

«Casa António Pinto, “Pintozinho”, onde compravam a máquina de fotografar “Leica M6”, o rádio portátil a pilhas “Sony”, o par de sapatos “de pala”, (que não eram necessário atacadores), a camisa branca de manga curta, importada de Macau, o relógio de pulso “Cauny”, (alguns, muito grandes, com cronómetro), para não falar nos óculos “Ray-Ban”, que eram um “luxo” e faziam “manga de ronco”».

Tony,a família Pinto continuou após a independência, bem como todos os outros comerciantes de Bissau.

Até com muita ou mesmo total protecção de Luís Cabral.

Mas os comerciantes retalhistas, coloniais, com aspas "colonialistas"continuavam principalmente na esperança, como todo o povo, que se regressasse a normalidade na economia que existia no tempo colonial.

Mas com as políticas do socialismo do PAIGC, em caos inevitável, não foi possível repôr aquela tradição comercial e os chamados Armazens do Povo apenas comercializavam aquilo que os amigos chineses e mais alguns lhe ofereciam.

Assim, passados pouco tempo após a independência, aqueles comerciantes, Pintosinho, Casa Nunes, casa Esteves e a mais pequena mercearia,etc. estavam de prateleiras completamente vazias.

Era muito estranho para o povo e para quem visitava Bissau ver aqueles estabelecimentos fantasmas.

E, parece uma caricatura, mas foi real esta cena.

Os chineses ofereceram um dia uma quantidade enorme de bacias, bacios, penicos. alguidares, baldes etc, tudo em plástico em todas as cores e tamanhos.

Encheram-se as prateleiras daquele colorido de penicos por vários meses, de todos os comerciantes de vendas a retalho, no Natal de 1979.

Já não se viam as prateleira vazias, mas continuava a ser muito estranho.

Tony, ainda a propósito de colon, sabes como o povo simples,após a independência em privado diferenciava o o colono branco, "colon" em crioulo, do cooperante branco, cupêrrante em crioulo?

O colon, fazia casa, fazia horta e dava trabalho a nós, o cupêrrante vem, tira fotografia, ganha manga de patacón e não faz nada.

Continua que terás sempre aqui um leitor, sou o defensor dos colonos todos, tanto do Pintosinhos como dos Fernandos.

Não havia colonos bons nem colonos maus, nem cooperantes bons nem cooperantes maus, é a fruta da época, nem colonialistas bons nem maus.

Eu fui as três coisas.

E ainda Emigrante como tu.









Luís Graça disse...

Rosinha, pensava que usavas o termo "colon" na brincadeira, na gozo, com autoironia!... Se tu foste "colon", então o que fui eu, que enverguei a farda do exército "colonialista" ?

Pelo que sei da tua biografia, nunca foste empresário, administrador, missionário... Ah!, sim, cumpriste o serviço militar como eu... De resto, em Angola e depois na Guiné-Bissau foste um quadro técnico de uma empresa de construção e obras públicas!... E a tua "TECNIL" era apreciada pelo governo de Luís Cabral!...

O Amílcar Cabral nunca te chamaria colonialista na Guiné, mas a mim chamou!... E tentou matar-te várias vezes, do princípio ao fim da guerra!

O termo "colonialista" acabou por ser sinónimo de "europeu" (e de um modo geral "branco"!), o que me parece abusivo... O "adesivo" ficou colado na testa de todos os portugueses que viveram e trabalharam honestamente em África!... O Fernando Vasconcelos era um simples assalariado do Pintosinho!... E o empregado dos correios, também era um "colonialista" ? E os poucos médicos e professores que lá existiam, também colonialistas ?

A Casa Gouveia, essa, sim, fazia parte do sistema, tal como mais algumas casas, conmerciais, portuguesas e francesas... Mais: a Casa Gouveia tinha privilégios que as outras não tinham, por exemplo, o monopólia da exportação das oleaginosas!... O colonialismo é, antes de mais, um sistema de dominação económnica e política!

Temos que discutir melhor o que é/foi, historicamente, o colonialismo em África...

Um abraço, para ti, grande "colon"!

Hélder Valério disse...

Meu caro amigo Tony

Ler as tuas "crónicas" é sempre um exercício que se faz com gosto e até, por vezes, com alguma nostalgia.
É que fazes quase sempre uma ligação muito 'afinada' entre a vida que levas (ou levaste) aí nos 'States' e o nosso passado comum na Guiné, que por mais que se queira, não nos abandona.
Hoje vieste mostrar-nos o Fernando.
O retrato que fizeste dele, desde Lisboa até lá à Guiné, é o de um "homem bom". Uma pessoa que se integrou facilmente no meio guineense, que soube viver e conviver.
E, pelo que relatas, ainda não perdeu essas características.

