sábado, 3 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10611: Do Ninho D'Águia até África (23): O maldito dente (Tony Borié)

1. Vigésimo terceiro episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, desta feita recorrendo a tercetos para o contar.


Do Ninho D'Águia até África (23)

O Maldito Dente!

Resumo da história de um dente que o Cifra, teve que mandar extrair, pois estava de cor preta e já bastante afectado, por falta de limpeza, do tabaco, algum álcool, e da água “medicinal” da bolanha.
Acordou pela manhã, cheio de dores, cá vai a história, feita desta maneira, não é em quadras, nem sendo um poema, talvez sejam uns versos, frases completas, frases soltas, ou então é qualquer coisa original, os companheiros, antigos combatentes, passaram por lá, vão por certo rir um pouco, e compreender.
As personagens são sempre as mesmas, os seus companheiros e amigos, que com ele viveram dois anos em Mansoa, o Trinta e Seis, o Setúbal, o Curvas, alto e refilão, o Marafado, o Mister Hóstia, o Pastilhas e outros mais, que o Cifra, lembrará para sempre, pelo resto da sua vida, e dos quais, continuará a contar histórias, algumas já quando eram emigrados tal como ele, e viviam na diáspora, mas que o destino o fez encontrar de novo, do lado de cá do atlântico.

Na noite anterior, tinha bebido, 
Com outros colegas, também tinha comido, 
Já fora de horas, não tinha dormido.

Por volta das cinco, ainda acordado, 
Não dormi ainda, viro-me de lado, 
Este lado da cara, está muito inchado. 

Vejo o Trinta e Seis, não sei o que faço, 
Olha para mim, com cara de palhaço, 
Com a mão na cara, mostro o inchaço. 

Tenho aqui um dente, que me está a doer, 
Ele me responde, vendo-me sofrer, 
Vai ver o Pastilhas, e já a correr. 

O Curvas estúpido, alto e refilão, 
Diz lá de cima, como eu sendo um anão, 
Não sejas guloso, não roubes mais pão. 

Responder p'ra quê, calar simplesmente, 
Ele olha-me de novo, e diz de repente, 
A merda do “chiclet”, fod..-te o teu dente. 

O Setúbal correndo, a ver o que passa, 
Chega-se a mim, quase que me abraça, 
Podes ficar bom, com papas de linhaça. 

O Arroz com Pão, camisa suja, 
Olha para mim, diz-me que fuja, 
Tens uma cara, tal uma coruja.

O Mister Hóstia, com terço na mão, 
Olha p'ra mim, com grande aflição, 
Vou rezar por ti, uma boa oração.

Vem lá do fundo, o Marafado, 
Toca na cara, mas com cuidado, 
Deve doer, como está inchado. 

O furriel grita, que se passa afinal, 
Para mim olha, a cara está mal, 
A mão vai ao bolso, fuma um “especial”. 

O sargento da messe, comendo um biscoito 
Vem ver o que passa, mas não muito afoito, 
Pois a minha cara, está feita num oito. 

Volto-lhe as costas, vou à enfermaria, 
O raio do Pastilhas, está de mania, 
Pergunta logo, o que é que eu queria.

Abri a boca, num grande repente, 
Mostrando-lhe a dor, no maldito dente, 
Será que ele não vê, o que um homem sente.

O grande sacana, vai logo a correr, 
O frasco do álcool, tentar esconder, 
Não pensando sequer, no que estou a sofrer.

Ele estava certo, em o frasco esconder, 
Pois de outras vezes, tinha mesmo que ser, 
O frasco roubavam, para logo beber.

Com cara manhosa, e com uns gestinhos, 
Abre-me a boca, e com uns sorrizinhos, 
Tira essa merda, se não vais prós anjinhos.

Os dentes são negros, dá-me um sermão, 
És um javardo, não tens mais perdão, 
Lava esses dentes, com água e sabão. 

Consulta marcada, espera sentado, 
Não vais agora, espera um bocado, 
Sofre dois dias, p'ra seres embarcado. 

No carro dos doentes, vim prá capital, 
Depois de andar, vejo o Hospital, 
Não desejo a ninguém, todo este meu mal. 

Entro no Hospital, vejo o Honório, 
Traz braço ao peito, vou ao consultório, 
Está muita gente, parece um velório.

Ponho o meu nome, com a mão direita, 
Estão lá três listas, e quase outra feita, 
O cabo enfermeiro, verá o que ajeita. 

Estou com dores, não suporto mais, 
Começo a gritar, perturbando os demais, 
O cabo enfermeiro, vem ver os meus “ais”.

Diz que me cale, está lá mais gente, 
Tenho que esperar, e não ser exigente, 
Eu digo que sim, mas que tire o meu dente.

