Lourinhã > Cemitério local > 1 de novembro de 2012 > O que é a morte ? "Sete palmas de terra e um caixão" !?... Lembremo-nos, hoje, dia 2 de novembro, de todos os nossos mortos na Guiné, em especial os que morreram durante a guerra colonial, entre 1961 e 1974, incluindo os insepultos, e ainda os nossos ex-camaradas guineenses que foram sumariamente executados a seguir à independência. Tenhamos também um pensamento de solidariedade para com todas as vítimas da violência na Guiné, as de hoje e as de ontem.
Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados
Videoclipe de Anastácio de Djens - N'cansa tchora guine - Produção: TVKlele. Um dos temas, o 4º, inseridos no álbum musical, não comercial, com videoclipes da TV Klele, distribuídos juntamente com a pasta do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, Guiné-Bissau, 1 a 7 de Março de 2008).
O álbum tem por título Guiné-Bissau, Terra de História e Cultura. A televisão comunitária TV Klele, do Bairro Quelélé, de Bissau, tem o apoio da AD - Acção para o Desenvolvimento. O tema musical deste videoclipe é fortíssimo. Mesmo não entendendo a 100% toda a letra (em crioulo de Bissau), não consegui ouvi-lo e vê-lo, pela primeira vez, em 2007, sem me emocionar. Anastácio de Djens, que eu conheci por ocasião do Simpósio, em Março de 2008, era então uma das vozes mais belas e promissoras da nova geração musical guineense. Na altura escrevi: "Oxalá haja oportunidades de trabalho para ele desenvolver e dar a conhecer o seu grande talento, a sua voz, a sua sensibilidade, dentro e fora da Guiné-Bissau, país de grandes músicos e de grandes tradições musicais".
Daqui de Lisboa, em dia de cristão e não.cristãos lembrarem os seus mortos, vai um grande abraço, amigo e solidário, para ti, Anastácio (de quem perdi o rasto), e para todos os jovens da tua terra que cantam e dançam a tua música. Um abraço também para a talentosa rapaziada da TV Klele. E, claro, para o Pepito, a malta da AD e todos os nossos amigos guineenses, grã-tabanqueiros ou (ainda) não... Eles são, todos eles, os melhores filhos da Guiné, os únicos que nos interessa conhecer... Os esbirros, os torcionários, os carrascos não são são guineenses, são apátridas, são iguais em toda a parte do mundo, em todos os tempos da história...
Vídeo (5' 25''): You Tube > TVKlele (2007) (com a devida vénia...)
Na ka misti tchora mas, Guiné (*) (**)
por Luís Graça
[No dia dos mortos,
dedicado a todos os mortos da guerra colonial na Guiné,
entre 1961 e 1974,
de um lado e do outro,
e a todas as demais vítimas da violência
que se seguiu,
desde a independência da Guiné-Bissau até hoje]
Quem disse que tu, Guiné-Bissau, não tens futuro ?
Não fui eu, que pouco valho.
Não foi o dari,
que não tem seguro
de acidentes de trabalho.
Nem de saúde-doença.
Quem disse que o futuro não passa por aqui,
por esta terra verde e vermelha,
amarela e preta ?
Quem é que assim pensa ?
Não, não foi o macaco fantango,
que trabalha sem rede,
não tem cheta,
nem protecção social no desemprego,
muito menos na velhice.
Nem o desgraçado do macaco-cão
que vai à mesa do rico e do pobre
como se fora leitão
da Bairrada,
frio ou quente.
Nem o mandinga,
bom negro e melhor crente,
tocador de Kora,
Braima Galissá,
que se foi embora,
ou o virtuoso do balafon,
o Kimi Djabaté,
todos em busca de outro tchon
livre do som da Kalash,
longe do poilão de Brá.
Quem disse que Deus, Alá,
e os bons irãs
não montaram morança nesta terra ?
Não foi o muntu.
Não foi o tucurtacar pangolim.
Não foi a rapaziada
do Bairro do Quelélé.
Não foi o fula nem o nalu.
Não foram as aves do Cantanhez,
que nunca tocaram o tambor da guerra.
Não foi o verde, o vermelho, o amarelo
da tua bandeira.
Não foi a estrela negra.
