domingo, 28 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10588: O Alenquer retoma o contacto (7): Texto sobre a vida de um soldado (Armando Fonseca)

1. Mensagem de Armando Fonseca (ex-Soldado Condutor do Pel Rec Fox 42, Guileje e Aldeia Formosa, 1962/64), com data de 17 de Outubro de 2012:

Caro camarada Vinhal e restantes participantes da tabanca grande, um bem haja a todos.
No ano letivo de 2011, frequentava a minha neta o 9.º ano, foi incumbida de fazer um trabalho em conjunto com três colegas sobre a guerra do ex-ultramar sobre regime de Portugal, e, então ela pediu-me para lhes falar sobre isso, visto eu ter estado envolvido nessa guerra.
Então elaborei um texto para depois recitar para gravação em vídeo, ao qual elas juntariam fotografias a ilustrar o texto.
Assim foi e, o trabalho embora um pouco adulterado saiu bom.

Vou enviar esse texto, e se os digníssimos editores acharem por bem publicá-lo muito bem, caso contrário tudo bem.
Não envio o próprio trabalho porque devido aos meus fracos conhecimentos de informática não me será possível fazê-lo.


O Alenquer retoma o contacto (7)

Texto sobre a vida de um soldado

"Chamo-me Armando Fonseca, tenho 70 anos, cumpri o serviço militar desde Abril 1961 até Julho 1964. Durante esse período 26 meses foram passados na Guiné, desde Maio de 1962 até Julho de 1964.

Quando em Janeiro de 1962 fui mobilizado para ir para essa província já havia guerra em Angola e os Guineenses pela mão do PAIGC davam os primeiros passos para o mesmo fim.

Durante o período que antecedeu o embarque, houve alguma preparação para o fim em vista e eu fazendo parte de uma secção de Auto-metralhadoras, como condutor, fui enviado juntamente com os restantes companheiros da secção para a Escola Prática de Cavalaria em Santarém a fim de aí recebermos instrução de operação e manutenção do carro e do respectivo armamento que o compunha.
Terminada esta instrução regressamos para Castelo Branco para nos juntarmos aos restantes camaradas do Pelotão para aí continuarmos com a preparação, nem sempre a adequada, para os fins que nos esperavam.

Assim chegou o dia 20 de Maio de 1962 dia em que o navio "António Carlos" nos esperava no cais de Alcântara para nos transportar até à Guiné. Nesse dia, lá estavam os meus entes mais queridos para se despedirem de mim, meus pais, irmão, namorada e mais alguns familiares e amigos. Depois das despedidas embarquei no navio e quando da largada do mesmo ele emitia alguns apitos que faziam cortar o coração, esses silvos despertaram em mim tal angústia que ainda hoje me causa arrepios recordar a partida.

O navio de carga ANTÓNIO CARLOS fotografado no Norte da Europa com as cores da Sociedade Geral (Imagem da Skyfotos – colecção de L. M. Correia) In: Dicionário de Navios Portugueses, com a devida vénia.

A viagem que durou sete dias decorreu de forma normal, mas quando cheguei o ambiente era totalmente diferente ao que estava habituado, um calor abrasador, um cheiro próprio daquele ambiente local, enfim tudo coisas a que me fui habituando.

O meu pelotão ficou instalado nos arredores de Bissau, no Quartel General numa caserna onde só existiam os ferros das camas e os colchões, a roupa de cama estava ainda embarcada no navio e só nos foi distribuída uma manta para ornamentar a cama e nos cobrirmos. Com o calor intenso que se fazia sentir era impossível suportar a manta, por outro lado destapados, os mosquitos atacavam em força, era insuportável aquela situação.
Passados três dias apareceram então as roupas de cama e cada um a seu belo prazer foi na cidade mandar fazer mosquiteiros que colocados sobre as camas evitavam assim sermos comidos pelos mosquitos durante a noite.
Havia pouca higiene, visto a agua ser muito pouca e de muito má qualidade. Havia um período do dia em que havia água nos balneários para se tomar banho mas fora desse período já não era possível tomar banho, por falta de água.
A água para se beber tinha que ser filtrada em equipamentos próprios e tratada quimicamente com comprimidos a fim de evitar a propagação de doenças, tais como a malária e o paludismo.

Nesta altura a guerra ainda estava muito no começo, havia aqui e ali algumas escaramuças e nós ficamos a fazer a segurança da cidade e do aeroporto. Então, fazia serviço durante 24 horas no aeroporto de Bissalanca, passando inspecções à pista e mantendo a segurança nas aterragens e nas descolagens dos aviões tanto civis como militares. Durante essas inspecções por vezes eram avistadas cobras que atravessavam a pista e nas cercanias junto do arame farpado viam-se também hienas e onças que procuravam o seu meio de subsistência.
Nos restantes dias estávamos às ordens para qualquer imprevisto a que tivéssemos que acorrer. Às vezes, muito raras, tinha um dia de folga que aproveitava para ir até à cidade, para ir ao cinema ou fazer algumas compras de certos artigos que não me eram fornecidos.

Assim decorreram os primeiros dezasseis meses, até que o Batalhão que se encontrava em Mansoa e tinha distribuídas companhias por Mansabá e Bissorã as quais tinha que abastecer de géneros alimentícios e outros já estava com dificuldade em se movimentar devido aos ataques inimigos e então pediu a Bissau um carro de Cavalaria para apoio às colunas que tinha que fazer deslocar para o abastecimento dos seus homens e, calhou à guarnição do meu carro essa missão.
Fui então deslocado para essa região para apoio a essas colunas que diariamente se tinham que deslocar a Mansabá ou a Bissorã. Aqui os perigos aumentaram porque a guerra já estava a tomar outras proporções, havia emboscadas, com as quais se tinha que lidar especialmente nas deslocações a Mansabá e começavam a aparecer minas anti-carro aqui e ali montadas nos caminhos.

