sábado, 10 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22090: Os nossos seres, saberes e lazeres (446): Quando vi nascer a Avenida de Roma (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Não se trata de uma ode triunfal à Avenida de Roma, é um apanhado de recordações de quem teve a dita de ver nascer de solo inculto toda esta arquitetura que marcou uma época, em toda a acepção da palavra. Primeiro pelo arrojo arquitetónico, o regime abria os cordões à bolsa e satisfazia as classes médias com habitação digna, casas com porteiro, mármores, amplas divisões, com os transportes à porta, artérias folgadas. Havia, é certo, obras incompletas, caso da Avenida João XXI, que só muitos anos mais tarde é que desceu até ao Campo Pequeno. Há estudos completos sobre a evolução desta parte da cidade, o historiador de Arte José-Augusto França, que a seguir ao 25 de abril deu uma perninha no planeamento urbano e na história da cidade, descreve bem como tudo aqui despontou, basta ler o seu livro Os Anos 20 em Portugal. Imaginem a petizada a vir num bairro relativamente monocórdico e assistir, entre a poeirada, à nascença deste admirável novo mundo.

Um abraço do
Mário


Quando vi nascer a Avenida de Roma (3)

Mário Beja Santos

Eu bem gostaria de vos contar ao pormenor o que era o nosso ensino primário, o que se aprendia em português, o tipo de leituras, o esplendor da Pátria, as minudências da Geografia, das Ciências Naturais, a profusão de heróis na nossa História gloriosa, e deixo para último a aritmética, com trabalhos que me deram cabo da cabeça mas, confesso, defenestraram-me medos para os rudimentos do que cada um de nós deve saber de Gestão, a começar pela nossa. Escrevi nas memórias da minha infância O Fedelho Exuberante o que por acaso guardei numa folha de apontamentos que, pasme-se, sobreviveu. Era uma coisa assim: “O professor deu dois quintos de uma folha de papel a cada um dos 35 alunos da classe. Quantas folhas foram distribuídas? Abro o caderno, mostro a operação, 2 a dividir por 5 dá 0.4, multiplico por 35, logo 14 folhas, estou impante de alegria, a minha mãe acena, afirmativa”. Claro que houve traumas com os decímetros, os hectómetros e os decâmetros, felizmente tudo passou.
Aqui na António Patrício há Bairro Social e outra arquitetura. Na esquina com a Avenida de Roma são prédios da Caixa de Previdência, mas neste recanto emergiram dois prédios diferentes, marcarão a fronteira do quarteirão, a seguir temos os prédios verdes, assentaram nas profundezas do olival, erguem-se em pilares decorados por pequenos mosaicos, são todos verdes, os habitantes, insista-se, trazem outra graduação social, reconheça-se no entanto que na Rua António Patrício temos o prédio dos médicos, confim com o meu, a Dr.ª Maria Alcina Esteves da Fonseca, do rés-do-chão direito, assistirá, em 1964, ao estertor da minha querida avó, no rés-do-chão esquerdo vive o Dr. Ivo Loio, que foi padrinho de casamento de Agostinho Neto, pelos anos fora farei amizade com o Dr. Cabral Rego, cuja paixão eram os postais máximos, e com o Dr. Carlos Conceição, que fazia anos do dia de Natal e exigia a nossa presença.
Os prédios verdes modificaram o funcionamento do nosso abastecimento. A minha mãe fornecia-se diariamente no Mercado do Saldanha, as miudezas conheceram transferência da Rua de Entrecampos para aqui. Logo em frente a nossa casa havia padaria com fabrico próprio, dispersos talhos, frutaria, mercearia, o mais que se sabe. Instalaram-se empresas de reparação, escritórios e até cabeleireiro. Por uma questão de fidelidade, continuei a ir cortar cabelo no Campo Grande na Barbearia do Sr. Cunha, esperantista emérito, e a deliciar-me com o disse que disse da clientela.
Recorde-se que os nossos prédios do Bairro Social, entenda-se, têm uma arquitetura bastante uniforme, sempre de três andares, o mesmo tipo de fachada com algumas variações nas varandas, já se disse que há uma certa variedade na dimensão das casas. Podia agora discretear sobre as cinco divisões da minha morada, a lembrança da chegada do esquentador, do frigorífico e da enceradora (não esquecer que havia para ali umas enormes tábuas de pinho, nenhuma Encerite conseguia fazer luzir todo aquele madeirame), mas não me parece oportuno. Vamos subir até à Avenida de Roma, deixa-se o Campo Grande e a Igreja dos Santos Reis Magos onde frequentei a catequese para outra ocasião, tenho pena de não vos falar mais dos nossos quintais, bem tratados por gente que tinha fortes reminiscências do meio rural de onde eram provenientes, as nespereiras, os loendreiros, as laranjeiras, os buxos, mas também não é oportuno.
A atração irrecusável é o nascimento daquele cruzamento na Avenida de Roma. Vamos aos factos.
Tudo começou naqueles quatro prédios portentosos, cor-de-rosa, com umas marquises rendilhadas e fazendo junção com prédios mais baixos da Avenida dos Estados Unidos da América e até mesmo com um prédio do Bairro Social. Combinávamos na escola ir espreitar o avanço dos trabalhos, subíamos os andaimes a partir das cinco da tarde, víamos chegar os novos residentes que, indiferentes à poeirada permanente, chegavam com os seus haveres nas camionetas de mudança, íamos espreitar o espólio dos novos inquilinos, descobrimos que havia porteiros, tinham secretárias torcidos e tremidos. Era um caos harmonioso, havia gente a chegar indiferentes à zoada dos camartelos, dos camiões pejados de areia a despejar matéria-prima para alimentar as betoneiras, estas sempre a resfolgar e a vomitar o ingrediente transportado para o trabalho dos trolhas.