Não foi a Titina Silá,
a guerrilheira.
Não foram os homens grandes do Gabu.
Não foi o tuga,
nem foste tu
nem fui eu.
Ah!,
como está ainda bem longe, Cabral,
o ideal
por que lutaste e morreste,
uma vez, e outra vez,
tu e tantos outros combatentes da liberdade da pátria.
Nada que tu não saibas, Amílcar,
lá no Olimpo dos deuses e dos heróis,
ou no inferno dos que morrem de morte matada,
ou não soubesses já,
cá na terra dos homens,
que a História é fértil em exemplos de efeitos perversos,
de Revoluções que devoram os seus filhos,
de filhos que matam os pais,
de netos que renegam os seus avós,
de bisnetos que cortam o cordão umbical com os avoengos...
Tudo isto, para te dizer, Cabral
que eu ouvi os jovens do teu país cantar o teu hino,
no antigo acampamento Osvaldo Vieira (!),
nas matas do Cantanhez profundo,
(esse mesmo, o Vieira,
que há quem diga que foi o teu Judas!),
com o mesmo fervor do que quaisquer outros jovens
noutras partes do mundo.
Pelo menos os teus sabiam a letra,
a letra escrita por ti,
e até a música que foi composta,
eu não sabia,
por um obscuro músico chinês,
o Sr. Xiao He,
no tempo do Livrinho Vermelho
que muitos de nós leram
uns com paixão,
outros com um sorriso de desdém...
Quem disse, afinal, que tu, Guiné,
não tens futuro ?
Se não o foi macaco fidalgo,
nem a cobra verde enroscada no cocuruto
da palmeira de dendê,
foram os teus inimigos,
os de fora e os de dentro,
os teus filhos bastardos,
os que te beijaram como Judas beijou Cristo,
para depois te trairem e assassinarem,
te matarem como a um cão,
em Conacri,
no chão francês.
Os teus torcionários,
os teus esbirros,
os teus carrascos,
esses e os filhos bastardos de outras nações.
Os que dizem mal de ti, Guiné,
os que te usam e abusam,
os que te violam,
os que te querem comprar
a preço de saldo,
os agiotas,
e que te arrastam pela lama do tarrafo.
E que dizem que és um narco-Estado.
E que já nem tem soldados, rasos,
briosos e patriotas,
que te defendam até à última gota do seu sangue.
E que vives da caridade internacional.
E que já não tens fé,
nem esperança,
nem voz,
nem lágrimas para chorar
os teus filhos, e são tantos!,
que já morreram por ti,
ou que morreram contigo.
Que já não tens alma
nem salvação
nem pudor,
Guiné.
E que tu, Cabral,
pai fundador,
morreste como o Ché,
como o Cristo,
como o Luther King,
e está enterrado,
na antiga fortaleza colonial da Amura,
ao lado de heróis e de traidores,
na promiscuidade da história.
Que amargura!
Os teus jovens,
os teus músicos,
os teus poetas,
os teus artistas,
os teus artesãos,
os teus quadros na diáspora,
as tuas televisões comunitárias,
as tuas rádios locais,
o teu novo Lamparam,
o teu Bombolom digital,
e até os centros de saúde no mato,
são a prova da tua grande vitalidade,
engenho,
imaginação,
talento,
alegria,
nobreza,
criatividade,
espontaneidade,
afabilidade,
hospitalidade,
vontade de vencer o círculo vicioso
da pobreza,
e o parto da guerra e da violência,
monstruoso.
Do teu povo, Guiné,
virtuoso,
afável,
pobre mas nobre,
de Norte a sul,
dos Bijagós ao Quitafine,
de Iemberém ao Quelélé,
de Quinhamel ao Gabu,
de Lisboa a Paris.
Eu acredito em ti,
país-irmão,
povo-irmão.
Eu quero acreditar em ti,
Guiné,
eu quero remar,
na minha frágil piroga de cidadão do mundo,
de europeu e de português,
de igual para igual,
contra a maré do cinismo,
inimigo tão mortal
como o mosquito do paludismo
ou o vibrião da cólera.