Numa das minhas deslocações com destino a Mansabá, mais ao menos a meio do percurso, rebentou uma mina centésimos de segundo antes do carro estar sobre o local onde ela estava montada, abriu uma grande cratera sobre a qual o carro passou pelo ar mas nada de mal nos aconteceu. Para os restantes carros da coluna passarem teve que ser aberta uma picada ao lado da estrada porque a cratera era maior que a largura dos rodados dos carros.

Certa madrugada foi recebida informação de que uma pequena povoação, denominada Porto Gole, situada numa das margens do rio Geba estava a ser atacada, lá fomos de imediato em socorro do chefe de posto e dos cipaios que mantinham ali vigilância, visto o rio ser um meio importante de comunicação entre Bissau e o interior Norte. Ao chegarmos encontravam-se queimadas várias moranças, dois cipaios mortos e o chefe de posto e parte da população tinha sido raptada pelo inimigo. Permaneci aí alguns dias até ser montado com segurança um destacamento militar que passava agora a garantir a segurança dos barcos que circulavam no rio.
O percurso para essa povoação era muito sinuoso tinha que se atravessar bolanhas em que dificilmente se via a estrada por onde se podia passar, visto estar cercada de água e até submersa nalguns pontos. Numa dessas deslocações, devido ao acidentado do terreno, magoei um dedo da mão direita que me deixou inapto durante algum tempo, assim foi nomeado outro condutor para me substituir durante esse período, só que, na primeira deslocação que fez a Bissorã, rebentou uma mina debaixo do carro que o deixou totalmente inutilizado, uma das rodas da frente foi ficar em cima de uma árvore e por lá permaneceu muito tempo, visto ter ficado de modo que era muito difícil retirá-la. O condutor foi o único que sofreu algumas escoriações, a restante tripulação não sofreu nada devido à boa blindagem que compunha aquelas auto-metralhadoras.

Sem carro já nada fazia naquelas paragens e regressei a Bissau substituído por outra guarnição com outro carro. O período de permanência em Mansoa decorreu entre 28 de Agosto e 18 de Novembro de 1963. Chegado a Bissau continuei com os piquetes ao aeroporto e outras missões similares, só que, a 21 de Janeiro de 1964 é o pelotão destacado para o Sul para reforçar as tropas ali existentes, visto a situação ali já estar muito difícil e lá vamos nós a caminho de Aldeia Formosa, hoje chamada de Quebo.
Para fazermos esse percurso que em condições normais durava algumas horas, demoramos dois dias porque a estrada nalguns locais tinha que ser toda picada a fim de detectar se havia minas montadas. A certa altura do percurso fomos atacados por milhares de abelhas que deixaram toda a coluna em alvoroço, esses ataques eram tão ou mais perigosos que os provocados pelo inimigo e às vezes surgiam em simultâneo.

Ao chegarmos a Aldeia Formosa instalamo-nos aí, mas a nossa missão era fazer escolta a uma operação que ia ser desencadeada para desobstruir a estrada que se dirigia para Cacine, a qual tinha centenas de árvores derrubadas que não permitiam o movimento por terra a fim de comunicar com alguns destacamentos que assim permaneciam isolados. Então começamos a montar destacamentos ao longo dessa estrada após a sua desobstrução a fim de garantir que não voltaria a suceder o mesmo.

O primeiro destacamento a ser montado foi o de Guileje, que anos depois teve que ser abandonado devido à intensidade dos ataques inimigos. Seguiu-se Ganturé que ficava a três escassos quilómetros de Gadamael onde se encontrava uma companhia totalmente isolada por terra, a única comunicação que tinha era pelo rio e mesmo assim só quando das marés vivas, uma vez por mês os barcos lá conseguiam chegar.
Seguiram-se os destacamentos de Sangonhá e Cacoca e até aqui embora tenham havido várias emboscadas, e tenham sido descobertas várias minas anti-carro, do meu pelotão só eu tinha sido ferido na cara por duas vezes, sempre coisa de pouca gravidade, mas, no dia 2 de Julho foi montada pelo inimigo uma emboscada, onde rebentaram duas minas destruindo por completo uma auto-metralhadora e um granadeiro, matando dois camaradas e ferindo com muita gravidade mais três, os quais levaram algum tempo para reconstruir os órgãos afectados e ainda hoje sofrem dessas maleitas.

A partir desta data nós ficamos totalmente desanimados e já não fizemos mais nada, até porque já tínhamos ultrapassado o tempo previsto para a nossa comissão. Regressamos então para Bissau numa lancha da marinha a fim de aguardar o regresso que teve lugar no dia 21 no Paquete Índia, chegando a Lisboa a 30 de Julho.

Navio Índia. Foto Navios Mercantes Portugueses, com a devida vénia

À chegada esperavam-me os meus familiares que me receberam com toda a alegria e eu mais alegre estava porque em determinadas alturas pensava que já não regressava para os tornar a ver.
Nesse dia não pude seguir com eles visto que ainda tive que ir a Castelo Branco fazer o espólio dos fardamentos que trazia e receber as guias que permitiam passar à vida civil e só no dia 30 regressei.
Nesse dia tinha então todos os meus familiares e amigos à minha espera e começou aí uma nova vida".

Despeço-me com um grande abraço
Armando Fonseca (O Alenquer)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8331: O Alenquer retoma o contacto (6): Velhas recordações (Armando Fonseca)

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