segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10590: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (6): 7.º episódio: O quotidiano no K3

1. Em mensagem do dia 27 de Outubro de 2012, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), mandou-nos mais um episódio da sua passagem pela vida militar, correspondente aos melhores 40 meses da sua vida; diz ele e nós acreditamos piamente.


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

7.º episódio - Quotidiano no K3 (Saliquinhedim)

Localização de Saliquinhedim - K3 por se situar a 3Km de Farim. Vd. Carta de Farim.
Convém esclarecer que as referências, na carta, a Bafatá e Olossato não são a localização real daquelas importantes povoações da Guiné. Vd. cartas de Bafatá e Binta, respectivamente.

E era assim, o dia a dia no K3, mas também emboscando..., sendo emboscado..., patrulhando..., escoltando..., vigiando..., descansando... e lerpando.

No bar, tínhamos cervejolas de 6 dcl, semi arrefecidas naquele velho frigorífico a petróleo e até o whisky jorrava a rodos. O "barman" preparava um petit dejeuner daqueles de se lhe tirar o bivaque e que consistia em bocadinhos de pão, ainda não em pedra mas quase, a que juntava ovos inteiros, sem casca, claro, mais umas sagres e açucar... tudo misturado era um acepipe que deslizava suave e gulosamente pelos nossos sequiosos gorgomilos. Para alegrar o espírito beberrão, emborcávamos então, um Vat 69 e pronto até ao almoço, ficávamos "porreiros mesmo pá".

Este (o almoço) era óptimo e variado quanto baste: às 2.ªs, 4.ªs e 6.ªs: dobrada liofilizada com feijão branco; às 3.ªs, 5.ªs, Sab e Dom: feijão branco com dobrada liofilizada. De quando em vez, porém, comíamos uns bifitos de vaca tuberculosa, que comprávamos, sem falar com os donos, por ali nos matos próximos, mas raramente, pois que o perigo também lá morava e só arriscávamos quando gostávamos de parecer gente fina.

A maior carência tinha que ver com o ingerir "frescos", nome que davam aos produtos hortícolas. Raramente chegavam lá ao fim da linha, já que antes passavam por vários "esfomeados", distribuídos desde Bissau, até nós. Compensávamos tal falta, em Farim e aquando do aprovisionamento diário da água para uso da Companhia.

Aqueles chóriços assados na brasa e bem regados com um tinto especial da marca "Água de Lisboa", substituíam com vantagem evidente, a falta das vitaminas, proteínas, sais minerais e outros que tais. Por fim e com a barriguita quase aconchegada e já do lado de lá do rio, atirávamos (DE PÉ) uma granada (DE MÃO), a fim de afugentar algum empecilhoso crocodilo dundee, que por ali andasse e tomávamos uma banhoca, coisa recomendável e saudável, dado o volume da comida... bebida.

A tarde era destinada a algum descanso para que à noite pudéssemos aparecer, aos habituais encontros, com alguma compostura e pontaria afinadas, não sem que antes se houvessem limpo as maquinetas G3 e até nisso tive azar que a minha tinha mais um bocadinho para polir, pois era de bipé.

(Continua)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10579: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (5): 6.º episódio: Pela primeira vez o quartel foi atacado

8 comentários:

Anónimo disse...

Até qu'enfim que há alguém que explica porque é que aquilo era designado K3.

Obrigado.

SNogueira

Anónimo disse...

Camarada SNogueira, e sobre estes magníficos textos, escritos por outro não menos, magnífico, nada há a dizer? De qualquer forma o esclarecimento pertence ao camarada EDITOR Carlos Vinhal que tem vindo a acrescentar o que de importante há a acrescentar e a quem o pobre autor agradece.
(Veríssimo Ferreira, Ex Fur.Mil CCaç 1422)

Luis Faria disse...

Veríssimo Ferreira

"Bifitos de vaca comprada sem falar com os donos"...isso não se devia fazer!?!.Se fossem suinos ou nheques ...isso sim...de quando em vez!?!

Quanto ao "petit dejeuner"?!

Ovos bebidos pela casca,batidos num copo com açucar,batidos num copo com verdasco tintol e açucar...já experimentei.Com côdeas de pão seco e CERVEJA...valha-me Deus,macio pode ser mas pesado e "aerofagiante"...deve ser optimo para deitar a carga ao mar!

O que se inventava por aquelas paragens para gastar e gozar o tempo????!!!!

Hei-de experimentar!
Um abraço
Luis Faria

Luís Graça disse...

Espantosa também é a capacidade do Zé Tuga em racionalizar e simplificar o que é abstruzo, quadrado, ligado ao complicómetro, e sobretudo que tem mais de 3 sílabas...

Digam-me lá quem é que consegue dizer, a não a ser a soletrar, um palavrão como SA-LI-QUI-NHE-DIM ? Cinco sílabas!... Palavras do tamanho de um comboio... Que raio de topónimo!...

