quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
A surpresa de dois extensos relatórios assinados pelo Capitão Jorge Frederico Velez Caroço e destinados ao governador da Guiné, Major Carvalho Viegas, encontrados nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, ressuscita alguns dados aqui já versados, caso do importante relatório do chefe da delegação do BNU da Guiné sobre os acontecimentos relacionados com as rebeliões Felupes, que dominaram o início da década de 1930. Valeu a pena regressar à leitura da obra de René Pélissier, "História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841-1936, Volume II, Editorial Estampa, 1997", ele trata com bastante detalhe o chamado L'Affaire Gaté, consultou as fontes documentais francesas que mostram claramente que este desastre aéreo ocorreu em território senegalês, não teve qualquer ligação com a Guiné Portuguesa. Mas acendeu-se o rastilho a uma tragicomédia onde até se fantasiou que havia uma base naval alemã nos Bijagós... Que o leitor se prepare para novos episódios.

Um abraço do
Mário



L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1)

Mário Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia aparecem dois relatórios com a assinatura do Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, em que apresenta ao Governador Carvalho Viegas o resultado das pesquisas desenvolvidas por uma comissão de inquérito que envolveu autoridades francesas e portuguesas para apurar se um desaparecido avião francês tinha aterrado em solo colonial português, houvera denúncias que testemunharam que tal tinha acontecido. São documentos de leitura obrigatória e procuram clarificar um extenso comentário do historiador René Pélissier no seu trabalho "História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936", Volume II, Editorial Estampa, 1997; acontece igualmente que o assunto aparece tratado também no ano do desaparecimento do avião (1933), num relatório enviado pela delegação do BNU na Guiné para a sede em Lisboa, e que consta do meu livro "Os Cronistas desconhecidos do canal de Geba, o BNU da Guiné", Húmus, 2019.

Comecemos por René Pélissier, que teve a faculdade de consultar arquivos em França sobre o assunto, inicia o seu texto por nos falar nas rebeliões dos Felupes (1933, 1934, 1935), na mitologia de que eram antropófagos, o que nunca se demonstrou, e lança-se diretamente em L’Affaire Gaté, dando-nos a cronologia dos acontecimentos. Tudo começou no dia 30 de junho de 1933, enquanto executavam um exercício de voo em altitude, dois aviadores da Base Aérea de Dacar, o Ajudante-chefe Gaté e o Sargento Mecânico Brée, apanhados num tornado, desaparecem no seu Potez-Salmson; no mês seguinte, as autoridades da base procederam a buscas, não encontraram o aparelho nem os corpos, arquivaram o caso, não foram conhecidas buscas desenvolvidas pelas autoridades portuguesas; no verão, a Senhora Gaté, insatisfeita com o inquérito oficial, a expensas suas, ciente que o marido está vivo, vem ao Senegal, entra em contato com o Senhor Figuié, este encarrega um agente seu, Moussa N’Doye, de procurar saber mais em meio africano; na Gâmbia como no Casamansa, obtém informações de um avião avistado dirigindo-se para sul; a Senhora Gaté, acompanhada pelo casal Figuié e Moussa N’Doye entram em chão felupe guineense; esta missão contata em Susana Apaim-Ba, conhecido por Alfredo, feiticeiro de Jufunco, este declara não ter visto qualquer avião; o administrador de Canchungo, comandante Joaquim Esteves, junta-se aos franceses, convoca uma reunião com Felupes; os chefes declaram nada saber, mas Mamadu Sissé diz que viu um avião dirigindo-se para o sul que deve ter aterrado em Jufunco; a Senhora Gaté parte para Bissau e depois para Bolama, onde o Governador Carvalho Viegas mostra o processo das investigações e facilita a viagem à Senhora Gaté, que regressa aos Felupes; inopinadamente, há Felupes que afirmam que o avião está em Jufunco, entregam a Esteves um pedaço de lona do avião, trazido por um africano, dizendo que o encontrou em Jufunco, se tudo estava mirabolante mais mirabolante ficou quando o comandante Esteves declara que o dito Alfredo quis mandá-lo assassinar, ele vai ser interrogado pelos franceses; aparece agora Capitão Velez Caroço, manda prender Alfredo, em Susana o comandante Esteves interroga os suspeitos à palmatória, depois de torturado Alfredo confessa que o avião aterrou em Jufunco, dá informações contraditórias sobre os dois aviadores e diz que recebeu instruções do Deus da Guerra para destruir o avião, continua o interrogatório, as versões dos prisioneiros divergem cada vez mais, depois os prisioneiros invadem-se, chegam soldados e metralhadoras de Susana, Velez Caroço recomeça os interrogatórios, é-lhe dito que o avião foi desenterrado – temos aqui já todos os ingredientes para uma telenovela de aventura e ação, com pozinhos de crime e mistério; Velez Caroço e as tropas partem de Susana para Jufunco, a zona é militarizada, chegam dois oficiais aviadores franceses ao S. Domingos, há notícia de combates em frente de Jufunco, o capitão de armas de Bolama, Joaquim Sinel de Cordes, parte para ir buscar reforços e acabar com a resistência de Jufunco, vive-se já um clima de guerra, Alfredo invadiu-se e passou pela Casamansa, os Felupes refugiaram-se na floresta; já em novembro, Moussa N’Doye regressa a Dacar e anuncia que os portugueses queimaram Jufunco – esta é a versão dos factos nas fontes francesas, de uma hipótese nunca fundamentada de que um avião francês, por obra do acaso, ter aterrado em Jufunco, estalou a rebelião dos Felupes; toda esta sequência trágica irá prolongar-se por 1934 e 1935, como René Pélissier pormenoriza: o Exército está em chão Felupe, ali passa seis meses, desconhece-se o número real das baixas dos Felupes, tudo se agudiza em maio de 1934, nova ofensiva contra os Felupes; em Paris, a Senhora Gaté não desarma, escreve para os órgãos de soberania, diz que o marido está preso nos Bijagós pelos alemães, e diz mesmo existir no arquipélago uma base naval alemã, a tragicomédia refina-se, as operações contra os Felupes prosseguem.