Eu acredito nas tuas mulheres,
que te levam às costas,
que suportam o teu céu,
e alimentam as tuas raízes,
essas mulheres empreendedoras e corajosas,
que montam fabriquetas de descasque de arroz,
ou que, em casa, fazem o seu óleo de palma
e cozinham a tua galinha de chabéu.
E ainda têm tempo
para ir à pesca e ao mercado,
e com os restos do dendê fazer o sabão.
Que têm tempo para cuidar dos teus meninos.
E para lavar os seus pobres panos.
Essas mulheres que no Cacheu travam o avanço do Sará,
com as suas mãos frágeis cheias de sonhos.
Eu acredito,
no talento dos teus jovens, criativos,
Eu acredito ainda na força telúrica
e na generosidade dos homens e mulheres
que lutaram, por ti,em Cassacá,
no Como,em Cadique,
no Boé,
no Morés,
em Gandembel,
em Guileje,
em Sara Sarauol,
no Fiofioli,
na Ponta do Inglês,
no Choquemone,
em Sinchã Jobel.
Com as armas na mão,
com as ideias na cabeça
e com sonhos no coração.
Para que tu fosses livre
e independente,
e fosses justa
e fraterna.
Uma Tabanca Grande,
grande como a bolanha de Bambadinca,
outrora verde e prenhe de arroz,
e aonde iam apascentar os búfalos.
Uma Tabanca Grande
onde cabe o Muntu e o Nalu,
os netos e os avós,
os fulas e os balantas,
os papéis e os bijagós,
os quatro pontos cardeais,
os homens grandes
e as mulheres grandes,
as tuas bajudas,
lindas como as as rosas das roseiras,
as tuas meninas
que um dia não precisarão da faca da fanateca.
Onde cabem os teus frondosos poilões
e as tuas vaidosas cabaceiras.
Onde caibam todos os teus lugares de culto,
as tuas balobas,
as tuas igrejas
ou as tuas mesquitas apontadas para Meca.
Para que os teus filhos, Guiné,
tenham a merecida paz,
todos os dias do ano,
todas as horas do dia e da noite,
a liberdade,
a justiça,
a tolerância,
o milho, o arroz e a mandioca,
o mafé e o chabéu
com que se mata a fome
e se sonha, acordado,
e se dança,
de Farim a Bandim.
Enfim, a dignidade
a que os teus filhos têm direito
no seio da Mãe África
e do resto do mundo globalizado.
Ah!,
a paz,
a tão frágil paz
que leva tanto tempo a consolidar,
e o tão suspirado progresso que não chega,
a água potável que não chega,
a escola que não há,
o medicamento por desalfandegar,
o petróleo por jorrar,
... ou que é tão lento,
tão desesperadamente lento,
ou só chega para uma meia dúzia de privilegiados,
a nomenclatura do poder e do dinheiro,
sem pátria,
sem cor,
sem rosto...
Mas para isso, Guiné.
terás que fazer a ponte
com o passado,
a fonte
da tua identidade.
Mas para isso não poderás ignorar
nem escamotear os marcos
(de sinal mais e de sinal menos)
do passado,
bem como as raízes das lianas
e dos poilões da tua guineidade.
Como te imploram os teus filhos,
não queiras chorar mais, Guiné!
N ka misti tchora mas!
Faz das tuas lágrimas
a força do macaréu
da tua revolta
e do teu ânimo
que te ajudarão a abrir a Picada do Futuro,
a construir o Novo Carreiro do Povo,
a Nova Estrada da Liberdade,
de Buruntuma a Fulacunda.
Que eu só desejo que seja
tão grande, larga e fecunda
como os teus rios míticos,
do Cacheu ao Cumbijã,
do Geba ao Cacine.
Ou tão límpidos e belos e selvagens
como o Corubal.
E que o Nhinte-Camatchol,
o grande irã dos nalus,
te proteja,
Guiné, Tabanca Grande.
E o Deus dos cristãos,
dos grumetes do Geba e da Amura,
E o Alá dos fulas, mandingas e beafadas.
E os irãs dos balantas, manjacos, papéis, bijagós
e demais povos ribeirinhos, animistas,
que todos eles te inspirem
e te protejam!