Vendo-me assim, diz com embaraço, 
Tem paciência, vou ver o que faço, 
Pois vou eu mesmo, tirar-te esse inchaço.

Leva-me para dentro, na frente da gente, 
Manda-me sentar, e diz sorridente, 
Pergunta qual é, e tira-me o dente.

Gritei com a dor, ficando aliviado, 
Lava com “borato”, com algum cuidado, 
Dentro de três dias, vais ficar curado.

Pedi-lhe o meu dente, que queria guardado, 
Era o primeiro, que me tinham tirado, 
Do cesto do lixo, toma lá um bocado. 

Tonto com dores, sem nenhum tino, 
Limpando a cara, sem qualquer destino, 
Nem vim à cidade, beber o meu “fino”. 

Com baba e ranho, então regressei, 
Talvez dormindo, nem eu próprio sei, 
Ao meu lado alguém grita, merda, cheguei.

Semanas depois, bastante contente, 
Decifrando mensagens, com cara dormente, 
Cuspia bocados, do que fora o meu dente. 

Meses depois, sem dores realmente, 
Ria-me sozinho, já menos deprimente, 
Colocando o cigarro, no lugar do meu dente.
____________

 Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2012 > > Guiné 63/74 - P10594: Do Ninho D'Águia até África (22): Uma história de amor em pleno conflito (Tony Borié)

5 comentários:

Henrique Cerqueira disse...

Caro Tony
Simplesmente divertido.
Espero que o Cifra ainda hoje lave os dentes.
Um abraço
Henrique Cerqueira

Luís Graça disse...

Tony, a nossa "saúde oral" era (e ainda é...) um grave problema1... A nossa geração, a dos combatentes da guerra colonial, tem a boca toda esburacada porque fomos entregues aos "sapateiros" da tropa que nos arrancaram todos os dentes cariados ou suscetíveis de provocar dores... Ora no mato, dentista ka tem!... E uma dor de dentes, num homem, é capaz de ser bem pior que as dores... de parto numa mulher!...

Tudo isto para te dizer que ri que nem um perdido com a tua paródia sobre o dente!...Tens piada, e tanto escreves bem em prosa como em verso!...

Espero que a grande América, agora em véspera de eleições presidenciais, continue a ser a tua segunda pátria, generosa e livre!.

Luis Graça

paulo santiago disse...

Tony
Dei uma boa gargalhada lendo estes versos...gostei.
Diz o Luís que escreves bem em prosa
como em verso...e o boneco???muito
bom!!!tens que meter mais bonecos nos
teus textos...

Muita chuva aqui por Águeda...
Abraço

Tony Borie disse...

Olá meus bons amigos, obrigado pelas mensagens. Agora sim, o "Cifra", lava o resto dos dentes, mas já é um pouco tarde!.
Chuva em Águeda, faz falta aqui na Florida, pois a relva está seca!. A tempestade Sandy, que por sinal é o nome da minha filha, passou por aqui, mas só fez alterar um pouco a água do mar, mas para o norte, fez muitos estragos, a minha filha foi evacuada da zona onde vive, em Nova Iorque, mas já regressou a casa, sem problemas, e o meu filho, no estado Pennsylvania, só sofreu a falta de energia eléctrica, mas também já está tudo normalizado, agora é só retirar algumas árvores que caíram junto da sua casa. As eleições, vão correr normalmente, e vai ganhar o melhor!. Um abraço do amigo Tony Borie.

Rogerio Cardoso disse...

Caro Tony
Muito giro o que escreves em verso.Essa dos dentistas sapateiros, fez-me lembrar, o que aliás já escrevi no blogue, de uma visita do dito sapateiro a Bissorã, que de uma assentada retirou 7 (sete) dentolas ao 1º cabo enfermeiro Botas, ele quis ser o 1º da fila, porque dizia ele que o 1º cabo enfermeiro era um posto e como tal passou á frente, o que lhe custou o que contei. Claro que a fila depois desta cena, ficou reduzida a nada, e o Botas sem poder assobiar futuramente. Este meu amigo já falecido, "viveu" muito mal sómente com a sua pobre mãe acamada, quem lhe valeu foi o 2º Sargento da Cart.642-Bajouco, porque vivia próximo dele em Coimbra e eu quando passava por lá também o ajudava. Tinha sido ferido por 3 vezes com estilhaços de granada, as autoridades militares não lhe reconheçeram nada e acabou por faleçer, devido ao agravamento de um estilhaço junto aos pulmões, assim como uma instituição ligada aos combatentes nunca o auxiliou.
Bem mas isto são outras histórias que já passaram.
Tony um abração do Roger.