Por outro lado, este teu artigo permitiu ao Rosinha fazer um comentário dos melhores que lhe tenho visto fazer. O Rosinha, desta vez, apresentou uma excelente distinção entre "colono" e "colonialista" e no fim apresenta uma excelente distinção entre o "colono" e o "cooperante".
Curiosamente já me tinha apercebido dessa 'desconfiança' para com o cooperante a partir das observações que a Marta Ceitil, me tinha transmitido aquando das suas experiências vividas como 'formadora' na Guiné.

Continua a presentear-nos com os teus textos, que ajudam também a 'fazer a ponte' entre o nosso 'passado comum' e as vivências actuais.

Abraço
Hélder S.

Antº Rosinha disse...

Eu fui para Angola com carta de chamada paguei 3500 escudos num porão de um navio podia considerar-me em emigrante.

Mas como me integrei na Administração colonial, embora como técnico, andei a fazer mapas iguais a esses do blog, que faziam parte do programa e dos acordos coloniais europeus, mapear todas as colónias, o que era eu? não passaria de um mero colaborador directo do colonialismo.

Em 1961 meteram-me uma farda e uma arma na mão para defender a política colonial, o que era? era um colonialista.

Outros a quem o Estado forneciam meios e passagens para irem cultivar terras e criar animais eram aqueles a quem os Amilcar e Agostinho Netos chamavam os colonos.

Este pessoal que se integrava, agricultor, pequeno comerciante retalhista era, para os indigenas o verdadeiro colono.

Estive na Guiné na Tecnil e pelo Banco Mundial, chamavam-me Cooperante a mim e a toda a gente das ONG da ONU, Banco Mundial e CEE etc.

Mas os guineenses mal souberam na Tecnil, sabem tudo sobre quem chega, que tinha feito a vida em Angola, espalharam logo que eu era colon.

Aliás, isso era o melhor certificado para me sentir em casa, por incrível que pareça a muita gente.

Assim como aqueles que foram militares na Guiné e fossem reconhecidos, eram logo "assimilados"

Estive 5 anos no Brasil, era emigrante, ou estrangeiro residente.

Luís, fundamentalmente, para os turras, movimentos anti-coloniais, os africanos em geral, a Administração colonial e os militares em geral é que eram considerados os verdadeiros colonialistas.

Quando Amílcar Cabral lançava aquela boca de que a luta não era contra os portugueses, referia-se exactamente aos brancos "colonos".

Originalmente o termo "Tuga" era exclusivo para os militares na Guiné. depois nós mesmos é que fomos universalizando, mais propriamente nós aqui.

Amilcar e o PAIGC e o MPLA de que ele é fundador também, quando diziam que a luta não era contra os portugueses, referiam-se aos portugueses colonos, radicados, brancos naturais, enfim os"progenitores" da maioria daqueles dirigentes.

Agora podemos olhar para dois casos africanos antagónicos, UPA e MPLA, Mandela e Mugabe.

Claro que isto dá pano para mangas, pois que tudo acabou tão mal, mas tão mal, que os conceitos hoje precisam já de outros dicionários diferentes daqueles da guerra fria e do tempo de Norton de Matos.

As empresas tipo CUF e outras como a Diamang, substituídas pela China, América e Brasil na Nigéria, e em Angola...e mesmo a GALP, qual Pintosinho, Luís Graça!

Eu até coro!











Tony Borie disse...

Bom dia companheiros.
Obrigado pelos vossos comentários, ajudam-me, podem crer.
Bem hajam, abraços a todos,
Tony Borie.

Cherno AB disse...

Caro Rosinha,

A tua lista classificativa de "colons" nao esta completa, pois para a nova geracao de guineenses que nasceu e/ou cresceu depois da independencia, os mais velhos, os ex-colaboradores: Regulos (antigos oficiais de segunda linha mas que muitas vezes estavam sempre na linha da frente da maldita Guerra) e antigos combatentes (milicias e do exercito portugues que constituiam as CKas...12..21..etc) tambem eram "colons" pela simples razao de que eram Spinolistas e defendiam a ideologia e o regime colonial que consideravam mais ajustado a realidade do pais, um pequeno enclave territorial com um mosaico etnico muito diversificado.

Com um abraco amigo,

Cherno AB