(*) Não queiras chorar mais, Guiné: Título pedido emprestado ao cantor Anastácio de Djens
(**) Sucessivamente revisto, aumentado e melhorado:
Iemberém, 1/2 de março de 2008 (visita ao Cantanhez)
Bissau, 28 de fevereiro e 3/7 de março de 2008 (Seminário Internacional de Guiledje)
Lisboa, 12/13 de abril de 2012 (Golpe de estado na Guiné-Bissau)
Alfragide, 10 de outubro de 2012
[a seguir ao episódio nº 25 da série "A Guerra",
realizado por Joaquim Furtado,
e que passou na RTP1],
Alfragide, 2 de novembro de 2012, dia (cristão) dos Fiéis Defuntos
_____________
Vídeo (5' 25''): You Tube > TVKlele (2007) (com a devida vénia...)
Na ka misti tchora mas, Guiné (*) (**)
por Luís Graça
[No dia dos mortos,
dedicado a todos os mortos da guerra colonial na Guiné,
entre 1961 e 1974,
de um lado e do outro,
e a todas as demais vítimas da violência
que se seguiu,
desde a independência da Guiné-Bissau até hoje]
Quem disse que tu, Guiné-Bissau, não tens futuro ?
Não fui eu, que pouco valho.
Não foi o dari,
que não tem seguro
de acidentes de trabalho.
Nem de saúde-doença.
Quem disse que o futuro não passa por aqui,
por esta terra verde e vermelha,
amarela e preta ?
Quem é que assim pensa ?
Não, não foi o macaco fantango,
que trabalha sem rede,
não tem cheta,
nem protecção social no desemprego,
muito menos na velhice.
Nem o desgraçado do macaco-cão
que vai à mesa do rico e do pobre
como se fora leitão
da Bairrada,
frio ou quente.
Nem o mandinga,
bom negro e melhor crente,
tocador de Kora,
Braima Galissá,
que se foi embora,
ou o virtuoso do balafon,
o Kimi Djabaté,
todos em busca de outro tchon
livre do som da Kalash,
longe do poilão de Brá.
Quem disse que Deus, Alá,
e os bons irãs
não montaram morança nesta terra ?
Não foi o muntu.
Não foi o tucurtacar pangolim.
Não foi a rapaziada
do Bairro do Quelélé.
Não foi o fula nem o nalu.
Não foram as aves do Cantanhez,
que nunca tocaram o tambor da guerra.
Não foi o verde, o vermelho, o amarelo
da tua bandeira.
Não foi a estrela negra.
Não foi a Titina Silá,
a guerrilheira.
Não foram os homens grandes do Gabu.
Não foi o tuga,
nem foste tu
nem fui eu.
Ah!,
como está ainda bem longe, Cabral,
o ideal
por que lutaste e morreste,
uma vez, e outra vez,
tu e tantos outros combatentes da liberdade da pátria.
Nada que tu não saibas, Amílcar,
lá no Olimpo dos deuses e dos heróis,
ou no inferno dos que morrem de morte matada,
ou não soubesses já,
cá na terra dos homens,
que a História é fértil em exemplos de efeitos perversos,
de Revoluções que devoram os seus filhos,
de filhos que matam os pais,
de netos que renegam os seus avós,
de bisnetos que cortam o cordão umbical com os avoengos...
Tudo isto, para te dizer, Cabral
que eu ouvi os jovens do teu país cantar o teu hino,
no antigo acampamento Osvaldo Vieira (!),
nas matas do Cantanhez profundo,
(esse mesmo, o Vieira,
que há quem diga que foi o teu Judas!),
com o mesmo fervor do que quaisquer outros jovens
noutras partes do mundo.
Pelo menos os teus sabiam a letra,
a letra escrita por ti,
e até a música que foi composta,
eu não sabia,
por um obscuro músico chinês,
o Sr. Xiao He,
no tempo do Livrinho Vermelho
que muitos de nós leram
uns com paixão,
outros com um sorriso de desdém...
Quem disse, afinal, que tu, Guiné,
não tens futuro ?
Se não o foi macaco fidalgo,
nem a cobra verde enroscada no cocuruto
da palmeira de dendê,
foram os teus inimigos,
os de fora e os de dentro,
os teus filhos bastardos,
os que te beijaram como Judas beijou Cristo,
para depois te trairem e assassinarem,
te matarem como a um cão,
em Conacri,
no chão francês.
