sexta-feira, 9 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22086: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (47): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2021:

Queridos amigos,
É o cerimonial do adeus, foi bem difícil a partida do Cuor, felizmente que na sobreposição se visitou Gambiel, Aldeia do Cuor, as imediações de Missirá, se vasculharam as permanentes necessidades de Finete. Deixaram-se as contas regularizadas, era o mais importante, para não virem mais tarde reclamarem capacetes ou baionetas em falta à carga. A nossa estranhíssima memória das coisas levanta questão labirínticas, no meu caso continuo sem perceber como for possível reproduzir aquela noite com lua em que me despedi de Mato de Cão e arredores, havia maré-cheia ainda noite cerrada e regressou-se ao romper da alva, viveram-se todos os sons que a mata emana, os murmúrios do Geba, a entrada em Missirá em marcha trôpega quando a população civil se entrega às tarefas no sol esplendente do raiar da manhã. Pois assim aconteceu, talvez tenha sido lenitivo para a partida, não se vive impunemente mais de 16 meses sem detença naquele território, convivendo ombro a ombro a vida e a morte com velhos e crianças, gente da nossa idade, situações de perigo ou risco, e se sonha, antes de vir a paz, que as crianças e os adultos aprendam a ler, possam ir ao médico, esperar dias melhores, foi esse o trem da vida, a consigna daquela presença, com os melhores votos de esperança na hora da partida.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (47): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Inoubliable Annette, lumière de mon coeur, devido ao período letivo, ao trabalho da Função Pública e aos preparativos da documentação para a próxima Assembleia-Geral da Associação Europeia de Consumidores, não tenho tido parança, às vezes um tanto trôpego ando a catar em velhos dossiês o material remanescente da comissão na Guiné, tenho sido afortunado com elementos que fui enviando na minha correspondência, peço à família e amigos e por isso os posso revelar, às vezes as cópias não são boas, caso destas duas imagens que o meu amigo Sousa Pires me facultou mas que permitem visualizar o interior de Missirá e uma perspetiva da fonte de Cancumba, vital para o nosso fornecimento de águas, para a higiene das mulheres e crianças.

Como cronologicamente estou em vias de abandonar Missirá, caminhamos para 14 de novembro, nesse dia o meu pelotão de caçadores nativos partiu e chegou outro, vou ficar vários dias para ajudar a aclimatar o meu camarada Alves Correia à atmosfera do Cuor.

As impressões que te vou deixar são muito íntimas, nós já temos conversado sobre coisas que aconteceram antes de eu partir para a Guiné, lembra-te daquele caviloso inquérito que me foi instaurado por ter havido informação de que eu era “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar Português”, e que esteve na base de eu ter ido para a Guiné em rendição individual, como me disse o major “Vá lá infetar os pretos com as suas ideias políticas”. Falei-te igualmente das conversas que tive com o meu amigo José Manuel Medeiros Ferreira, pertencíamos à mesma unidade militar, ele sugeriu que eu desertasse com ele, tivemos conversas muito dolorosas, reatámos relações quando ele veio de Genebra, depois do 25 de Abril. Tenho procurado centrar-me só na comissão na Guiné, reconheço que tu tens razão, não se pode concluir esta narrativa no dia em que regressei, em 1970. Havia os sinistrados a viver em Lisboa, com quem convivi. Depois de um mês de férias, fui dar duas recrutas a Mafra, fazia parte de um contrato que estabeleci com o Ministério do Exército para depois ter tempo para acabar rapidamente a licenciatura, como aconteceu, e o ministrar a minha experiência aos soldados-cadetes teve poder catártico, útil para eles se aperceberem da dureza da guerra, útil para mim por transferir a vivência na preparação de quem em breve ia para a guerra. Meu adorado amor, a saída do Cuor desorientava-me profundamente, não era impunemente que ganhara aquelas raízes afetivas, e não tinha qualquer ilusão que a ida para Bambadinca não era uma viagem para as terras de leite e mel. E agora passo ao papel a minha derradeira viagem a Mato de Cão, o que se passar a seguir são atos de acompanhamento, em termos operacionais, da dita aclimatação das tropas do Alves Correia aos territórios do Cuor que percorríamos em permanência.

