terça-feira, 30 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10597: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (19): A pobreza em chão manjaco


1. No Diário da Guiné, do António Graça de Abreu (AGA), há algumas referências à "pobreza" e à miséria" em que viviam as populações guineenses, nomeadamente  no chão manjaco... AGA tinha chegado à Guiné, há pouco tempo, tinha vivido em países ricos como a Alemanha... O contraste é duro, aos seus olhos, mesmo cotejando as duas pobrezas, a nossa e a deles...  Aqui se reproduz essa parte do Diário do AGA, com a devida vénia... (LG):


(...) Teixeira Pinto ou Canchungo, 27 de Junho de 1972

Fui dar uma volta pela terra e já ouvi uma enormidade de coisas sobre o lugar para onde me atiraram os acasos da sorte e da pouca fortuna.

Teixeira Pinto ou Canchungo é a quarta ou quinta maior povoação da Guiné, tem uma larga avenida central quase com um quilómetro e casas razoáveis estendendo-se para ambos os lados. Ao fundo situa-se a praça Dr. Oliveira Salazar. Isto é airoso e parece sossegado. À volta da avenida, para norte, ficam as tabancas ou moranças, centenas e centenas de casas pobres da população predominantemente de etnia manjaca, uma das muitas existentes neste território. Estamos no Chão Manjaco, a terra destes negros. Os miúdos pretos são uma ternura que dói. A carapinha, os olhos muito escuros, nus e sujos, as barrigas grandes, subalimentados, mas por dentro são iguais aos meninos loiros e morenos da nossa Europa. O mundo à sua volta é que os faz diferentes! (...).

(...) Canchungo, 5 de Julho de 1972 

Não é tempo de inventar coisa nenhuma, são horas de tudo descobrir.  Não posso falar, escrever sobre a guerra se não a conhecer, se não a viver até dilacerar o sentir, não posso falar deste povo, deste solo queimado se desconheço os negros e os brancos, a terra que pisamos.

Hoje, a primeira saída. Fui até ao Bachile, um aquartelamento uns quinze quilómetros a norte, na estrada para o Cacheu, junto às florestas que dão acesso ao Balanguerez e à Caboiana, zonas libertadas pelo PAIGC. Dois jipes, no da dianteira, um capitão e dois cabos armados, no meu, três homens desarmados. Fui à confiança, esta zona é controlada pelas nossas tropas, não há perigo. As populações da região, de etnia manjaca, parecem estar do nosso lado e os guerrilheiros vivem ainda longe, não atacam, não costumam atacar.

O que vi? Logo à saída de Canchungo, tabancas paupérrimas cobertas de colmo, negros indolentes, lixeiras, vacas esqueléticas, cabras, porcos passeando pela estrada. A savana africana, terras pobres para se cultivar o que quer que seja. O jipe do capitão atropelou um porco e seguiu em frente.  (...)

(...) Canchungo, 11 de Julho de 1972 

Faz amanhã um mês que estive de serviço como adjunto do oficial de dia no quartel do Depósito Geral de Adidos, na calçada da Ajuda, em Lisboa. Há quanto tempo isso foi! 

Precisava de comer um bom bacalhau ou um borrego assado, um cozido, um esplendoroso bife em qualquer parte do nosso Portugal mimoso. Parece que saí daí há três anos e ainda não tenho três semanas de Guiné.

Hoje dei comigo a pensar na grande Europa por onde já derramei algum suor durante um dos meus vinte e cinco anos de vida. Quero atravessar outra vez o velho continente, saltitar de país para país, falta-me conhecer Londres, Viena, Budapeste, Florença, Roma, sei lá, tanta coisa! Há-de acontecer. A esperança é uma menina com olhos de todas as cores.

De tarde, resolvi sair e dar uma grande volta a pé, sozinho pelas ruelas e tabancas de Canchungo, Guiné, África. Tanta pobreza! Só o que os alemães gastam para alimentar principescamente os seus cães de estimação - o que tanta admiração me causou quando dos dezanove para os vinte anos ancorei a minha vida em Hamburgo, no norte da Alemanha, - só esses marcos, moeda forte alemã, davam para alimentar milhões de crianças desta África pobre.

