sábado, 13 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24312: Os nossos seres, saberes e lazeres (572): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (102): Com sangue d’África, com ossos d’Europa (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Um dos papéis que levei na bagagem para esta viagem eram memórias de António Pusich, nascido em Ragusa (Dubrovnik), estudou em Itália e aí se relacionou com o Conde de Linhares, ministro de Portugal em Turim, assim chegou a Portugal, em 1801 era Intendente da Marinha das ilhas de Cabo Verde. Sobre a ilha de S. Vicente escreveu, ainda antes desse período áureo de Mindelo transformado num poderosíssimo entreposto onde abundava o carvão para as viagens transoceânicas: "Não é muito alta esta ilha e o seu terreno em geral é seco e pouco apto à cultura do milho e outros frutos; mui próprio, porém, para o algodão e criação de gado, pois produz imenso e bom pasto e muita urzela e lenha de tarrafe. O seu clima é mui temperado e saudável. Tem uma paróquia com 80 habitantes, resto de muitos que se mandaram a povoar esta ilha, mas que sucessivamente foram emigrando, por lhe faltarem aquelas benéficas e úteis providências e socorros que o soberano mandou se lhe dessem." Mal sabia Pusich que este porto instalado numa das mais graciosas baías que há em África iria ter uma importância singular a meio do século XIX, importância que perdeu com o desenvolvimento de Dacar. Aqui aportei em 1970, assombrou-me, nas escassas horas que ali estive, o processo de aculturação, vinha do continente, não só da guerra, mas de uma África multiétnica em que a identidade portuguesa estava colada a cuspo. E aqui era tudo diferente. E posso dizer, mais de meio século depois, que tudo continua diferente, sempre euroafricano.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (102):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa (1)


Mário Beja Santos

O título destes comentários de viagem foi extorquido a um poema de Corsino Fortes, livro "Pão & Fonema", de 1980, achei-o apropriado face ao fenómeno de transculturação que é Cabo Verde, como diria também Jorge Barbosa, “uma encruzilhada de duas sensibilidades”.

Há décadas que suspirava por vir até aqui. Em agosto de 1970, o navio Carvalho Araújo saiu de Bissau e aportou primeiramente junto ao Sal, seguimos para Mindelo, o comandante deu-nos rédea solta durante umas tantas horas, toca de desembarcar e bisbilhotar o possível, impunha-se comer lagosta e tentar dar uma volta à ilha. Logo no desembarque algo me surpreendeu, a amplitude da baía, rodeada de montanhas, sentia-se a estrutura vulcânica e a aridez de perto e à distância, e seguiu-se a surpresa daquele bonito casario, parecia que tinha havido vontade para ali implantar uma capital, ficámos embasbacados com a dimensão dos Paços do Concelho e, mais adiante, numa rua chamada de Lisboa, o Palácio do Governador. Enfiámo-nos pelas ruas, com aquela sensação de um plano ortogonal, como comprovadamente existia. E assim se chegou a uma praça com um belo coreto, surpreendeu-me um Luís de Camões junto de um quiosque, houve então quem reclamasse que queria comer lagosta, mais tarde alugou-se um táxi e deu-se um belo passeio. À chegada a Mindelo, comprei bilhetes-postais, o reservado para a minha mãe era aquela praça com coreto, texto rápido a informar que só faltava Ponta Delgada para chegar a Lisboa, mas aquela Mindelo, como ela podia ver, era uma pitoresca povoação portuguesa.

A viagem que me traz a Cabo Verde começa no Mindelo, procurarei refazer a viagem de táxi, desta vez em transportes coletivos, já deu para sentir que a cidade demograficamente explodiu e o turismo é imenso. Falta um pormenor, a memória reteve a outa ilha em frente, também naquela perspetiva me parecia árida, a quem fiz perguntas a resposta era sempre a mesma, quando chegar ao porto de Santo Antão tem uns bons quilómetros de muita secura, mas prepare-se para o deslumbramento das culturas, a imponência da montanha, a graciosidade dos vales, as casas encavalitadas, o cheiro do trapiche.

Pois bem, primeiro S. Vicente, depois Santo Antão, começando na Ribeira Grande, e regressar a S. Vicente, Cabo Verde é para degustar, nunca apreciei aquelas excursões da Rodarte, uma empresa de camionagem que organizava viagens a sete países em dois dias. Já arrumei a bagagem, troquei euros por escudos, parei em frente da Cesária Évora, trouxe um livro dos anos 1980 que mostra a Mindelo do passado, pergunto pelo coreto, há vários, respondem, dois na Praça Estrela, têm um muito bonito na Praça Nova, esse é seguramente do seu tempo. E era. Mirei-o cuidadosamente de dia e voltei à noite, uma noitinha calma e com brisa, a banda afadigava-se entre rumbas, música cubana e koladeras.