Saio pela calada da noite pela porta de Sansão, está prevista a passagem de um comboio de embarcações qualquer coisa como as três, quatro da manhã. Temos umas boas horas de marcha e o luar a nosso favor. Anuncia-se a época seca, e vamos a corta-mato pela bolanha entre Caranquecunda e Sansão, sempre a corta-mato descemos até Maná, flanqueia-se a estrada até Canturé, caminha-se sobre a picada até Gambaná, não há perigo de pisar minas, é tudo pedra, até parece lajedo. Com o seu olhar apurado, beneficiando do luar, Cibo Indjai chama-me a atenção para as pegadas de vaca na terra seca. É uma noite muito amena, o ar respira-se sem dificuldade, levamos todos só a camisa de camuflado, o suor evapora-se e logo a seguir emerge um suor oleaginoso. Atravessamos o palmeiral de Chicri, com toda a prudência subimos para o Planalto de Mato de Cão, posicionamo-nos em meia-lua, sempre com dois observadores nos extremos, de pé, só assim será possível detetar possíveis movimentos de aproximação de gente que venha de Madina. E ficamos à espera, ouvindo o Geba caudaloso, o murmúrio das águas já a galgar o tarrafo, prenúncio da maré-cheia, é ela quem vai propiciar a passagem das embarcações civis. Como de costume, ouvem-se os gemidos das hienas, o restolhar dos corpos do mato, o piar das aves noturnas, os estalos do arvoredo. Em plena madrugada, somos despertados pelo ronco dos motores, primeiro um zumbido quase suave e persistente, depois uma zoada sempre em aproximação. É um espetáculo fantasmático, vemos passar as sombras das embarcações, batelões da Casa Gouveia. Acontece que o luar é intenso, metaliza as águas, correm sem estrépito, é uma sonoridade monótona, pressinto que nunca mais viverei tais sensações. Beneficiando agora de um luar mais intenso, volto-me e despeço-me do Planalto de Mato de Cão, vejo à distância o sombreado dos palmares em volta, pergunto-me quantas vezes vim a este local, sempre com o coração contrito, se houve aprendizagem para a prudência que jamais esqueci e nunca tergiversei foi esta aproximação e esta retirada, direi sempre com orgulho que só por bambúrrio da sorte podíamos ter sido emboscados ou sujeitos a mina antipessoal. E olho também lá para o fundo, como se estivesse a ver a estrada que nos leva a Saliquinhé, S. Belchior e até ao Enxalé, sempre a beijar o rio, depois da fronteira do Cuor. E assim regressamos com os primeiros alvores de um vermelho enfarruscado, depois a mata incendeia-se com o súbito aparecimento do sol. Como sempre acontece, o nosso percurso de regresso nunca é igual ao anterior, desta vez descemos até à tabanca abandonada de Mato de Cão, subimos junto a Chicri, vamos a corta-mato até Gã Gémeos, e quando a manhã rompe em todo o seu esplendor entramos aos baldões em Missirá, já mulheres e homens partem para as culturas ou para as lavagens, a vida retoma-se dentro do perímetro vegetal, e quero que tu saibas, minha adorada, que guardo êxtase deste momento, e aquele sentimento contraditório de quem aqui penou e agora parte contristado.

Como vão ser os últimos dias em Missirá, Annette? Efetuou-se toda a operação da transferência, quem entra e quem sai não vai esquecer que houve um cerimonial de curto-fogo por parte de um grupo de guerrilheiros do PAIGC que lançaram morteiradas um pouco abaixo da fonte de Cancumba, parecia uma praxe, mas vinha na sequência de um conjunto de pequenas e quase inócuas flagelações que ocorreram entre outubro e novembro. Desse período de 14 a 19 fico sozinho em Missirá, melhor dito ficou também Ussumane Baldé, o meu guarda-costas interino, que me irá ajudar a arrumar os trastes, a limpar o pó dos discos, a embalar os livros, os meus haveres são de fresca data, tudo quanto trouxe o fogo devorou, são haveres recentes. Bens de valor só os nossos valores, a nossa cultura e o amor de Deus passado aos homens.

À chegada, o Alves Correia dá-me uma informação surpreendente, trazia instruções do major de operações para desencadear, no amanhecer de 16 de novembro, a Operação Truta Vivaz, iria colaborar um grupo de combate da CCAÇ 12, 60 homens iriam fazer um patrulhamento ofensivo percorrendo um bom terço do território do Cuor. À cautela, e com a maior discrição, conversei com o guia Quebá Soncó, o pelotão 54 encontrar-se-ia com a força da CCAÇ 12 em Finete, ao amanhecer do dia 16, olhando para a carta, sugeri o itinerário, um tanto cansativo até à tabanca de Sinchã Corubal, nada de aventuras em direção a Madina, e descer-se-ia em direção a Chicri, lembrei-lhe aquela emboscada noturna em que seguimos exatamente este itinerário, fizemos a vida negra a um grupo que vinha de Madina sabe-se lá se para Mero se para os Nhabijões, e retirando para Chicri. Fiquei em Missirá com o pelotão de milícias. Aproveito para acompanhar umas obras, vou-me despedindo das famílias Soncó e Mané, tomo chá com Lânsana Soncó, falamos nos nomes das árvores, fiquei finalmente a perceber a diferença entre pau-conta e pau-incenso, pau-veludo, pau-bicho, farroba e calabaceira. Convido o régulo para jantarmos em privado, devolvo-lhe o anel de Infali Soncó, só Malã é que tem dignidade para usar este anel, começa por protestar, depois reconsidera, mas não deixa de me recordar que eu passei a ser um Soncó. E iremos os dois pela última vez passar juntos na mesquita.