Mas isto não é assim tão simples. Os problemas do continente africano são muito complexos e é aqui que têm de ser resolvidos. Está quase tudo por fazer. Como passar de uma sociedade primitiva e agrária para estádios de desenvolvimento mais decentes? Há ventos que sopram quer do leste, quer do ocidente e ajudam quem? Essa ajuda é mesmo “ajuda”? Aqui na Guiné a agricultura é um desastre e funciona como a única fonte de subsistência e riqueza. Eles têm as bolanhas, os arrozais, mas são tão difíceis de cultivar! Hoje, nas tabancas vi os negros a comer. Fazem uma bola de arroz e metem-na na boca com a mão. Não têm facas nem garfos, fiquei impressionado. 


(...) Canchungo, 3 de Agosto de 1972 

Estou rico. No meu quarto tenho agora uma cadeira com encosto de lona, outra de pau e uma mesa quadrada sobre a qual escrevo. A Companhia 122 de pára-quedistas seguiu ontem para Bissau a fim de reforçar a segurança da capital nestes dias “tenebrosos” que se aproximam, com as comemorações do aniversário do PAIGC. Fui incumbido da difícil tarefa de guardar as chaves dos quartos dos alferes pára-quedistas, companheiros de degredo nas terras da Guiné. Vai daí, fui-lhes buscar duas cadeiras e uma mesa que tanto jeito fazem no meu quarto. Os páras regressam daqui a doze dias e então devolverei a mobília, ficarei de novo pobre.



Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > 1972 > Meninos (manjacos) a caminho da escola, em transporte militar.


Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados




Canchungo, 4 de Agosto de 1972 

Ontem a brincar com a minha pobreza, hoje a sentir a pobreza a sério, brutal, dilacerante. Como se já não bastasse a guerra!... 

É uma fatalidade nascer na Guiné, a terra é avara, o clima é mau, as populações também sofrem com o calor e as doenças.

Esta manhã Canchungo foi assolada por um pequeno tufão que passou sobre uma extremidade da vila e arrasou vinte tabancas, as casas de adobe e colmo das famílias negras. Meti-me no jipe e fui ver o que se podia fazer.

Um espectáculo impressionante. Os telhados das casas de palha ou de zinco voaram e despedaçaram-se, estilhaçados. Algumas tabancas ruíram completamente arrastando as pobres mobílias, os tarecos e as gentes. Felizmente não morreu ninguém, só três feridos graves que foram hoje evacuados para Bissau.

O que me arrepiou foi a atitude dos negros. Os homens tentavam salvar os restos dos haveres, as mulheres choravam, um choro feito de berros, de esponjar na lama, de gestos como eu nunca tinha visto. O corpo encarna a dor total, é o máximo da expressividade possível. Ao olhar para aquela miséria toda e para os negros transfigurados em desgraça, lembrei-me do que será a destruição de uma aldeia aqui perto, nesta mesma Guiné, pela guerra, pelo napalm, pelo fogo. São coisas que escapam à nossa compreensão. Só quem as vive pode entender.

Isto do tufão e miséria está mal escrito. É tudo muito pior do que as palavras possam dizer. Eu ainda sou “periquito” nesta guerra. Vi pouco, continuo a tentar entender. (...)


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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10025: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (18): A ponte Alferes Nunes, a CCAÇ 16, o Bachile, a 38ª CCmds, o Canchungo, o cor pára Rafael Durão, o futebol, a violência, a morte...

9 comentários:

Henrique Cerqueira disse...

Excertos do Diário do AGA
Leitura muito agradável e exclarecedora dos tempos de pobreza que o regime Português patrocinava ao povo da Guiné que supostamente eram Portugueses.O AGA constatou que a pobreza era nos Guineenses Portugueses...certo??
Seus malandros de Editores...
Sempre atentos...sempre atentos.
Henrique Cerqueira

Anónimo disse...

Gostei muito de ler este excerto do livro do nosso camarada António Graça Abreu, que descreve com exactidão o povo manjaco, as suas misérias e a tranquilidade que vivi no meio dessa boa gente, durante o ano de 1972, quando me encontrava no Bachile, na C. Caç. 16. Gostava muito de adquirir o livro, agradeço que me informem como posso fazê-lo.

Um abraço e parabéns ao autor.

Anónimo disse...

Esqueci-me assinar o comentário anterior:

Bernardino Parreira

Bernardino Sena disse...

O coração do camarada AGA, como muitos outros, não ficou insensível ao encarar com a miséria, " de cortar à faca ", que foi encontrar naquelas terras. Que infelicidade, a daquelas gentes, que depois de passados 40 anos continuam a viver de modo igual, ou pior,do que quando nós lá estávamos. Cumprimentos ao autor. Bernardino Sena

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Parece que ja tive oportunidade de elogiar os excelentes registos do Diario do AGA, imagens de uma realidade nua e crua como o é, de resto, o coracao dilacerado do continente africano, palco de rivalidades e de violencias sem par no mundo. E ainda assim, a pequena Guiné é um caso a parte.

Espero sinceramente que, entretanto, ele e outros que estiveram na Guiné por puro acaso, sem saber porqué, tenham procurado compreender ao fundo a situacao deste continente e das suas gentes.

Na verdade, o maior problema a que estiveram confrontadas as populacoes da Guiné ao longo dos seculos tem a haver com a extrema violencia e a inseguranca permanente a que estao sujeitas, ontem como hoje, situacoes que, como sabemos, perpetuam a precaridade, a miséria e a indecencia social e material.

Em consequencia, nao seria de admirar que as condicoes em que vivem sejam miseraveis mesmo que o clima e a terra (solo) fossem dos melhores. Nao sera exagerado afirmar que toda a populacao do alto Casamanca passou para o outro lado para fugir da violencia das guerras e da tirania dos agentes do poder central e local, situacao que, infelizmente, nao mudou em nada depois da independencia.

Outra dimensao, situada um pouco mais abaixo, onde podemos encontrar explicacoes, tera a ver com uma certa cultura, tradicao ou estrutura social onde predomina o comunitarismo que se traduz no colectivismo primitivo de uma solidariedade que obriga a distribuicao obrigatoria de bens e riquezas que, como sabemos, pode levar a desmotivacao do ego individualista e a desaceleracao da acumulacao economica.

Com estas notas envio um abraco amigo a todos e, de forma especial, para o meu amigo AGA.

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Tenho livro do António Graça Abreu e assinado pelo próprio.
Tenho-o como um bom retrato da Guiné daqueles tempos e da situação táctica que se vivia. Leiam o livro do António!
Mas ao AGA, não faço mais comentários, senão ele pendura-me pelos polegares ou outra coisa ainda pior...
Um Ab. para todos especilmente para o Graça Abreu. Para o AGA, nada!
António J. P. Costa
PS - Os polegares não são esssas duas partes orgânicas que vocês estão a pensar, Oh mentes prevertidas! Os polegares são dedos.

Anónimo disse...

Caro Cherno

Desculpa discordar de ti,quando referes.."colectivismo primitivo de solidariedade obrigatória"..não será antes o distribuir o pouco que se tem por mera sobrevivência...colectiva.
Como me explicas a ostentação quase paranóica de sinais exteriores de riqueza,normalmente de indivíduos com um nível cultural mais elevado,ou com posição social e ou politica,e a sua procura(riqueza) por meios quase sempre ilícitos.
Cá também existe..nos "patos bravos" que agora estão mais pró manso.
Quanto à violência e insegurança ao longo de séculos...bem, actualmente parece que tudo começou com o roubo de vacas aos felupes por balantas tendo aqueles retaliado matando os "ladrões"..seguindo-se uma perseguição sem precedentes aos felupes.. no seio das F.A...mais concentração de militares em S.Domingos..e pelo meio a opereta bufa de assalto ao quartel.. só morreram felupes...golpe de estado..coiso e tal..não me alongo porque aqui no blog não se pode falar de politica guineense, mas certamente sabes ao que me refiro..
Termino, enquanto os guineenses não se sentirem em primeiro lugar cidadãos guineenses de corpo inteiro e persistirem as rivalidades étnicas ou tribais,a violência e a insegurança.. continuarão.
Um alfa bravo

C.Martins

Cherno Baldé disse...

Caro C. Martins,

O presente Post fala de pobreza e de miséria de populacoes camponesas e o meu comentario cingiu-se apenas nesse aspecto, tentando mostrar algumas das causas profundas que estao na base, agrupando-as em internas e externas.

A violencia e a inseguranca ao longo dos seculos, dentro daquilo que os registos historicos nos permitem ajuizar situam-se no leque das razoes externas as comunidades, aqui interessa pouco de quem ou de onde vieram os actos em si. A historia é sobejamente conhecida.

Das razoes internas destaquei apenas uma, a solidariedade comunitaria, cujos efeitos conheco por dentro. Em crianca quando iamos ao campo para a lavoura os nossos irmaos mais velhos recusavam-se a dar o seu maximo porque estavam convencidos que nao adiantava matar-se fisicamente a procura de excedentes que depois serviam para alimentar pessoas ociosas.

Nao quero falar muito sobre a ostentacao de riquezas e a violencia que predomina hoje na Guiné porque quem ja leu os meus escritos aqui neste blogue sabe qual é a minha posicao. Eu, desde principio dos anos 80 que deixara de acreditar na propaganda dos "libertadores". Mas atencao, também nao vou na cantiga ingénua de que antes é que era melhor. Apesar de tudo, em pouco mais de trinta anos a Guiné saiu de 99,99% de analfabetismo para menos de 60%, isto merece ser mencionado.

Termino dizendo mais uma vez que a pobreza e a miséria nao é apanagio de nenhum povo da mesma forma que nao é o designio de nenhuma sociedade seja ela civilizada ou nao e quem quiser compreender as suas causas profundas deve recuar atras no tempo e sopesar todos os possiveis factores, retendo para analise as variaveis que achar que lhe darao respostas convenientes, sem revanchismos ou "partie prise".


Com um abraco amigo,

Cherno Baldé


Anónimo disse...

Olá Cherno,
Parece-me que às vezes devemos ser mais contidos: digo isto a propósito da percentagem de alfabetização que referes para a G.B.
Estive aí há dois anos e meio e, de facto, encontrei muitas pessoas a falar bom português, que me pareciam com um razoável nível de instrução, não sei se por força do nível escolar, se intuída de diferentes contactos. Gente nova, urbanizada, que além da escolaridade, também se desenvolve através de programas de televisão, de que terão sido espectadores atentos e ansiosos, motivados pela curiosidade pelo exterior.
Mas também encontrei uma grande escola em Buba, com muitos alunos, onde não se ensinava o português, mas o crioulo. Pergunto: essas crianças são consideradas como alfabetizadas? Porém, ainda há que distinguir entre a literacia e a iliteracia. Por outro lado, também encontrei um professor da minha geração, naturalmente de boa vontade, mas que no pouco tempo que falámos revelou algumas insuficiências para o múnus professoral. E ainda há que considerar todos os jovens dos meios rurais com mais dificuldade para frequentar uma boa escola.
Acho que já o disse aqui: considero que o ensino será a maior urgência de qualquer comunidade. E sou muito crítico do ensino em Portugal, e do deficit de colaboração de Portugal com os países que adoptaram o português como língua oficial.
Por último, considero que entre pobreza e miséria há uma diferença acentuada, muito para além das condições materiais, pois a miséria parece-me associada a um conceito de indignidade. Pode haver pessoas com meios de rendimento, que por força de vicissitudes, vivam numa miséria material, ou moral, ou moral e material. Assim, pode ser-se muito pobre, sem cair na miséria. Mas, de facto, em sentido comum, a miséria associa-se a um grau extremo de miséria.
Se calhar extravazei da contenção com estas reflexões. Farás o favor de admitir que foi só para melhor avaliar da evolução na G.B.
Um abraço
JD