quarta-feira, 7 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22076: Antropologia (42): "Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa", por Manuel Belchior (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
A recolha que Manuel Belchior fez no Gabú abre preciosas pistas de trabalho. Recorde-se a importante investigação de Carlos Lopes sobre o Kaabunké, o Império do Cabo tinha vasto território na colónia portuguesa. Há lendas muito antigas que os povos não esqueceram, como Sundjata Keitá, o fundador do Império do Mali, aliás estes trovadores que ao longo de séculos exaltaram estes heróis não circunscrevem o território, tanto podem falar do Sudão como da África do Noroeste, as narrativas precipitam-se para os combates entre Mandingas e Fulas, estamos já no século XIX, estes heróis vão entrar no ocaso com a chegada dos franceses, dos ingleses e dos portugueses no chamado período da ocupação, as três potências coloniais introduziram um enquadramento político-administrativo que desmantelou os velhos poderes. São lendas onde há por vezes sinonímia com os quadros lendários indo-europeus: lealdade e deslealdade; amizade e traição; bravura descomunal... E ficamos a saber como estes reinos viviam em guerras permanentes e se dedicavam ao tráfico de escravos. São linhagens que o povo ao longo dos tempos recordou sempre graças aos trovadores, foram estes artistas que comoveram os povos falando-lhes de uma identidade perdida, nesses tempos remotos de grandeza africana.

Um abraço do
Mário


Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa, por Manuel Belchior (2)

Mário Beja Santos

Manuel Belchior, já aqui abordado a propósito dos seus livros Contos Mandingas e Os Congressos do Povo da Guiné, era funcionário colonial com habilitações superiores, uma longa carreira administrativa no Ultramar Português (de 1938 a 1961), depois foi investigador da Junta de Investigações do Ultramar, em serviço da qual se deslocou à Guiné numa missão que está na base que tornou possível a publicação deste livro. "Grandeza Africana" foi editado pela Mocidade Portuguesa, não se menciona a data. A capa e as belíssimas ilustrações são de José Antunes. No Gabú, contatou o régulo Alarba Embaló, descendente dos Embalocundas, que governaram durante muito tempo o Gabú unificado – o régulo Monjur era descendente desta família. Alarba Embaló deu meios a Manuel Belchior para ir conhecendo narrativas orais transmitidas de geração em geração, neste caso o repertório envolve duas importantes etnias, Fulas e Mandingas.

A recolha de Manuel Belchior permite uma viagem pelo tempo, começando em Sundjata Keitá, fundador do Império do Mali, filho do rei de Mandem, são narrativas de bravura, elegias de fraternidade, trata-se de uma preciosa recolha que permite, a despeito de todas as interrogações que levantam as narrativas orais, não abonadas por documentação factual, entender como se ergueram impérios, como ainda subsistem heróis lendários como Coli Tenguelá, Alfá Moló, figuras de transição de um império em franca decomposição cuja machadada final foi dada pela chegada da potência colonial, que trouxe uma nova organização político-administrativa. Era indispensável, como ponto de referência incontornável, falar da batalha de Cam Salá. Obrigatório é também a canção de Quelé Fabá, como sempre a descrição tem consideráveis semelhanças com a mestiçagem da descrição africana e islâmica, veja-se o caso:

“Quelé Fabá Sané, natural de Badora, era o maior guerreiro das terras de Bafatá e Gabú. Ninguém o igualava em temeridade e destreza. Tão alto subiu a sua fama que vários régulos, quando empenhados em guerras, pediam seu concurso.

Um dia, Demba, senhor de Baria e seu amigo, chamou-o para o auxiliar a combater um chefe vizinho poderoso.

Pôs-se Quelé Fabá a caminho, acompanhado da sua mulher, Fendabá, mas antes de partir jurou na sua tabanca que, nem na guerra, nem tão pouco na viagem, voltaria a cara para trás.
A certa altura necessitaram de atravessar um rio e, na canoa, o herói esqueceu-se do juramento feito. Para melhor conduzir o barco ficou de frente para o ponto de partida. Vendo isto, Fendabá gritou: - Que desgraça! Lembra-te do juramento! Entristeceu Quelé Fabá e disse que o seu esquecimento era presságio de que ia morrer na luta”
.

É bem curioso, como observam investigadores das Literaturas Comparadas, as analogias de temáticas clássicas, a quebra do juramento, o olhar para trás e aparece igualmente no mito órfico.

Pondo termo a estas lendas da Guiné Portuguesa coligidas por Manuel Belchior, recordemos seguidamente Samori Touré, de quem Sékou Touré se dizia descendente, o religioso Fodé Bacar Dumbiá, que tratava as suas duas mulheres desigualmente, ele reparou na injustiça e da relação nasceu Fodé Cabá. 

