terça-feira, 6 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22073: Blogoterapia (296): Melancolia - Em dias chatos e aborrecidos, ligo a música e deixo que ela me transporte para outros níveis de consciência mais suportáveis (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Miguel Torga

Foto (editada): Com a devida vénia a SAPO Viagens


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 5 de Abril de 2021:

E
m dias chatos, aborrecidos, tramados, nefastos, em que tudo de mau acontece, sem querer especificar, ligo a música e deixo que ela me transporte para outros níveis de consciência mais suportáveis. Nessa atmosfera de sons em harmonia, surge a melancolia que é um estado de alma nem alegre nem triste, enfim é uma tristeza suave que ajuda a viver e a suportar a realidade nua e crua das mágoas em ferida que o pessimismo avoluma.

Talvez o meu problema seja a dicotomia de viver entre duas vidas, ou minha falta de jeito para utilizar as palavras adequadas quando me dirijo aos outros, enfim um problema criado pela solidão social e intelectual e no entanto eu valorizo o auxílio que outros com mais poder dialéctico me poderiam trazer.

Fernando Pessoa bebia vinho ou aguardente, bebidas nacionais, no Martinho da Arcada ou na Brasileira e escreveu odes e poemas imortais para a posteridade.

Cafés que Luís de Camões, grande poeta e grande boémio, não frequentou porque no seu tempo não havia, perdia-se por vielas e tabernas com marinheiros e plebeus, e por palácios com reis e nobres ociosos segundo reza a lenda, a arquitectar o grande poema, que escreveu, como um grande hino à Pátria.

Eu como outros amigos com menos talento ficaremos contentes se encontrarmos algum companheiro paciente e lúcido para escutar as nossas lamúrias na esperança de que ele seja um deus que tudo cala e tudo perdoa.


Neste devaneio da memória, surge Miguel Torga, meu ídolo maior, com o rosto farto, seco e rugoso esculpido em granito pelo vento agrestes das montanhas a lembrar o meu velho pai , um homem com raízes fundas também nesse "Reino Maravilhoso" de terras pobres que obrigavam a meditar e marcavam os rostos com rugas acentuadas.

Tão longe tão próximo, uma figura tutelar, outro herói nacional que me acompanha desde a adolescência.

Nos últimos Diários, com a idade a avançar mas com uma lucidez sempre jovem, impressiona-me o pessimismo e a angústia de viver que revela, e de que não dá explicações. Chegado a um alto patamar da vida em prestígio, fama e homenagens, esse grande lutador, destinado a ser lavrador ou pastor, que em ciência e livros se transformou num oráculo amado e admirado por todo um povo. Talvez eu tenha que ler a biografia dele, se a houver, para conseguir interpretar essa tristeza que a mim me contagiava.

O tempo abriu. Está um lindo dia de Primavera. Não há dias felizes, há horas felizes!

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21085: Blogoterapia (295): O Covid-19 e os mísseis Strela (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR)

5 comentários:

Anónimo disse...

Uma das outras grandes "árvores" da nossa cultura escreveu:


"Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é sombra de árvores alheias"

Um grande abraco do J.Belo

Anónimo disse...


Caro José Belo, Fernando Pessoa foi um vulcão, sempre em ebulição. Tal como a Hidra de Lerna , com sete cabeças a pensar de diferentes formas e a criar versos imortais para a posteridade.
Um grande abraço

Francisco Baptista

Anónimo disse...

Também admiro Miguel Torga; saiu em 2018 a 2ª edição da Fotobiografia de Miguel Torga da autoria de sua filha Clara Rocha, com prefácio de Manuel Alegre, das edições Dom Quixote.

Albertino Ferreira

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Francisco, lê poesia, em voz alta...Faz tão bem!,,, Em casa, na rua, no jardi, ou no miradouro de São Leonardo da Galafura...Para um admirador de Torga, é obrigatório lá ir...com paragem (obrigatória) na Quinta da Senhora da Graça...

É um "dever patriótico" ir a São Leonardo da Galafura!... Há portugueses que já deram a volta ao mundo, mas nunca lá foram... rezar a São Leonardo e prestar vassalagem ao Douro!...É que no céu não disto, camaradaras!.. E este é um dos poemas da antologia da poesia portuguesa, daqueles que é obrigatório ler em voz alta contra os penhacos e o vento!


São Leonardo da Galafura

À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!

Miguel Torga

https://www.almadeviajante.com/sao-leonardo-galafura/

Anónimo disse...



Tenho a Poesia Completa de Miguel Torga , em dois volumes, de capa dura , bem encadernados. Hoje pelo que escrevi ontem, pelo poema do Fernando Pessoa , que o José Belo admira tanto, (eu também) e pelo comentário sobre Torga do Albertino Ferreira, fui buscar esses livros de poesia, à estante e li vários poemas, não li nenhum em voz alta porque estava só em casa.
Caro Luís já fui três vezes a Galafura e tornarei a voltar lá, Galafura é o vale do Douro em todo o seu esplendor, são os versos do Miguel Torga e o espirito dele a voar sobre as águas e as montanhas de Trás-os-Montes,
Já fui à Quinta da Senhora da Graça e quero voltar lá também , há lá bom vinho, bom cabrito, lindas vistas sobre o Douro, há poesia e a Luísa e José Manuel são muito amáveis.
Com Torga me despeço:

Vento que passas, leva-me contigo.
Sou poeira também, folha de outono
Rês tresmalhada que não quer abrigo
No calor do redil de nenhum dono.

Leva-me e livre deixa-me cair
No deserto de todas as lembranças.
Onde eu possa dormir
Como no limbo dormem as crianças

Francisco Baptista