Leitura que recomendo a quem visitar o Mindelo, com a independência mudaram-se muitos nomes, só que a identidade cabo-verdiana pulsou mais forte, Mindelo desabrochou e foi pujante em meados do século XIX, tem as suas marcas com que se identifica. Este livro é um guia que ajuda a revelar o gosto pela preservação do património, e não posso esconder que me sentia feliz neste lugar euro-africano onde a herança portuguesa é um elemento genético do cabo-verdiano.
Maestro e a sua equipa, metais vibrantes, a assistência atenta e aplaudindo no fim das peças. Escuso dizer que o gosto pela música, de a praticar, faz parte da essência cabo-verdiana, todos os sons são admissíveis entre a apoteose e a melancolia, extremos sentimentais que pautam a alma deste povo.
Fotografei Sá da Bandeira de dia e de noite, preferi esta imagem do político que aboliu a escravatura, que se destacou pela bravura, o fundador da Academia Militar, e dá prazer ver o modesto monumento tão bem tratado neste jardim que é sempre encantador, seja qual for a hora do dia.
E é mesmo à hora do dia que retenho a imagem deste busto de Camões, a terra é de poetas e de prosadores admiráveis, trouxe na bagagem o Germano Almeida, o seu indispensável O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, totalmente compreensível que este património cultural é inapagável neste lugar ímpar a centenas de quilómetros da costa ocidental africana.
Esta moradia fazia parte do bilhete-postal, tudo à volta mudou, fiquei estarrecido com este azul, já cá estava há meio século, estou certo e seguro.
Quando se está na Praça Nova há um colorido luminescente de que não nos podemos desapegar, avança-se, entra-se no Centro de Arte e Design, primeiro há uma moradia de um senador da I República que foi intransigente defensor da autonomia cabo-verdiana, é memória de culto, e depois temos este engenho, um espaço expositivo e de ateliês em que a frontaria é uma agregação de tampas de bidons com que tudo chega a Cabo Verde, é um empolgante hino à cor, parece-me um talentoso ready-made, uma esplendorosa arte funcional, procurei dois ângulos para que o leitor se aperceba deste achado de harmonia que abre portas ao engenho de tecelões, tapeceiros, designers que potenciam todos os recursos da sua terra, como vamos ver.
António Carreira dedicou um livro à panaria cabo-verdiana e guineense, salientou as afinidades, são indiscutíveis. Na Guiné, embeicei-me pelos panos manjacos e tive a felicidade de ver teares manuais em plena laboração. A diferença está na matéria-prima. Na loja tomei o peso a estes panos e são de uma grande leveza, são feitos de algodão, matéria-prima cabo-verdiana. Na Guiné usam-se linhas, tornam as bandas mais pesadas. Lembro-me da panaria existente no antigo Museu da Guiné, na então Praça do Império, tudo desapareceu, são peças muito disputadas, desde que bem conservadas, duram uma vida. E gostei da tapeçaria local, daqui segui para uma área expositiva do que o centro produz, e reconheço que é de indiscutível valor.
Senti-me feliz por ver o desvelo com que se recupera e valida o trabalho dos artífices. Agora vou percorrer Mindelo na avenida que contorna o porto. As surpresas sucedem-se e os encadeamentos ditados pelos escaninhos da memória dão-me um enorme regozijo. Limito-me hoje a um simples exemplo.
Tenho por detrás uma réplica da Torre de Belém, foi edifício da capitania do porto, é hoje Museu do Mar, iremos falar deles. Nesta esquina que emana um fedor a peixe, com rua que irá desaguar na Praça Estrela, olhei ao alto para um esmalte que provavelmente tem cerca de 100 anos e fico a saber que a então avenida principal de Mindelo saudava a República. E deu-me para recordar o meu passeio a Bolama, em 1991, ia à procura da tipografia, um património museológico de grande valor, e lá estava o nome das ruas: Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, muito provavelmente essas mesmas peças esmaltadas escaparam ao furor de erradicar a presença portuguesa, de que hoje os guineenses se queixam, nenhum povo subsiste sem memória. E aqui fico a contemplar um resquício do passado. Estou a sentir-me muito bem no Mindelo e feliz por partilhar convosco estas andanças da mais estranha das Áfricas e da mais improvável das Europas.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24292: Os nossos seres, saberes e lazeres (571): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (101): Veloso Salgado no MNAC – Museu do Chiado: O maravilhamento de obras desconhecidas de amigos franceses (3) (Mário Beja Santos)

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