A Truta Vivaz correu sem incidentes. A 18 vamos até à ponte do rio Gambiel e vistoriámos, o Alves Correia e eu, tudo quanto está no depósito de víveres, lençóis e fronhas, caixas de munições. A 19 bem cedo, fui mostrar-lhe as zonas geminadas e armadilhadas em Morocunda e Mato Madeira, dali seguimos para o último itinerário, a Aldeia do Cuor. Almoçámos muito cedo, a coluna que me leva tem que vir à luz do dia. Aceno a todos a despedida, a miudagem acompanha-me ruidosamente até à Porta de Armas. Vou na caixa da viatura, de pé, quero despedir-me do Cuor, guardar-lhe a essência dos odores, dos tons do arvoredo, do fio da picada que se estende até Canturé, vejo as toranjas no arvoredo frondoso, os imensos morros de bagabaga, guardo a imagem dos limoeiros e dos cajueiros em flor, prossegue a viagem pela imensa linha reta ladeada de belos poilões até à ladeira de Finete. Procuro reter tudo, como se a vista pudesse empapar-se como um mata borrão e até reter a panorâmica na bolanha de Finete, em que se avista lá ao fundo, no alto, Santa Helena. A despedida em Finete também não foi fácil, despeço-me a chorar daquela criança cujo processo acompanhei, Abudu Cassamá, tem as suas costas retalhadas pela explosão de uma granada incendiária. Já chegámos ao rio Geba, despeço-me de todos que me acompanharam, é o último olhar para o Cuor, agora é só voltar as costas, entro na canoa, troco uns arremedos de conversa com Mufali Iafai, subo a rampa de Bambadinca, sei de ciência certa que começa neste exato momento uma nota etapa da minha vida.

Estou a preparar-me para te telefonar amanhã à noite, sei que passas o dia no Luxemburgo. Há dias estranhaste o meu tom de voz, tinha mesmo a voz embargada, é o frémito das saudades, traduz-se nas tremuras da voz, é como se ficasse descompassado, preciso tanto de ti, sei que só me dás alento, temos os nossos projetos em marcha, mas preciso doidamente de ti. E mais não digo. Bisous, Paulo

(continua)

Duas imagens cedidas pelo meu amigo Sousa Pires, furriel em Missirá e um colaborador dileto.
Sem a água da fonte de Cancumba a vida em Missirá era impossível. Todos os dias, no mínimo duas vezes, uma secção ia buscar bidões, jerricãs e garrafões. Na véspera de eu chegar a Missirá (3 de agosto de 1968) veio gente de Madina deixar propaganda e avisos sinistros. Até fins de outubro de 69, registei por seis vezes a presença do inimigo, aqui. Nunca envenenaram a água. Montávamos segurança para as mulheres lavarem a roupa e abastecerem-se. Era ali que elas tomavam banho com as crianças, recusaram sempre o balneário de Missirá.
O grande tormento era quando o Unimog 404 ou o burrinho, o 411, estavam avariados. Então, meia Missirá arrastava os bidões ida e volta, operação penosa só compensada pelo banho frio, muitas vezes a cheirar a petróleo. O Furriel Pires veio à fonte tirar a fotografia para celebrar a cabeça rapada.

O colorido da festa, mulher Futa-Fula exibindo belos adornos
Balantas trabalhando na construção de um orique, imagem publicada no livro Raízes, edição da Fundação Mário Soares, depois da recuperação feita de negativos afetados pelas destruições feitas nas instalações no INEP pelas tropas senegalesas durante a guerra de 1998-99
Azáfama no Cais do Xime, a sua construção revolucionou o abastecimento de toda a região Leste
O Cais do Xime inaugurado em 1969, já em grande fase de degradação, ambas as imagens pertencem ao blogue
Mal chegado a Bambadinca, novembro de 1969, vida nova, mas longe do muitíssimo amado regulado do Cuor
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Nota do editor

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