Os teus torcionários,
os teus esbirros,
os teus carrascos,
esses e os filhos bastardos de outras nações.
Os que dizem mal de ti, Guiné,
os que te usam e abusam,
os que te violam,
os que te querem comprar
a preço de saldo,
os agiotas,
e que te arrastam pela lama do tarrafo.
E que dizem que és um narco-Estado.
E que já nem tem soldados, rasos,
briosos e patriotas,
que te defendam até à última gota do seu sangue.
E que vives da caridade internacional.
E que já não tens fé,
nem esperança,
nem voz,
nem lágrimas para chorar
os teus filhos, e são tantos!,
que já morreram por ti,
ou que morreram contigo.
Que já não tens alma
nem salvação
nem pudor,
Guiné.
E que tu, Cabral,
pai fundador,
morreste como o Ché,
como o Cristo,
como o Luther King,
e está enterrado,
na antiga fortaleza colonial da Amura,
ao lado de heróis e de traidores,
na promiscuidade da história.
Que amargura!
Os teus jovens,
os teus músicos,
os teus poetas,
os teus artistas,
os teus artesãos,
os teus quadros na diáspora,
as tuas televisões comunitárias,
as tuas rádios locais,
o teu novo Lamparam,
o teu Bombolom digital,
e até os centros de saúde no mato,
são a prova da tua grande vitalidade,
engenho,
imaginação,
talento,
alegria,
nobreza,
criatividade,
espontaneidade,
afabilidade,
hospitalidade,
vontade de vencer o círculo vicioso
da pobreza,
e o parto da guerra e da violência,
monstruoso.
Do teu povo, Guiné,
virtuoso,
afável,
pobre mas nobre,
de Norte a sul,
dos Bijagós ao Quitafine,
de Iemberém ao Quelélé,
de Quinhamel ao Gabu,
de Lisboa a Paris.
Eu acredito em ti,
país-irmão,
povo-irmão.
Eu quero acreditar em ti,
Guiné,
eu quero remar,
na minha frágil piroga de cidadão do mundo,
de europeu e de português,
de igual para igual,
contra a maré do cinismo,
inimigo tão mortal
como o mosquito do paludismo
ou o vibrião da cólera.
Eu acredito nas tuas mulheres,
que te levam às costas,
que suportam o teu céu,
e alimentam as tuas raízes,
essas mulheres empreendedoras e corajosas,
que montam fabriquetas de descasque de arroz,
ou que, em casa, fazem o seu óleo de palma
e cozinham a tua galinha de chabéu.
E ainda têm tempo
para ir à pesca e ao mercado,
e com os restos do dendê fazer o sabão.
Que têm tempo para cuidar dos teus meninos.
E para lavar os seus pobres panos.
Essas mulheres que no Cacheu travam o avanço do Sará,
com as suas mãos frágeis cheias de sonhos.
Eu acredito,
no talento dos teus jovens, criativos,
Eu acredito ainda na força telúrica
e na generosidade dos homens e mulheres
que lutaram, por ti,em Cassacá,
no Como,em Cadique,
no Boé,
no Morés,
em Gandembel,
em Guileje,
em Sara Sarauol,
no Fiofioli,
na Ponta do Inglês,
no Choquemone,
em Sinchã Jobel.
Com as armas na mão,
com as ideias na cabeça
e com sonhos no coração.
Para que tu fosses livre
e independente,
e fosses justa
e fraterna.
Uma Tabanca Grande,
grande como a bolanha de Bambadinca,
outrora verde e prenhe de arroz,
e aonde iam apascentar os búfalos.
Uma Tabanca Grande
onde cabe o Muntu e o Nalu,
os netos e os avós,
os fulas e os balantas,
os papéis e os bijagós,
os quatro pontos cardeais,
os homens grandes
e as mulheres grandes,
as tuas bajudas,
lindas como as as rosas das roseiras,
as tuas meninas
que um dia não precisarão da faca da fanateca.
Onde cabem os teus frondosos poilões
e as tuas vaidosas cabaceiras.
Onde caibam todos os teus lugares de culto,
as tuas balobas,
as tuas igrejas
ou as tuas mesquitas apontadas para Meca.
