terça-feira, 30 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10594: Do Ninho D'Águia até África (22): Uma história de amor em pleno conflito (Tony Borié)

1. Vigésimo segundo episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (22)

Uma história de Amor, em pleno conflito

Já era a segunda vez que desembarcava na província com um camuflado novo. Sabia quase todos os pormenores, falava algumas palavras em “crioulo”, embora não exercesse uma conversação prolongada, sabia que não havia alojamento para todos os militares, que no princípio iriam ter muitas dificuldades, alguns iriam chorar, outros iriam revoltar-se, mas depois tudo se arranjaria, e até, iriam gostar da província. Era isto que esta personagem, baptizado com o nome de “Gascidla”, dizia.

Era oriundo do Alentejo, mais propriamente de uma aldeia próximo de Borba, tinha cumprido uma primeira comissão de serviço militar na província da Guiné, dizia que era cifra, depois com as modernices, chamavam-lhe operador cripto, esteve estacionado no arquipélago dos Bijagós, onde só havia paz e bom clima, não tinha nada a dizer da comida, falava com as raparigas e passava quase todo o tempo a bronzear-se nas praias quase desertas, e dizia:
- Eu tinha uma ilha e uma praia para onde só os locais iam, portanto não havia estranhos, e para onde levava as minhas namoradas.

Acabou a sua comissão de serviço e regressou à Metrópole, como então se dizia. Regressa à sua aldeia, não quis mais pegar em qualquer alfaia agrícola, andava por ali, fazia uns biscates que não envolvessem muito esforço físico, era cliente assíduo do café da aldeia, onde numa pequena esplanada, que havia em frente, se sentava numa cadeira, debaixo de um enorme guarda sol, com reclame a determinado refrigerante, cigarro na boca, a chávena do café, um copo com água, o maço de cigarros e o isqueiro em cima da mesa, cruzava a perna, às vezes em posição provocativa, principalmente para pessoas do sexo feminino, e ele sabia isso, e olhava as pessoas que passavam.

Já lá ia algum tempo e, vendo a cor bronzeada do seu corpo a desaparecer, com algum desespero, começa a procurar emprego. Na lavoura havia muito trabalho, mas o “Gascidla” dizia:
- Eu sei conduzir, embora não tenha carta de condução, sei ler e escrever, não vou pegar numa enxada como antes, agora quero um trabalho limpo, que me dê algum dinheiro.

Por fim arranja emprego na distribuição de garrafas de gás “Gascidla”, que na época estava muito em voga, num agente que havia na vila. Nunca ninguém chegou a saber, pois ele falava, mas nunca dizia a verdade, qual o motivo que o levou a ir ao quartel general de Évora e meter requerimento para regressar ao seu paraíso que era o arquipélago dos Bijagós, onde tinha passado dois anos de felicidade. Alguns que eram oriundos da área da sua aldeia diziam que foi motivado pelo contacto com algumas clientes, que eram casadas, e não resistiam à cor do seu bronzeado e que alguns maridos ciumentos, principalmente ciganos, estavam prontos a matá-lo, com uma navalha, entre outras coisas. Mas continuando com a história, o “Gascidla”, pois era assim que ficou baptizado, apresenta-se um dia na unidade militar onde se estava a formar o comando de que o Cifra fazia parte, para juntos irem para a então província do ultramar, e muito contente diz:
- Finalmente vou regressar ao lugar de onde nunca devia de ter saído!

O Cifra, muito admirado, diz-lhe:
- Mas a guerra está lá à nossa espera, pois existe um grande conflito, há um movimento organizado e armado que quer a independência!

E ele respondia, com ar de quem sabe o que diz:
- Isso é encostado à fronteira, mas para onde nós vamos, e onde eu meti requerimento para ir, é um paraíso, tu vais ver!

Desembarcados na província, passou por todas as agruras que o Cifra passou. A princípio dizia que já sabia que era assim, mas passado uns meses, maldizia a sua sorte e afirmava que tinha sido enganado. Tinha dificuldade em comer, não executava o seu trabalho com eficiência, pois trocava as palavras ao decifrar uma mensagem e dizia que não tinha sido treinado para este trabalho, que antigamente a cifra era mais simples. Também dizia que lhe prometeram uma promoção na altura em que se alistou de novo no exército, mas continuava primeiro cabo sendo mais velho do que alguns sargentos e furriéis. Quando ia para a aldeia, que existia próximo do aquartelamento, procurava falar o seu crioulo, mas como era uma zona de etnia “Balanta”, as raparigas não o compreendiam, andava revoltado.