É altura de fazer ouvir o responsável pelo BNU da Guiné, ele recebera de Lisboa o seguinte telegrama: “Este telegrama é absolutamente confidencial e só poderá ser decifrado pelo gerente devendo na sua ausência ser devolvido indecifrado ao expedidor – telegrafe-se se o gentio se revoltou – telegrafe se ordem restabelecida quem e como foi sufocada a operação. Telegrafe as notícias que puder pormenorizando”.

A 13, em carta talhada o gerente de Bissau escreve para Lisboa:
“Há cerca de 3 meses levantou voo de Dacar com destino a Ziguinchor um avião francês tripulado por aviador e acompanhado de um observador. Por qualquer razão desconhecida – diz-se que fugindo a um tornado, o avião desviou-se da sua rota e presume-se que por falta de gasolina tenha caído em território desta colónia, a uns 40 ou 50 quilómetros da fronteira norte, na região dos Felupes, área do posto civil de Susana, circunscrição de Canchungo. O governo francês, supondo que o avião tenha de facto caído nesta região, solicitou do nosso que mandasse proceder às necessárias pesquisas. Diz-se que essas pesquisas foram efetuadas sem resultado. Há 20 dias, pouco mais ou menos, apareceram na área do posto de Susana, a mulher do aviador desaparecido e uma outra senhora francesa, acompanhadas de um sargento aviador francês e ainda de um outro indivíduo que se dizia comerciante de Dacar, para fazerem, por sua vez, novas pesquisas. O governador autorizou e este grupo regressou ao posto de Susana acompanhado pelo ajudante de campo do governador. Em breve começaram a circular boatos sobre o aparecimento de vestígios do avião. O Capitão Velez Caroço, notando certo retraimento do gentio, receando qualquer agressão dos Felupes, que desde sempre se tem mantido mais ou menos rebelde, pagando o imposto positivamente quando e como quer, sem que lhes tenha sido aplicado o corretivo necessário por falta de recursos, cobardia ou desleixo, resolveu, de acordo com o governador, não continuar as suas diligências sem se fazer acompanhar de uma pequena força militar.
Regressaram a Bissau e daqui partiram de novo para Susana, armados e municiados. Os Felupes receberam-nos hostilmente, travando-se um combate em que morreram 2 soldados, ficando vários feridos. Imediatamente seguiu para o local o Capitão Sinel de Cordes, que castigou os revoltosos, tanto mais que já no ano passado, na mesma região, tinham cortado a cabeça a 5 soldados. Entretanto, era mandado chamar Bora Sanhá, alferes de segunda linha, para se lhe ordenar que organizasse o mais rápido possível um grupo de irregulares Fulas, com o fim de coadjuvarem as tropas regulares. Poucas horas depois, Bora Sanhá escolhia 100 homens da sua confiança, alguns deles seus antigos companheiros de armas, embarcaram para Jufunco. Corriam os mais desencontrados boatos sobre o que se estava a passar com os Felupes. O Capitão Sinel de Cordes assumiu o comando de regulares e irregulares, ao todo cerca de 400 armas e 5 metralhadoras, começando a bater os revoltosos com a energia que o momento impunha. Os revoltosos refugiram-se entre pântanos. O governador seguiu para o campo de operações. Voltando a Bissau, o governador trocou impressões comigo sobre o que se passava com os Felupes. Que tinham sofrido importantes baixas, resolvera dar por finda as operações, visto que os acontecimentos não tinham a gravidade que lhes atribuía. As nossas tropas, à custa de sacrifícios grandes, tem avançado e arrasado todas as populações por onde têm passado, incendiando as palhotas e destruindo as culturas”
.