Tudo se passa no final do século XIX, o Islamismo ia triunfando por todo o imenso Sudão e, de uma maneira geral, em toda a África do Noroeste, Fodé Cabá aplicou-se na conversão dos djolas, povo idólatra que vivia no Baixo Casamansa, criou um reino cujas fronteiras tocaram o de Mussa Moló, rei de Firdu, crescem as tensões e depois a guerra. São, curiosamente, heróis que vão desaparecendo. Associado a esta história de Fodé Cabá temos outra narrativa, o primeiro combate de Demba Agedá, vê-se claramente tratar-se de uma história apologética do triunfo do Islamismo.

Já com relação a uma outra história lendária que envolve o régulo Monjur, do Gabú, temos o cativeiro de Selu Coiada, príncipe Fula-Forro. O rei do Firdu, Mussa Moló, foi visitá-lo, era um cortejo de 300 cavaleiros ricamente vestidos. A alegria do encontro foi turvada quando um dos trovadores sentenciou: Por mais que um Fula-Preto seja rico ou poderoso, nunca o seu valor pode igualar o de um Fula de raça. Da amizade passou-se ao ódio e depois a vingança. 

Manuel Belchior aproveita para fazer alguns comentários. Selu Coiada sucedeu a seus irmãos Alfá Bacar Guidali e Alfá Mamadu Paté no trono do Gabú, que transitou a seu sobrinho Monjur Embaló, falecido em 1926. Os soberanos do Gabú pertenciam à família dos Embalocundas. As autoridades portuguesas da Guiné intercederam junto das autoridades francesas do Senegal para que estas alcançassem de Mussa Moló a liberdade de Selu Coiada. O príncipe Fula-Forro foi entregue ao comandante português de Farim por uma escolta francesa.

História bem curiosa é a narrativa que fala da conquista do Futa-Djalon. O soberano da região, o Almami Abubakar, confiou ao seu parente Alfá Iáiá a chefia dos 666 regulados da região de Labé, por um ano. Alfá recusou-se a entregar o mandato, seguiu-se guerra, o Almami foi vencido, outros intercederam, Alfá também foi vencido. O Almami procurou fazer as pazes com o seu parente. 

Intervêm os franceses, passaram a ser os senhores do Futa-Djalon, onde somente Alfá Iáiá, no Labé, guardaria por pouco tempo uma certa independência. Noutra narrativa, assistimos à deposição de Alfá Iáiá, o último grande senhor do Futa. E termina a obra de Manuel Belchior com a canção de Cherno Rachide, que habitava em Aldeia Formosa ou Quebo, cuja letra é a seguinte:

Filhos amados, vosso pai Rachide
Uma regra de vida nos vai dar,
Segui-a com rigor e não tereis
Nada que lastimar.

Raparigas sabei que um homem espera
Encontrar na mulher três qualidades:
Respeito aos seus segredos, ao seu leito
E a todas as vontades.

A vós rapazes dou-vos um conselho
Que todo o sábio para si tomou
De outro, inda mais sábio, Logomane
Que outrora assim falou:

- Deves ter fé em Deus que tudo vê
E tudo pode acerca dos mortais
Trabalha com ardor e serás útil
A ti e aos demais.

- Estuda e elevarás a tua alma
Que os livros te podem ensinar
Muitas coisas formosas deste mundo
E a Deus agradar.

- A palavra, o alimento e o sono
Como remédio deverás tomar:
O bastante p’ra que o corpo não sofra
Mas sem nunca abusar.

- A boca é uma e as orelhas duas
Isso te indica como proceder
Usa o ouvido mais do que o falar
E saberás viver.


- Em três partes o estômago divide
P’ra comida só uma reservar
As outras hão-de ser bem necessárias
P’ra água e para o ar.

- A noite é grande e não deve ser gasta,
Do sol posto a amanhã, toda a dormir,
Destina parte dela à oração,
Terás feliz provir.

- Deves casar p’ra nunca cobiçares
Mulher d’outro. Não nego, o casamento
Terás desgosto profundo.
Mas se a fêmea procura fora dele,
Em vez desse desgosto terás dois
Neste e no outro mundo.

Meus filhos, quem seguir estes conselhos
No decurso da vida há de contar
Satisfações a esmo.
E maiores triunfos que o atleta
Que vença toda a gente nos torneios,
Pois vence-se a si mesmo.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22054: Antropologia (41): "Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa", por Manuel Belchior (1) (Mário Beja Santos)

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