Na minha terra, RA-PA-RI-GA, com 4 sílabas, dizia-se PRI-GA, no meu tempo de menino e moço... E SÃO BAR-TO-LO-MEU... dizia-se SAMERTLAMEU...

Perfeita economia de meios!... Para quê gastar mais latim, saliva e cordas vocais? Quando um gajo acabava de dizer o... DIM, já tinha levado com um balázio !...

Por isso, a substituição de SALIQUINHEDIM por K3 é uma solução genial...

Meu caro Carlos (Vinhal), nunca tinha pensado nisso: k3 = a 3km de Farim!... O que a gente aprende neste blogue, meio século depois ou quase...

Quanto a Bafatá e Olossato, tens razão, há (ou havia) mais Marias na terra, ou melhor, mais terras com Marias...

Um abração a todos os camaradas que passarm por (ou estiveram em) o K3... topónimo lendário!

Bispo1419 disse...

Caro camarada Veríssimo Ferreira, meu contemporâneo na Guiné:

Só para dizer aquilo que queres que se diga,( ver réplica, acima, a SNogueira) que estás a produzir "magníficos textos, escritos por (ti) não menos magnífico".

Vá lá , ó vaidoso, não exageremos! Mas da minha parte quero dizer que estou a "adorar" o teu estilo literário, nada fácil quando se quer falar de coisas sérias usando a ironia. E tu usa-la aqui em grande! Começa logo no título "Os melhores 40 meses da minha vida". Aguardo com curiosidade a parte restante.
Um abraço do
Manuel Joaquim

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Na Guiné, o caso K3 é, simplesmente, um dos muitos que se podem encontrar no território. Sem conhecer este caso em particular, posso deduzir de outros casos semelhantes e que se podem encontrar em outros sitios.

É assim, na época colonial os responsáveis pela construção das estradas faziam o esforço de instalar marcos em betão ou simplesmente através de uma chapa em ferro, assinalando os acessos das cidades. Assim K3 seria, como bem referiu o Carlos Vinhal, um alerta a dizer aos condutores que estavam a 3 km de Farim, em seguida seria utilizada como referencia local, podendo transformar-se depois num topónimo.

Há muitos exemplos assim e o mais conhecido será, talvez, a Chapa-Bissau que, também, teria, originalmente, a mesma função de indicar o principio e fim dos limites do que era a cidade de Bissau em meados dos anos 60. Ao que tudo indica, também seria "Bissau 1/2km" ou coisa parecida e transformou-se no é hoje a "Chapa Bissau".

Quanto a saliquenhendim (omito o "i" de proposito) é um topónimo de origem mandinga (como o são todos os outros nesta região Soninquê do Oio) que é a junção das expressões Saliquenhé + o diminuitivo "dim" (pequena/o) o que na tradição mandinga significa uma aldeia nascida de uma outra suposta ser a originária, a mãe, a maior.

Curiosamente, vamos encontrar aqui, sem alterações, a repetição de muitos toponimos pré-existentes nas regiões de Casamança (Senegal), Bafatá e Gabú de onde essas populações teriam partido com a invasão e conquista Fula no século XIX. São os casos de Bafatá, Cambaju, Fajonquito, Saliquenhé entre muitos outros.

Um abraço amigo a todos,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

PS:
O nome mandinga por que é conhecida a cidade de Farim é FARIMDINDIMBANKÓ, ou seja Farim- terra-jovem o que, na lógica e entender do Luis Graça dava para levar mais do que três balágios.

Para o africano em geral e o Mandinga em particular, a gestão do tempo joga sempre à nosso favor, não há pressa nenhuma e há tempo bastante para colorir artisticamente as palavras bem ao estilo do "Griot" Djely (Bardo tradicional).

Depois, se houver fome na morança ele pode ir a morança de quem tem um pouco mais e contar com a solidariedade dos outros e aqui, na minha opinião, é onde começa a desgraça da africa e dos africanos embora outros a apresentem como uma vantagem.

Cherno

Anónimo disse...

PS:
O nome mandinga por que é conhecida a cidade de Farim é FARIMDINDIMBANKÓ, ou seja Farim- terra-jovem o que, na lógica e entender do Luis Graça dava para levar mais do que três balágios.

Para o africano em geral e o Mandinga em particular, a gestão do tempo joga sempre à nosso favor, não há pressa nenhuma e há tempo bastante para colorir artisticamente as palavras bem ao estilo do "Griot" Djely (Bardo tradicional).

Depois, se houver fome na morança ele pode ir a morança de quem tem um pouco mais e contar com a solidariedade dos outros e aqui, na minha opinião, é onde começa a desgraça da africa e dos africanos embora outros a apresentem como uma vantagem.

Cherno