CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
30 - Abril de 1974
Das minhas memórias: Os patrulhamentos
Desde o início da construção da estrada Aldeia Formosa-Buba, em Outubro de 1973, até quase ao final de Maio de 1974, é recorrente na HU do BCAÇ 4513, o seguinte registo: “Forças do Batalhão e de reforço continuam a dar segurança aos trabalhos de Engenharia, assim como a executar patrulhamentos para as regiões de fronteira e contra-penetrações nos tradicionais corredores de passagem IN”. A maioria desses patrulhamentos, para as regiões frequentemente vigiadas, não me deixaram grandes memórias. Eram as rotinas. Mas os que fiz por caminhos nunca antes calcorreados, para regiões que me eram indicadas no mapa da sala de operações, pelo contrário, deixavam-me quase sempre memórias indeléveis. Por isso, ainda hoje, sou capaz de os descrever sem necessidade de recorrer a notas escritas. Mesmo que não acontecesse nada de grave, e eu tive quase sempre a sorte de não me acontecer nada, (faço por esquecer o que penámos enquanto Companhia de intervenção nos chãos massacrados de Cumbijã, Nhacobá e arredores), às vezes bastava uma pequena descoberta, deparar-me com um sítio estranho ou uma paisagem desconcertante, e não esquecia mais.
Certo dia, o Comandante de Companhia indicou-me no mapa uma zona e um rio. Acautelara a contratação de um guia e avisou-me que o único caminho era a corta-mato. Apenas iria o meu grupo de combate. Saímos cedo pela picada para Buba mas pouco andámos e o guia flectiu à direita. Embrenhámo-nos na mata que, logo ali, se apresentava como intransponível. Mas isso ao princípio não me perturbou nada, pois já tinha passado por muitas matas assim. Pensava eu. O guia, de catana em punho ia abrindo caminho, mas chegou-se a um ponto em que o pelotão teve de parar porque a abertura de passagem não era ao ritmo dos nossos passos. Pior, foi quando vimos o guia pôr-se de joelhos e começar a gatinhar à medida que abria um túnel no matagal. Mas seria que não houvesse uma passagem mais aberta, que ao menos caminhássemos de pé? Olhei à esquerda e à direita, hesitei, mas pensando bem, o guia conhecia a zona e não seria por gosto, certamente, que ia ali de gatas. Fiquei preocupado. A passagem que ia fazendo rente ao chão era estreita, muitos galhos e paus secos, arbustos densos. Pessoal! Atenção às patilhas de segurança, atenção às cavilhas das granadas à cintura, armas no chão ao longo do corpo, um de cada vez! Que caraças!... Mais que uma vez tive de parar e esticar-me para trás a agarrar o quico, afastar ramos por causa dos olhos. Apetecia-me parar tudo, voltar atrás, mas o guia já ia lá à frente, perdi-o de vista. Queria dizer-lhe que por ali não seguíamos mais, tinha que haver uma alternativa ou regressávamos. Mas tinha que avançar se lhe queria falar, e ele sempre distanciando-se... Mas depois apercebi-me que os da frente se adiantavam muito e calculei que estavam a entrar em mata aberta. Tranquilizei-me. Era melhor não dizer nada ao guia. De qualquer modo já não devia faltar muito... Mas faltava. Transpirávamos por todos os lados mas, pelo menos, caminhávamos de pé. Chegámos à orla da mata exaustos, cheios de fome e de mau humor.
Quando olhei em frente, para um mar de luz, vi uma savana amarela e, a cerca de cem metros ou pouco mais, um cordão infindável e cerrado de árvores de copa redonda até ao chão. Era o rio, não havia dúvidas. O que me deixou desconcertado foi a semelhança incrível com o cenário que se me deparou ao sair de uma mata, tão longe dali, quando patrulhava uma região para os lados do Cumbijã. Apenas com a diferença, lá, do ar intensamente salgado, e com bolanhas outrora cultivadas próximas da savana e das lalas. Aqui era só savana rasa, atravessada pelo rio paralelo à orla da mata, e o ar era limpo. Tudo tão plano que pouco se vislumbrava para além das árvores do rio. Perguntei ao guia se estávamos no sítio certo e ele acenou-me com a cabeça e disse um “sim”, lacónico.
- Então vamos lá espreitar o rio - disse-lhe eu. Respondeu-me qualquer coisa do género:
- Eu não dá mais passo. Lá, - e apontava para além do rio -, tudo turra.
Disse aos furriéis para instalarem o pessoal na orla e fui sozinho direito ao rio, tal como fizera muito tempo antes, no cenário de salitre referido atrás. Estava entusiasmado com aquele belo trecho da natureza, e muito curioso com a visão para lá do rio. Deixei a arma e o cinturão no capim e subi aos ramos fortes que vinham até ao chão, árvores estranhas e espinhosas. De ramo em ramo e já por cima da água lá no fundo escuro, percebi que o leito não teria mais de três metros de largura e apenas se adivinhava pelos reflexos, na penumbra da galeria de árvores. Nem dava para entender se tinha movimento ou estava estagnado. De onde estava já dava para perceber que do outro lado a savana continuava mas, aqui, formando um triângulo comprido entre a mata densa, esgueirando-se à direita, ao fundo, e perdendo-se de vista.
O silêncio era total. Quedei-me uns momentos a observar através da folhagem essas matas à minha frente, com a luz a ofuscar-me a visão, e decidi avançar para descer do outro lado no tapete de capim baixo e seco. Queria ir espreitar as matas que delimitavam a savana, tentar encontrar vestígios que denunciassem passagens ou permanências, enfim, o costume. Aparentemente, tudo parecia virgem desse lado do rio. Mas não consegui avançar mais. Já tinha os braços cheios de arranhões e receei cair por ali abaixo e rasgar o corpo naqueles espinhos. Fazer o caminho inverso também não foi fácil e só me senti seguro quando pus os pés no chão.
Regressei ao grupo e, depois de descansar e comer qualquer coisa, voltámos a Nhala a corta-mato. Pareceu-me mais fácil esta caminhada, mas já era quase noite quando se nos atravessou à frente a picada que vinha de Buba. Iniciámos o percurso pela picada num ponto que me pareceu mais longínquo de Nhala do que aquele em que saíramos para iniciar de manhã o corta-mato. Isto fazia alguma diferença, devido ao adiantado da hora.
Já com o Sol no ocaso e pára na picada o grupo todo. Lá de trás passam palavra que um homem se estava a sentir mal. Vou ver e está o maqueiro a tratar um soldado deitado no chão, imóvel mas de olhos abertos. Já não recordo bem, mas parece-me que tinha sido acometido de um ataque epiléptico. Disse ao radiotelegrafista para contactar com Nhala para virem com um Unimog buscar o doente. Não atendeu ninguém. Mandei fazer uma padiola (maca) com um dólmen e dois paus e recomeçámos o caminho já com a noite fechada. Disse para se ir insistindo no contacto com Nhala, já não muito longe mas, talvez por ser hora do jantar, não respondiam. Entretanto já se via o clarão da iluminação do aquartelamento e punha-se-me a questão: como iremos entrar se a sentinela mais próxima não entender a situação? Saberá que há um grupo de combate no mato? Pensava também: E o capitão e os outros, mais os das transmissões, esqueceram-se todos de nós? Estava furioso e indignado e o caso não era para menos.
Antes que os projectores do arame farpado nos batessem de chapa e precipitassem a sentinela mais próxima, quase no canto da tabanca do lado da picada, mandei parar todos antes da curva próxima e avancei sozinho, cheio de cautelas. Com a luz a encandear-me e virado para onde julgava estar o posto, berrei alto chamando a sentinela. Uma vez, duas vezes sem obter resposta. Perdi a paciência. Desertaram todos, ou quê? Dei um tiro para o ar e aproximei-me mais, anunciando o meu nome bem alto, tentando sobrepor-me ao ruído do gerador eléctrico.
Quase de imediato ouço do outro lado:
- Estou a vê-lo, meu alferes. Podem entrar.
- Não, não! - Respondi-lhe - Vais imediatamente avisar as sentinelas mais próximas e de seguida dizer ao furriel enfermeiro que trazemos um doente.
Fomos entrando, exaustos e esfomeados, mas sem grande vontade de encarar os outros. Já todos tinham jantado no aquartelamento e cada um estava na sua vida. Custava a acreditar. Eu cheguei com umas trombas que deviam meter medo e respeito. Não recordo se cheguei a jantar e se o soldado doente ficou estabilizado. Acho que ignorei toda a gente, menos o capitão, a quem expus a minha incompreensão pela falta de resposta do posto de rádio e por todos se terem esquecido que havia um grupo no mato. Mas já não tenho a mínima lembrança do que me respondeu. Também não me recordo de uma situação parecida nem antes nem depois.
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Muito mais fácil e sem tensões, foi um patrulhamento que fizemos em bigrupo, iniciado pela estrada nova em direcção a Buba em viaturas, depois calcorreando um trilho da guerrilha e regressando pela picada Buba-Nhala. Com o meu grupo, o 4.º, saiu o 3.º grupo do alferes Barros. Como tudo correu bem e, no final deste patrulhamento rotineiro, (ou contra-penetração?), podíamos dizer que fora um belo passeio. Refiro isto como pretexto para deixar aqui mais algumas fotografias, até porque não tenho muitos registos fotográficos de saídas em bigrupo.
Foto 1: O 3.º e o 4.º Grupos de combate da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 transportados em viaturas pela estrada Buba-Nhala, iniciam depois um patrulhamento apeado comandados pelo Alf. Mil. Tibério Barros e por mim, respectivamente.
Foto 2: As viaturas regressam a Nhala. Os grupos prosseguem até se embrenharem na mata, lá mais à frente, para interceptarem o carreiro da guerrilha que cruza aquela zona. Repare-se que a estrada continua por alcatroar, tal como noutros troços, por falta de alcatrão.
Foto 3: O meu grupo de combate aguarda que se ganhem distâncias para poder avançar. À frente vai o 3.º grupo. Em primeiro plano, de costas, o soldado Frade de Coimbra. Creio que era o único casado do grupo.
Foto 4: Ainda na estrada, imagem agora colhida da frente da coluna, vendo-se os homens do 3.º grupo de combate.
Foto 5: Pessoal do 3.ºgrupo, trilhando o carreiro da guerrilha.
Foto 6: O meu grupo de combate, quase sem baixas, a gozar o merecido descanso. Nesta imagem faltam os dois furriéis.
Foto 7: O 3.º grupo de combate também a descansar. O Alferes Barros é o do lenço azul e à sua esquerda a olhar para o fotógrafo, o Furriel Félix.
Foto 8: Regresso a Nhala pela velha e saudosa picada. Na imagem, o pessoal do 3.º grupo.
Foto 9: Tirada do mesmo ponto da anterior, a fotografia mostra o homem da bazuca do 3.º grupo e, em segundo plano e à direita, o Furriel Pastor do meu grupo.
Foto 10: Ainda do mesmo ponto de vista, em primeiro plano o Radiotelegrafista Bento seguido do 1.º Cabo Maqueiro Baptista Custódio, ambos do meu grupo.
(continua)
Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15376: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (29): De 08 a 16 de Abril de 1974
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