Inolvidável experiência, ver a Avenida de Roma crescer prodigiosamente em direção à linha do caminho-de-ferro, e depois ultrapassá-lo. Nós, a miudagem, apalermados com o arrojo daquelas linhas, nada se comparava com a casa do nosso bairro, nós tínhamos varandas simples e austeras, óculos a fazer de janelas, o que se via no nosso bairro podia-se ver na Encarnação ou no Alto da Ajuda, era um fabrico em série de baixo custo e até me apetecia contar-vos que na nossa casa usaram madeira não tratada, uma noite acordámos com um estrondo monumental na sala de jantar, o guarda-loiça enfiou-se pelas ripas podres, houve que substituir todo aquele travejamento em pinho. Na Avenida de Roma tudo parecia panorâmico, varandas arredondadas, andares com três e quatro janelas e com estores, prédios com cores garridas, não havia dois tons iguais, portas bem chapeadas, pegas como de casas apalaçadas, os átrios marmoreados, os prédios com elevador, saiam das viaturas de mudanças móveis de estilo novo, o chamado estilo americano, andávamos a ver os elementos escultóricos e a tentar decifrá-los, sabíamos lá o que eram os tritões e as sereias, um dos prédios tinha lá em cima uma escultura de um ferreiro. Que maior novidade podíamos ter?
Antes de continuar, e de vos dizer que estão a chegar comerciantes azafamados com lojas a vender café e chá (a mistura popular de café, com preço imposto pelo Governo é coisa das mercearias, nestas lojas novas primam os lotes de S. Tomé, Angola e Timor), sapatarias, artigos orientais, pequenos estabelecimentos com papelaria e tabacaria, e até descrever o bulício rodoviário, uma palavra, para o Vá Vá. O Vá Vá é um dos pontos altos desta modernidade onde pontificam Formosinho Sanches e José Segurado, e no termo da Avenida Cassiano Branco. Ainda hoje podemos visitar o seu interior azulejar, o resto mudou radicalmente, perdeu o ar de café, é um snack-bar insípido. Por aqui passo sempre que posso para homenagear a Menez que nos deixou esta arte tão bela, felizmente conservada, ainda que tenha perdido a primitiva atmosfera.
A imagem seguinte é para mostrar a ligação entre as elegantíssimas torres e prédios que vão manter a escala e dar uma dimensão segura à Avenida de Roma. Estou neste momento a ver a trautear o maestro e compositor Joly Braga Santos, que vivia no prédio à esquerda. A seguir ao 25 de abril esta zona foi sacudida por uma tormenta, houve para ali uma explosão de todo o tamanho no primeiro andar da torre, constava que alguém estava a fazer uma bomba naquela atmosfera de PREC e deu-se mal, desapareceu entre muitas janelas desfeitas.
Olho para a correnteza destes prédios e logo me lembro de outra novidade, os cafés com o título snack-bar, a novidade eram as refeições ligeiras que davam pelo nome de combinados, aqui não havia petiscos de taberna, nada de bacalhau albardado ou bifanas, comia-se ao balcão mas também à mesa. Posso fechar os olhos e recordar os diferentes estabelecimentos que por aqui houve, que davam uma sensação de autossuficiência que se prolongava até à Avenida Guerra Junqueiro, onde o comércio adquiria uma outra sofisticação. Ficaram ainda algumas lojas icónicas, a Cafélia e a Livraria Barata, aqui o proprietário sabia olhar o cliente e dispensar-lhe, quando lhe tinha confiança, um livro proibido e também aqui, numa loja então com dimensões insignificantes, era possível encontrar David Mourão Ferreira, Artur Portela Filho ou Virgílio Ferreira.
A Avenida de Roma estende-se entre a Praça de Londres e a Avenida do Brasil. Veremos mais adiante que do cruzamento da Avenida de Roma com a Avenida dos Estados Unidos da América é tudo muito mais taciturno, o comércio é muito menos vibrante, a grande recordação que guardo é o Cinema Alvalade, e explicarei porquê. A artéria febricitante é aquela que passou nestas últimas imagens e que culmina com esta preciosidade arquitetónica de Cassiano Branco. Entre a muita sorte que a vida meu deu tenho um querido amigo que aqui vive, e não há vez que aqui quando bato à porta não recorde o Café Roma e mesmo ao lado o Café Londres, ambos de saudosa memória.
(continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 5 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22070: Os nossos seres, saberes e lazeres (445): A minha primeira viagem (de comboio) para além do Ave, Minho... Uma aventura, até Ermidas do Sado, Santiago do Cacém, Alentejo ! (Joaquim Costa)

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Beja Santos
Morei por esses lados finórios, mas conhecia mal.
Em 1964, eu e minha mãe mudamos da zona da Praça do Chile, o prédio ficou devoluto, para a Trav. Henrique Cardoso, junto da Av.de Roma, e por lá vivemos, eu até 1972 e minha mãe até falecer em 2004.
Como fazia vida e convivia com os amigos na zona do Chile mal frequentei essa zona, com a excepção de eu os meus amigos habitualmente e até às tantas cairmos na "Alga", na Rua Conde Sabugosa. A "Alga" era frequentada por gente conhecida na época e formavam-se interessantes tertúlias. Fora isto frequentei a "Mexicana" que ficava a meio caminho.
A construção nessa zona é selectiva, provavelmente terá pesado o valor dos terrenos: mais afastado o Bairro de Alvalade de construções modestas, mais perto, incluindo o Bairro S. Miguel, de construções mais modernas e arrojadas como os prédios da rotunda Av.Roma-Av.EUA fora do habitual português suave.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz