quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23791: Notas de leitura (1517): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte I: As colónias não valiam o preço...

1. Confesso que li o livro de um fôlego... E reli-o seguir com mais atenção crítica, pensando fazer uma nota de leitura para o blogue.

A obra resulta de uma maratona de conversas semanais (42 ao todo, representando 100 horas de entrevistas) com o historiador, ensaísta, cronista, jornalista e analista político Vasco Pulido Valente, (VPV), pseudónimo literário de Vasco Valente Correia Guedes (Lisboa, 1941 - Lisboa, 2020).

"Na realidade, trata-se de uma longa viagem de dois séculos, que teve por razão uma tentativa de se compreender Portugal à luz do seu passado mais recente de dois séculos" (João Céu e Silva, pág. 9).

Uma viagem temerária, a que meteu ombros João Céu e Silva (n. Alpiarça, 1959). Escritor, licencido em História, viveu no Rio de Janeiro, é jtambém jornalista e colaborador do "Diário de Notícias" (desde 1989).

"Uma longa viagem com Puliudo Valente" é o sexto volume da série "Uma longa viagem com...", que conta com autores como José Saramago, António Lobo Antunes, Miguel Torga, Álvaro Cunhal e Manuel Alegre.

O sonho confesso (e megalómano) de VPV era ter escrito a história de Portugal desde as invasões napoleónicas e a fuga da família real para o Brasil (1807) até à instauração do Estado Novo (1933). No final da sua vida, e já doente, penalizou-se, de algum modo, por ter desperdiçado o seu enorme talento no jornalismo mas também como "conselheiro do prímcipe"...

Foi, por exemplo, polémico secretário de estado da cultura, no VI Governo Constitucional, presidido por Francisco Sá Carneiro, um dos (poucos) políticos que ele admirava, a seguir a Mário Soares. Foi militante do PS e do PPD, alegadamente para combater, com Mário Soares, o comunismo, e com Sá Carneiro, os militares e o Conselho da Revolução.

Com a vitória da Aliança Democrática, nas eleições legislativas de 1979, foi chamado a integrar o executivo como Secretário de Estado da Cultura. Em 1986 foi apoiante de Mário Soares na sua primeira candidatura presidencial.

Aquele que foi talvez a figura mais polémica do jornalisno português das últimas 3 ou 4 décadas, tendo coleccionado ódios de estimação todos os quadrantes políticos e ideológicos mas também na academia e na cultura (menorizava escritores como José Saramago, António Lobo Antunes ou Agustina Bessa Luís, mas não deixava de  arrasar o inquisidor-mor,  o então Subsecretário de Estado da Cultura, António de Sousa Lara, que imiseravelmente  vetara  o livro do Saramago,   "Evangelho Segundo Jesus Cristo", de 1991, da lista de romances portugueses candidatos ao Prémio Aristeion em 1992).

Considerava-se um especialista na história do séc. XIX e tem uma visão sinóptica sobre todo o nosso séc. XX, não escapando ao seu balanço crítico, muitos vezes implacável, cruel e demolidor, os principais atores da cena política, do último representante da Casa de Bragança ao Salazar, de Afonso Costa a Soares, sem esquecer Spínol,  os capitães de Abril, e por aí fora. 

"Estrangeirado" (vindo da filosofia, fez o doutoramento em História pela Universidade de Oxford), olhava para os "indígenas" deste país com um misto de sarcasmo e comiseração, zurzindo na sua "saloiice" e "!chico-espertice"... Eça de  Queiroz e Oliveira Martins eram duas das suas referência literárias e intelectuais.  Na secretária tinha, por sua ve4z. duas fotos, uma de  Mário Soares  e  outra de Sá  Carneiro (a este não perdoavá  ter-se deixado matar, cortando a sua, dele, VPV, "carreira política": sonhava, com Sá Carneiro, fundamentar, ideologicamente, a direita portuguesa). 