A carta é longa, tem o condão de introduzir importantes detalhes sobre tudo o que se passou e que, mais adiante encontrará os relatórios posteriores de Velez Caroço, depositado nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, aspetos complementares de grande interesse, se bem que, há que o reconhecer, toda esta história não tem pés nem cabeça se atendermos aos relatórios franceses que davam como seguro que o desastre aéreo ocorrera noutras paragens. E vemos misturados a compreensível ansiedade da Senhora Gaté com o encadeamento de rebeliões Felupes que dão a toda esta trama o ar de uma telenovela de tempos coloniais, onde se cruzam hipóteses absurdas de uma base naval alemã nos Bijagós, interrogatórios brutais a Felupes e a ganância de informadores que a troco de compensações de alguns milhares de francos inventavam a queda de um avião que uns viam ter passado, mas que concretamente ninguém sabia dizer para onde. Que o leitor se prepare, há ainda mais condimentos para adubar esta história verdadeiramente estereofónica.

(continua)
Avião Potez-Salmson
Uma mais que colorida festa Felupe, imagem de Eta Oliveira (do Wattpad), com a devida vénia
Dança do choro, Susana, década de 1960
Dacar, Senegal, anos 1930
René Pélissier
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23773: Historiografia da presença portuguesa em África (342): A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Mais uma vez fica aqui demonstrado o desinteresse da administraçao colonial portuguesa em registar factos, nomes e acontecimentos que tinham a ver com os chamados "gentios" ou "indigenas" nos territorios ultramarinos.

O Bora Sanha que aparece no texto é o nome mal grafado de Bonco Sanha, Alferes de segunda linha e régulo de Badora (pai de Mamadu Bonco Sanha) que, juntamente com Monjur Embalo, régulo de Gabu e Branjame Baldé (Braima Jame Baldé), régulo de Sancorla, eram dos principais colaboradores da administraçao colonial nessa época de muita turbulencia na Guiné e que eram, também, fieis amigos do Governador Velez Caroço (Jorge Frederico Velez Caroço, antigo Senador e Governador da Guiné) que apostava muito na colaboraçao com as chefias tradicionais para a manutençao e administraçao colonial, tendo em conta a evidente e historica escassez de meios proprios e, diga-se de passagem, com algum sucesso, tendo em conta os resultados obtidos nesse periodo em nome da paz social e politica no territorio.

Nessa operaçao, participaram auxiliares oriundos de diferentes regulados, inclusive de Sancorla (nosso regulado), e lembro-me de ter ouvido de um dos meus tios (pai grande na versao fula), o relato desta operaçao que ocorreu no Chao Felupe e o tema era sobre a suspeita da pratica do canibalismo no meio Felupe. Contou-nos que durante as caminhadas de ida e regresso no Chao Felupe e durante as operaçoes, tinham instruçoes de nunca ficarem hospedados numa casa/tabanca Felupe com receio de ficarem sem a respectiva cabeça no dia seguinte e faziam marchas forçadas mesmo durante a noite.

O nosso pai/tio Samagaia que foi um agente de manutençao da ordem (policia ou Sipaio) em Bolama e Bafata e, mais tarde, pretendente ao cargo de régulo de Sancorla, acabou por se refugiar na regiao de Casamansa (Senegal) na localidade de Dabo, em resultado da perseguiçao que teria sido vitima da parte dos seus primos e adversarios na sucessao na casa de Canhamina (Branjame, régulo de Sancorla), apos o falecimento deste em 1938, pouco tempo apos a morte do seu filho e principe herdeiro Abdu Buran (Abdulai filho de Branjame), na ultima campanha de repressao dos Canhabaques (guerra de Canhabaque 1936/37).

O Mamadu Sissé, instituido régulo dos Felupes, tinha sido um dos braços direitos de Abdul Injai, companheiro do Capitao Teixeira Pinto, durante a Campanha de 1912/15.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé