quinta-feira, 11 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24308: Noites de Mejo (1): O mistério do Extractor perdido (Cor Inf Ref Luís Cadete, ex Cap Inf, CMDT da CCAÇ 1591, 1966/68)

Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > O Fur Mil José Carlos Lopes posando ao lado da temível Browning, 12.7, uma metralhadora pesada.
Era uma arma devastadora, com uma cadência de 500 disparos por minuto e com um alcance, à superfície, de 1500 metros. Pesava cerca de 45 kg.

Foto: © José Carlos Lopes (2013). Todos os direitos reservados



O Mistério do Extractor Perdido

Luís Cadete

Um patusco qualquer, com veia para o romance de terror, alcunhou-o de ANTECÂMARA DO INFERNO. E sempre que alguém fazia menção ao sítio, o pessoal a ele destinado arrepiava-se; depois de lá estar uns tempos, esquecia-se do facto e até fazia gala em dizer que por ali estanciava. Estar naquele sítio, muito para lá do sol-posto, que nem sequer Judas parecia ter pisado para ali perder as botas, era um posto, um penduricalho que mais ninguém tinha hipótese de alcançar.

De facto, o sítio ficava a meio de uma extensa e infecta picada, que parecia nunca estar reparada por mais que o pessoal, no intervalo das operações, se esforçasse por tal conseguir, a despeito dos 45º à sombra e da chuva diluviana, que convidavam ao ripanço, mas que o Capitão K*****, nado lá para o Alentejo profundo, além-Guadiana, não permitia. Quer se fosse para Leste ou para Oeste, as bolanhas a transpor, qual delas a mais larga, eram seis para um lado e doze para o outro, segundo o jornal-da-caserna. Uma havia, para Oeste, cuja travessia obrigava a manobras complicadas, demoradas e esgotantes, aquando dos reabastecimentos. De facto, para além de implicar a descarga dos abastecimentos dos Unimog 411 e seu transporte, a braço, para a margem oriental, para de novo serem carregados nas viaturas, necessário se fazia passar estas para a citada margem, sem descurar a segurança das operações de transposição da bolanha, o que era um bico-de-obra de todo o tamanho, que requeria engenho e arte. Graças a Deus, era coisa que não faltava ao pessoal daquela Companhia de Caçadores cuja experiência destas e doutras manobras já levava mais de ano e dia. E então, era assim.

À ordem do Comandante da coluna, avançava o Unimog com guincho cujo cabo era puxado para a margem oriental e abraçado a um frondoso e robusto poilão, que ali estava, quiçá, desde o tempo em que Deus ainda andava pelo mundo; logo que confirmado que a manobra estava executada a preceito, o condutor punha o guincho em marcha e a viatura lá avançava com todos os vagares, atasca aqui, desatasca acolá, auto-rebocada e empurrada, quando necessário, pelo pessoal. Seguidamente, fazendo inversão de marcha, fixava-se o Unimog com um cabo sobressalente ao poilão pelo engate da retaguarda e passava-se o cabo do guincho para a margem oposta da bolanha para rebocar as restantes viaturas, descarregadas, que o pessoal se apressava a recarregar para seguir viagem até à dita ANTECÂMARA DO INFERNO.

Claro que na estação do cacimbo, logo que as bolanhas secavam, a operação estava simplificada, salvo algum atascanso inesperado, que o solo da bolanha não era de confiança. Se não fora o «trabalho de estrada», como o Capitão baptizara as operações de reparação dos troços de estrada entre bolanhas e as operações propriamente ditas contra os quadrilheiros do PAIGC, que se intensificavam, a estação do cacimbo seria o descanso do guerreiro. Malfadadamente, estava longe de o ser. Como era norma, os ditos aquartelamentos não possuíam pontos de água no seu interior, um poço, um furo que debitasse água potável em abundância sem esforço. Assim, com chuva diluviana e calor tórrido ou temperaturas amenas e céu azul, havia que realizar, quotidianamente, a «operação da água», que é como quem diz, era necessário ir com os dois atrelados-tanque de água e respectiva escolta até uma nascente situada a distância imprópria da ANTECÂMARA DO INFERNO para garantir o abastecimento do precioso líquido à Companhia. E o mesmo se passava para a lenha necessária ao funcionamento da cozinha onde pontificava o «chef» 1.º cabo cozinheiro M***** e seus ajudantes.

Todavia, a grande dor de cabeça do Capitão era o abastecimento de água, não só à tropa, mas também à população que com ela vivia numa simbiose perfeita. Segundo ele explicava aos seus oficiais, um poçozinho no interior da tabanca-aquartelamento que debitasse água potável com fartura e pouco trabalho era coisa muito mais importante para a contra-subversão do que uma dúzia ou duas de emboscadas e outros tantos assaltos às posições dos quadrilheiros do PAIGC.