O índice da obra permite perceber melhor a organização temática e cronológica que o entrevstador e autor fez do material recolhido durante 2 anos, até quase ao fim da vida de VPV (entre parêntese, o ínicio da página):  

  • a vida cortada ao meio (11)
  • rato de biblioteca (33)
  • o século maravilhoso (51)
  •  como Salazar se senta na cadeira (71),
  • dúvidas logo no 1º de Maio (187)
  •  restaurantes e corrupção (221)
  •  sedução numa pasta de recortes (245)
  •  fora dos tempos (269)
  • nota final (293). 

O capítulo de maior fôlego é aquele que é dedicado a Salazar e ao Estado Novo (c. 115 pp.), seguido, à distância,  pelo que é centrado  nas peripécias  do 25 de Abril,  a que chama um clássico "golpe militar": os capitães do QP pura e simplesmente sentiram-se ultrapassados e humilhados pelos "mercenários" (os milicianos) e  decidiram a acabar com a guerra... e liquidar o império (c. 50 pp.) . 

Aos nossos leitores poderá interessar, deste livro,  sobretudo o que diz respeito, direta ou indiretamemente à guerra colonial e às forças armadas. Vamos citar e analisar alguns excertos, reproduzidos aqui com a devida vénia. O trabalho do João Céu e Silva é meritório e intelectualmente honesto: o autor não se esquce também de fornecer ao leitor o "contraditório" (vinte e tal páginas de recortes com críticas ao VPV e pontos controversos do seu CV).

Salazar e as colónias

“Para Salazar, as colónias eram um peso financeiro muito grande no Orçamento" (VPV, pág. 108)

O problema não era novo, remontando ao tempo da República:

(...) "Já fora um problema nos primeiros Orçamentos porque havia na República uma direita integracionista liderada por Cunha Leal que queria que ficassem na Constituição como território nacional e não como colónias, como depois se fez integrando-as no todo económico nacional. Algo que depois Salazar aceitou, mas que até certa altura não queria" (...).

Cunha Leal (Penamacor, 1888 - Lisboa, 1970) era um politico da direita republicana, foi membro do Partido Republicano Nacionalista, e fundador da União Liberal Republicana (em 1923). Foi apoiante do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 (que instaurou a Ditadura Militar e depois o Estado NIvo). Irá, contudo, incomptabilizar-se com Salazar, tornando-se então um dos mais acérrimos opositores da primeira fase do regime do Estado Novo. Ao mesmo tempo, foi dos primeiros a defender um solução política de autodeterminação para as colónias. É autor, entre outras obras, de "O Colonialismo dos Anticolonialistas" e "A Gadanha da Morte: reflexões sobre os problemas euro-africanos" (ambas edição de autor, Lisboa, 1961)

Diz Vasco Pulido Valente, citado por João Céu e Silva:

(...) "Além de Cunha Leal, estava à frente desse movimento nacionalista Norton de Matos, com quem Salazar teve umas fricções a esse respeito" (…). Queriam chamar-lhe províncias ultramarinas, situação que Salazar só aceitou muitos anos depois; efetivamentente não eram províncias ultramarinas, mas colónias, com os orçamentos feitos em Lisboa para ele controlar” (pág. 108).

Norton de Matos (Ponte de Lima, 1867 - Ponte de Lima, 1955) foi sempre um opositor ao Estado Novo., vindo da maçonaria e da República, e que manteve com Angola uma relação especial:

Continua VPV:

(…) "As colónias mantiveram-se sem investimento nenhum, ou muito pouco, sendo que Salazar deixava umas companhias estrangeiras investirem em caminhos de ferro e coisas assim. (…) Não havia investimento do Estado português, que apenas pagava aos funcionários e aos destacamentos mínimos de polícia e do Exército." (...)

O que é Salazar pensava das colónias (onde nunca pôs os pés) ?

(...) "Ele sempre teve a ideia que (…) as colónias não valiam o preço. O que se percebe, pois não existia grande mercado nas colónias: exportava-se alguma coisa, como sapatos, têxteis e vinhos, mas toda a gente sabia que isso se fazia para os poucos brancos, já que os negros não compravam pela simples razão de que não tinham dinheiro (…).