O “Gascidla” fumava muito, comia pouco, só gostava de feijão e grão de bico e os colegas sabendo isso, sempre lhe enchiam o prato, quando a ementa era “rancho”, bebia alguma água, não gostava de vinho, às vezes bebia uma cerveja, mas café negro, era a sua bebida preferida. Pedia ao Cifra para lhe decifrar as suas mensagens, pois era o Cifra que entrava de serviço a seguir a ele e tinha sempre umas tantas mensagens já antigas para decifrar, que depois entravam no comando com um substancial atraso, o que levava o comando a questionar, caindo as culpas no “Gascidla”, pois havia uma folha de entregas, com a hora do seu recebimento, ele não se importava e respondia:
- Promovam-me, como me prometeram e mandem-me embora daqui.

O comando, fazia “vista grossa”, pois o trabalho, embora atrasado, continuava, até que passado mais ou menos um ano, o “Gascidla”, pede um mês de férias para ir gozar no arquipélago dos Bijagós.

Aí possivelmente, encontrou uma das suas antigas namoradas, convive com ela e no final das férias decide trazê-la para a vila onde estava estacionado. Aluga um quarto na casa de uma família Libanesa, onde a namorada fica instalada. A rapariga, que era bastante bonita, de etnia “Bijagó”, tinha marcas na pele do corpo, da tribo a que pertencia, com que os pais a marcaram à nascença, diversos colares no pescoço, que com os anos lhe fizeram prolongar esse mesmo pescoço, a sua roupa era primitiva, andava descalça, com algumas argolas na parte inferior das pernas, portanto não era bem vista em território “Balanta”, e como não falava português, era muito difícil de se fazer compreender, só mesmo com a ajuda do “Gascidla”, que a acarinhava e fazia tudo para que a rapariga sentisse menos a falta da sua família, da sua praia e do ambiente natural a que estava acostumada. Entre outras coisas, o “Gascidla” levava comida do aquartelamento para a sua companheira.

Para lhe ajudar a passar o tempo, com tiras de folha de palmeira, bananeira, e de outras plantas, fazia cestos e outros utensílios, alguns em miniaturas, que eram autênticas obras de arte e também, sempre sobre a guarda e protecção do “Gascidla”, pescava camarão com uma rede, encostada à ponte do rio, metida na lama. Algum desse camarão, era vendido aos militares. Quando questionado pelo Cifra, se era feliz no que estava a fazer, ele dizia:
- Nunca fui tão feliz em toda a minha vida, ela é a mulher com que sempre sonhei, ela é real, nada nela é falso, contenta-se com aquilo que o mundo lhe deu, não tem ganância, não tem inveja, adora o sol e quando se ri para mim, só eu existo no seu pensamento. Sou feliz, Cifra, e vai ser ela que me vai dar muitos filhos.

Pelo menos nas palavras, tinha toda a razão. O tempo foi passando e quando faltavam dois meses para acabar a sua segunda comissão, com a ajuda dessa família Libanesa e do comando a que o Cifra pertencia, o “Gascidla” arranja trabalho numa sucursal da companhia ultramarina, no arquipélago dos Bijagós e como falava algum crioulo aí ficou a viver com a sua companheira.

Isto demonstra que o amor pode sobreviver no meio de uma guerra. O que se passou depois, com a continuação dessa mesma guerra, o Cifra nunca soube, mas concerteza que devia de haver algumas crianças Bijagós, a brincarem na tal praia a que só os locais iam e que não precisavam do calor do sol para ficarem com a pele do seu corpo bronzeada, pois já nasceram com essa tonalidade.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10578: Do Ninho D'Águia até África (21): O Tabaco, para alguns (Tony Borié)

1 comentário:

paulo santiago disse...

Tony
Gostei desta bela história de amor em
tempo de guerra.
Continuas a surpreender
Abraço