Para que os teus filhos, Guiné,
tenham a merecida paz,
todos os dias do ano,
todas as horas do dia e da noite,
a liberdade,
a justiça,
a tolerância,
o milho, o arroz e a mandioca,
o mafé e o chabéu
com que se mata a fome
e se sonha, acordado,
e se dança,
de Farim a Bandim.
Enfim, a dignidade
a que os teus filhos têm direito
no seio da Mãe África
e do resto do mundo globalizado.
Ah!,
a paz,
a tão frágil paz
que leva tanto tempo a consolidar,
e o tão suspirado progresso que não chega,
a água potável que não chega,
a escola que não há,
o medicamento por desalfandegar,
o petróleo por jorrar,
... ou que é tão lento,
tão desesperadamente lento,
ou só chega para uma meia dúzia de privilegiados,
a nomenclatura do poder e do dinheiro,
sem pátria,
sem cor,
sem rosto...
Mas para isso, Guiné.
terás que fazer a ponte
com o passado,
a fonte
da tua identidade.
Mas para isso não poderás ignorar
nem escamotear os marcos
(de sinal mais e de sinal menos)
do passado,
bem como as raízes das lianas
e dos poilões da tua guineidade.
Como te imploram os teus filhos,
não queiras chorar mais, Guiné!
N ka misti tchora mas!
Faz das tuas lágrimas
a força do macaréu
da tua revolta
e do teu ânimo
que te ajudarão a abrir a Picada do Futuro,
a construir o Novo Carreiro do Povo,
a Nova Estrada da Liberdade,
de Buruntuma a Fulacunda.
Que eu só desejo que seja
tão grande, larga e fecunda
como os teus rios míticos,
do Cacheu ao Cumbijã,
do Geba ao Cacine.
Ou tão límpidos e belos e selvagens
como o Corubal.
E que o Nhinte-Camatchol,
o grande irã dos nalus,
te proteja,
Guiné, Tabanca Grande.
E o Deus dos cristãos,
dos grumetes do Geba e da Amura,
E o Alá dos fulas, mandingas e beafadas.
E os irãs dos balantas, manjacos, papéis, bijagós
e demais povos ribeirinhos, animistas,
que todos eles te inspirem
e te protejam!
(*) Não queiras chorar mais, Guiné: Título pedido emprestado ao cantor Anastácio de Djens
(**) Sucessivamente revisto, aumentado e melhorado:
Iemberém, 1/2 de março de 2008 (visita ao Cantanhez)
Bissau, 28 de fevereiro e 3/7 de março de 2008 (Seminário Internacional de Guiledje)
Lisboa, 12/13 de abril de 2012 (Golpe de estado na Guiné-Bissau)
Alfragide, 10 de outubro de 2012
[a seguir ao episódio nº 25 da série "A Guerra",
realizado por Joaquim Furtado,
e que passou na RTP1],
Alfragide, 2 de novembro de 2012, dia (cristão) dos Fiéis Defuntos
_____________
Nota do editor:
Último poste da série > 30 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10593: Blgpoesia (310); Enquanto ouvir um piano a tocar Schubert ou Beethoven... (J. L. Mendes Gomes, Steglitz, Berlim, Alemanha)
5 comentários:
Joaquim Furtado e não Paulo.
O ultimo foi lastimável.
Ab. T.
Belo e comovente.
Belo, outra vez, porque das coisas mais belas que li.
Merecem, eles?
Os defuntos e os que lutam pela liberdade, sim, merecem.
Olá Luis.
...Não foram os homens grandes de Gabu,
Não foi o Tuga,
Nem foste tu
Nem fui eu.
Simplesmente, belo e emocionante. Parabéns, recebe um abraço do amigo Tony Borie.
Está épico...no fundo e na forma, grande Homem-Grande da nossa tabanca!...A Guiné verdadeira e telúrica te agradecem...
Um grande abraço
Joaquim
Obrigado, Torcato, sê bem aparecido... Não é Paulo, é Joaquim, já corrigido a gralha. "Lapsus linguae"... Brancas... Alzheimer... Não tenho vistos os últimos programas... LG
Enviar um comentário