1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Agosto de 2012:
Queridos amigos,
No exato momento em que me preparo para o estatuto de funcionário público reformado, vou limpando as gavetas da secretária e as toneladas de papel nas estantes.
Abri um envelope e encontrei todo o correio destinado à família, havia ali de tudo, desde notícias sobre o andamento do trabalho até mensagens às filhas. Trata-se de um testemunho insignificante de uma cooperação que não teve seguimento, vinha cheio de entusiasmo e não perdi a esperança até tudo se ter desmoronado. Antes de rasgar tudo, dou-vos em síntese conhecimento desta experiência profissional e pessoal.
Um abraço do
Mário
O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (1)
Beja Santos
O relato sumário destes acontecimentos aparece em “A Viagem do Tangomau”, o porquê e o como aterrei em Bissalanca nos inícios de Outubro de 1991, naquele tempo problemático da Guerra do Golfo, da assunção do multipartidarismo na sociedade guineense e dos preparativos da Cimeira da Terra. Tudo começou quando Portugal convocou os ministros do ambiente da CPLP para definir posições conjuntas quanto aos dossiês que iriam ser discutidos no Rio de Janeiro, em 1992. Nessas conversações o ministro dos Recursos Naturais e da Indústria da Guiné-Bissau, invocando um protocolo de cooperação em vigor entre os dois países, solicitou um apoio técnico para instituir as bases de uma política de consumidores no país. A escolha para tal missão recaiu em mim, andei lá uma semana em 1990 a apurar o que se pretendia e o que se pretendia era, surpreendentemente, montar um serviço que capacitasse a administração pública local a intervir a favor das melhores condições de vida dos guineenses. Ficou estipulado que eu viria passar o último trimestre de 1991, ao dispor do CITA – Centro de Investigação e Tecnologia Aplicada, unidade dependente do referido ministério, por acaso instalado num sítio conhecido de todos os que ali combateram: estava em pleno Quartel-General, no rés-do-chão à direita, onde recebíamos guia de marcha para os nossos aquartelamentos. Foi exatamente neste ponto que um sargento me informou, sem nenhuma preparação, que Missirá tinha ardido na véspera, na noite de 19 de Março de 1969.
O que ali se passou consta de uma informação pormenorizada que redigi já em Lisboa, em Janeiro seguinte, dos relatórios semanais que enviava à Vice-Presidente do Instituto do Consumidor e das cartas que enviava para casa, duas vezes por semana, não me esquecendo de ir aborrecendo quem me lia com uma floresta de trivialidades, algumas delas associadas a tempos idos. A caminho da reforma, a entregar no Centro de Documentação do meu local de trabalho toneladas de papéis, a embalar aquilo que é mesmo meu, vou enchendo sem desfalecimento o caixote do lixo com tudo aquilo que está definitivamente arquivado ou é inútil. E soube-me bem reler as cartas que seguiram para Lisboa e que vão orientar este relato que vale o que vale.
Cheguei a Bissalanca com resmas de documentação destinada a ser oferecida aos interlocutores da administração interessados em saber por onde se começa qualquer planeamento para a organização de uma política de consumidores. Fui recebido por dois técnicos no meio de uma tarde da época das chuvas (plúmbea e com sinais de tornado à vista) que logo me disseram à queima-roupa que não devia ter vindo, havia muita gente fora, vivia-se afanosamente a formação de partidos. Apeteceu-me brincar, declarei solenemente que não vinha apoiar a formação de nenhum partido, toda a documentação que trazia não era material para comícios. Os meus mal-humorados anfitriões conduziram-me aos aposentos, um quarto na empresa CICER, um espaço interessante, com condições de trabalho e vigilância permanente. Ficava a cerca de 2 km da cidade, só havia o inconveniente de nas noites sem lua vir aos tombos por aquela extensa bolanha, ficaram gratas recordações desses passeios à noite, vindo do jantar na Pensão Central, às vezes quem tinha por mim comiseração era o Dr. Delfim Silva, mais tarde ministro dos Negócios Estrangeiros.
Atirei-me aos contactos, identifiquei os organismos mais motivados (saúde pública, serviços de inspeção de alimentos e do comércio interno), ao fim de alguns dias já estávamos a preparar um esboço para um despacho presidencial de um Conselho Interministerial de Defesa do Consumidor, órgão de consulta do Governo, que possuiria o seu programa autónomo de atividades e a capacidade para emitir recomendações. Inevitavelmente, o seu funcionamento ficaria na órbita do projeto de cooperação com as autoridades portuguesas. E escrevo para casa: “A situação económica e financeira do país excedeu todos os limites críticos e nesta altura não há quadro nenhum que não volte as costas à situação caótica, andam todos eufóricos com a formação de partidos, só aparentados com os sociais-democratas já ouvi referências a três, informaram-me que tudo anda acompanhado de perseguições expurgos e demissões, os quadros mais competentes dizem em voz alta que querem ir ganhar a vida a quem os trate com dignidade”.
Pedi uma entrevista aos sociólogos e economistas do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa para ouvir a sua opinião quanto às perspetivas do consumo na Guiné. Durante a reunião, um deles perguntou-me se eu tinha consciência de que os padrões nutricionais não estavam tão degradados como noutros pontos de África devido ao modo como a FAO geria a distribuição de alimentos, uma parte significativa da população tinha acesso a produtos agrícolas e a peixe da bolanha. Outro questionou-me se eu já tinha entrado numa farmácia, valia a pena lá ir para perceber como de farmácia para farmácia os medicamentos se podiam vender 20 vezes mais caros. E quando a reunião acabou fiquei a saber que o país estava paupérrimo mas tinha 39 ministros e em quase todos os ministérios recebia-se o vencimento com fartos meses de atraso, como é que eu julgava ser possível criar equipas motivadas para os primeiros programas de sensibilização. Deu para pensar, havia que moderar a fé que me trouxera de Lisboa.
No meu espaço na CICER era bem agradável trabalhar à noite mesmo com as repetidas faltas de energia, levara trabalho do Instituto para acabar e tinha sobretudo que alimentar a minha colaboração no Jornal de Notícias e no Comércio de Víveres.
Havia pausas no trabalho, pois claro. Nas errâncias de contactos, conheci o nosso compatriota Paulo Salgado [, e hoje membro da nossa Tabanca Grande,] que me levou ao Cumeré, é uma história fácil de contar. Quando estava em Missirá, de vez em quando recebia uns bilhetes impertinentes de um tal Mamadu Jaquité que me tratava invariavelmente por “Alferes da Merda, se fores vivo para o teu país será um grande desgosto e vergonha para mim”. Logo em 1990, bati à porta na fortaleza da Amura, um oficial de boina vermelha (Ansumane Mané) informou-me que Mamadu Jaquité estava colocado no Cumeré. Pois o Paulo Salgado, nosso confrade, ofereceu-se para me levar lá, foi um passeio agradável, viajaram connosco igualmente a mulher e a filha [, a Conceição e a Paula, igualmente membros da nossa Tabanca Grande].
No Cumeré apresentei-me ao coronel, um homem de estatura meã e olhos intranquilos, disse-lhe que era o tal alferes da merda que vinha abraçá-lo, trazia ali uma caixa isotérmica com umas bebidas com e sem teor alcoólico. Estávamos no meio de uma atmosfera descontraída quando disse ao coronel que ele quase me tinha liquidado na mina anticarro de 16 de Outubro, foi por um triz que não cumpriu as suas promessas. Ele refutou, tinha de facto pensado em desfazer-se de mim mas naquele dia quem montara a mina e ficara emboscado fora o tenente Armando Correia, e lá o chamou, convinha esclarecer o assunto. O tenente entrou de sorriso aberto e desfazia-se em desculpas, minutos depois estávamos todos às gargalhadas. O pior de tudo foi quando ele me pediu, à despedida, meia dúzia de pesos para comprar arroz, óleo e sabão, fui-me mesmo abaixo, voltei a cara para ver Bissau iluminada, parecia querer esquecer que aquele homem, seguramente um bravo militar, pedinchava uma ajuda ao antigo inimigo, a que ultraje um ser humano se tem que sujeitar para estender as mãos à caridade. E escrevo para Lisboa: “Vivem na mais confrangedora das misérias e interrogo-me o que vai no íntimo destes homens que deram a sua juventude para ter um país independente e vivem no maior caos económico”. Mais tarde o Paulo Salgado levou-me a Olossato, que me lembrou Sintra, ressalvadas as distâncias, era uma povoação frondosa com um enorme mangal e muitos laranjais.