"Angola ainda era a colónia que podia pagar, mesmo que o custo do transporte anulasse muito do lucro. São Tomé também importava, porque era o único sítio onde havia brancos por causa das roças de cacau, mas muito poucos. Ninguém via futuro na expansão colonial, porque a existência de riquezas num território não faz um país". (VPV, pág. 109).


Contrariamente a Norton de Matos, Salazar nunca foi um entusiástico partidário da política de colonizar e povoar...

(Contimua)

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5 comentários:

Valdemar Silva disse...

Interessante, agora que venham mais Partes II,III...,, para conhecimento geral.
E que venham aqueles ponto de vista sem as ofensas habituais a dar azo a 'mais uma a deitar a abaixo os que lutaram pela Pátria'.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

"O Colonialismo dos Anticolonialistas" do anti-salazarista ferrenho Cunha Leal, deve ser um livro curioso, pelo título de livro que não conheço.

Porque existiam mesmo e existem ainda os colonialistas anti-colonialistas.

De notar que os anti-salazaristas nem todos eram anti-colonialistas, alguns deles, «antes pelo contrário», por isso a guerra terá dado anos de vida política a Salazar, que calou muitos com a atitude do "para Angola e em força", porque se fosse para a Guiné, nem todos concordassem tanto.

É preciso salientar que quase todos os escritores, políticos e jornalistas daquele tempo, quando se falava em colónias, era Angola que contava, porque pelo resto, era mesmo um resto de deitar fora.

Grande post este com João Céu Silva e VPV.

Hélder Valério disse...

E não é que o António Rosinha tem muita razão no que escreve?
Não terá toda a razão mas tem acertos.
Eu, no meu caso, influenciado pelo(a)s catequistas que iam à Escola Primária às 4ª feiras, já não me recordo da periodicidade, se semanal, quinzenal ou mensal, embora esteja inclinado para "quinzenal", sonhava ir para África "converter e catequizar os pretinhos", em particular em Moçambique, que sempre me atraiu, fosse pelo nome ou por outra coisa qualquer.
Já Angola não me dizia muito. Era e é muito grande e isso "assustava-me".
Quanto à Guiné também era simpática, basta lembrar mnemónicas desse tempo, por exemplo "Quem é, quem é? É o pretinho da Guiné!". Sempre referências ternurentas, para já não falar do "Preto da Casa Africana"....

Só curiosidades...

Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Curioso, para o VPV, a guerra colonial também era pura e simplesmente a "guerra de Angola". Ele é desse tempo, e habituou-se a chamar-lhe assim... E veremos, noutro poste, como ele tem algumas "ideias feitas" sobre o assunto... Não creio que alguma vez tenha posto os pés em África, tal como o Salazar.. E diz algumas "enormidades" sobre os pobres dos combatentes que mal se deu o 25 de Abril já andavam todos (!) aos beijinhos e abraços ao inimigo de véspera, o PAIGC..

Mas eu, confesso, não gosto de bater nos mortos... Às vezes achava-lhe piada, ao VPV, quando tinha uma coluna no "Público"... Nunca fui leitor do "Independente". (Ele também arrasa os seus antigos companheiros desse tempo, o MEC, o Miguel Esteves Cardoso, o "enfant terrible", a maior decepção da sua vida de jornalista, e o amigo Paulo Portas, se bem que mais novos que ele...).

Antº Rosinha disse...


Atenção, como Retornado genuíno que sou, ("genuíno" tem certas particularidades), uma delas é que a maioria é proveniente de Angola.

Outra é que para ele a política (colonial, nem conhecia mais nenhuma) para ele em geral era a política do Salazar, que por sua vez, era igual à da política do grosso dos velhos régulos de toda a enorme Angola, menos alguns bacongos.

Ninguém acreditava na sinceridade nem capacidade dos diversos movimentos independentistas, para aquilo a que se dispunham.

Aqui o tempo é que é a verdadeira testemunha e o tempo é que deve falar.

Mas venho com esta conversa, porque a partir do 25 de Abril o Retornado olha sempre para traz, e não perde a oportunidade de ler escritores e historiadores e jornalistas tipo VPV por exemplo.

E tudo o que li sempre de VPV sobre o assunto, colónias, cheguei a uma conclusão, "uma no cravo, outra na ferradura".