Voltando ao trabalho, foi-me apresentado um jornalista da televisão local que se mostrou disponível a fazer um pequeno programa de sensibilização. Garanti-lhe todo o apoio. Foi assim que nasceu o programa televisivo “1 Milhão de Consumidores”, que viveu várias semanas e que foi uma das minhas fontes de alegria enquanto lá estive.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 DE OUTUBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10574: Notas de leitura (422): "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu", de Manuel Luís Lomba (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
Olá Mário.
Estou a gostar do início, e à espera da continuação. Perdoa-me, eu ainda não li o teu livro, e não sei como o irei adquirir, e também não sei se vem lá tudo isto explicado, mas que tem interesse, lá isso tem. Estes textos, são documentos, para a história do novo país que é a Guiné-Bissau, e não só. Creio que vais no futuro abrir muitos "balaios de arroz", que estavam fechados há muitos anos!.
Um abraço do amigo Tony Borie.
Lembro muito bem este tempo, e a tua guerra para implementares melhores condições para os consumidores Guineenses. Não deves lembrar-te uma noite ao jantar em casa do meu amigo Palma, que também vivia na CICER, te disse que pela minha experiência na Guiné considerava as tuas pretensões utópicas, no entanto, acreditavas no teu projecto, admiro-te por isso.
Um abraço e sorte nesta nova etapa da tua vida.
Avelino Barros
Muito bem, Mário Beja Santos!
És quem és, procuras ser um pouco mais do que és, mas és figura incontornável neste blogue que de ti tanto depende.
E, na minha humilde mas enviesada opinião, os teus textos, às vezes, até têm qualidade, qualidade factual e humana.
Também tenho aprendido contigo e ainda acabamos a fumar o cachimbo da paz (com o C. Martins a acender o fornilho e a abanar-nos o fumo) ainda acabamos aos abraços.
Uma questão apenas. Atenção aos princípios deontológicos do blogue.
Leio, em 1990:
"O pior de tudo foi quando ele (o guerrilheiro que queria matar o MBS) me pediu, à despedida, meia dúzia de pesos para comprar arroz, óleo e sabão, fui-me mesmo abaixo, voltei a cara para ver Bissau iluminada, parecia querer esquecer que aquele homem, seguramente um bravo militar, pedinchava uma ajuda ao antigo inimigo, a que ultraje um ser humano se tem que sujeitar para estender as mãos à caridade. E escrevo para Lisboa: “Vivem na mais confrangedora das misérias e interrogo-me o que vai no íntimo destes homens que deram a sua juventude para ter um país independente e vivem no maior caos económico”.
Sempre atento e camarada,
António Graça de Abreu
Pois é pois é...
A mim sucedeu-me o mesmo em 2006..
Conheci antigo IN..com o posto de major..após a apresentação e respectivo abraço, pediu-me desculpa..não sei de quê..
Disse que os melhores tempos da vida dele os tinha passado no Porto,onde tinha feito uma reciclagem no âmbito da cooperaçâo militar Portugal-Guiné..pudera ,usufruíu das mordomias do respectivo posto..no fim fez-me o mesmo pedido com lágrimas nos olhos..
Nos "entretantos"..neste momento há uma autêntica caça às bruxas sem precedentes..e continua o surto de cólera..
É tão triste..
Para o A.G.A.
Sobre o "fumar o cachimbo da paz",para além de o acender e abanar o fumo ainda ofereço um pulmão.
Um alfa bravo
C.Martins
Caro Camarada Graça de Abreu.Como sempre,algo aprendo com os teus variados comentários.Os que fizeste,os que tinhas decidido deixar de fazer,e os que vais fazendo.Um pouco,e usando abusivamente(!) o tal cachimbo que referes, como aquele amigo que decidiu deixar de fumar.Deixou completamente de fumar.E, unicamente para mostrar a si próprio que tinha total controlo nas suas decisões...voltou a fumar.Mas,e pondo de parte estes pessoalismos amigos,confesso näo ter compreendido o que queres dizer quando escreves:"Atencäo aos princípios deontológicos do blog". Óbvias limitacöes pessoais,levam-me a näo encontrar no poste razões para tal preocupacäo...."deontológica".Onde estarei errado? Um abraco.
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