Nesta convicção, quiçá pouco canónica, algum tempo depois de ali chegar e verificar a situação do abastecimento de água, como era homem dado a engenhoquices, imaginou canalizar a água da nascente para o interior da posição por intermédio de tubagem que vira ser utilizada para o efeito lá para os lados da sua terra natal. Segundo ele, abria-se uma trincheira entre a nascente e um dado ponto da tabanca para colocar a tubagem ao abrigo de eventuais acções do IN e estava a coisa feita; era só aterrar a trincheira e pronto, a água jorraria onde era necessária. Então, dirigiu-se aos seus superiores hierárquicos, expondo a questão e a sua importância, solicitando que a Engenharia fornecesse à Companhia os elementos da tubagem julgados necessários à obra. Os meses passaram-se, abateram-se dois quadrilheiros numa emboscada montada na nascente, levantaram-se mais umas quantas minas TM-46, que o pessoal era cuidadoso e eficaz nas picagens, e atacaram-se as organizações do inimigo existentes no sector, mas de Bissau nem novas nem mandadas.

O Capitão, que nunca ninguém vira sair do sério, mudou de estratégia: decidiu solicitar que a Engenharia ali abrisse um furo ou poço, explicando, novamente, a importância de tal melhoramento. Na volta do correio, coisa que o surpreendeu pela positiva, recebe a Companhia um avantajado envelope do Batalhão de Engenharia da Guiné dentro do qual um significativo número de folhas de papel explicavam, com bonecos e tudo, como a Companhia devia abrir um poço a pá e picareta! Quanto à deslocação da Engenharia e do equipamento adequado para a obra pretendida, era coisa fora de cogitação por inadequado. De facto, a distância era grande, as viagens de batelão incómodas, as minas um bico-de-obra e os mosquitos e a outra bicharada que inçavam o destino pouco convidativas eram para quem estanciava por Bissau com tudo do bom e do melhor.

O Capitão leu e releu a resposta, enfiou as manápulas cabeludas pela farta cabeleira castanha na qual já brilhavam alguns fios brancos, a despeito da idade, e começou a bufar. Levantou-se daquela coisa que lhe servia de secretária com as negregadas folhas na mão direita e saiu do edifício que lhe servia de gabinete e de secretaria à Companhia onde pontificava o 1.º sargento D*****, homem competente, honesto e ponderado, com vários anos de tarimba a responder por companhias. A bufar como bicho enjaulado, pôs-se a andar para cá e para lá e a falar sozinho. De repente, parou e num ataque de fúria que nunca ninguém lhe vira, com os olhos injectados, rasgou toda aquela papelada e lançou-a num dos tambores de recolha de lixo, que mandara instalar para não haver desculpas quanto à limpeza. Mais calmo, e como quem fala consigo, berrou:
- Como é que estes filhos-da-puta de Bissau se atrevem a sugerir-me que mande abrir um poço a pá e picareta se nem sequer tenho quem o saiba fazer nem material para o entivar e garantir a segurança do pessoal dentro do buraco? Estão a mangar com a tropa ou comem trampa?

A largas passadas entrou no gabinete, sentou-se à secretária e começou a redigir uma nota, daquelas de caixão à cova, que passou ao 1.º sargento D***** para que a mandasse dactilografar.

O 1.º sargento, que assistira à fúria do seu comandante, leu, pausadamente, o texto e, tirando-se dos seus cuidados, foi ao gabinete do Capitão. Este estava recostado na cadeira, calmo, com ar satisfeito com o que escrevera.
- O meu comandante dá-me licença? - disse o 1.º sargento.
- Entre, ó D*****, e já agora diga-me aí à ordenança que me traga uma bazuca fresquinha que me deu uma sede desgraçada!

Vinda a bazuca fresquinha e um copo, o D***** entrou de rascunho em punho e plantou-se em frente da secretária.
- O meu comandante vai-me perdoar o atrevimento, mas a minha consciência e a estima que tenho por Vossa Senhoria não me permitem mandar dactilografar este texto -, começou o 1.º sargento. - Se Vossa Senhoria me permite, passo a explicar.
O Capitão sorriu-se.
- Então explique lá, mas explicadinho, explicadinho para militar perceber -, respondeu o Capitão de boa catadura.
- Como Vossa Senhoria sabe tão bem ou melhor do que eu, a despeito da razão que assiste ao meu comandante, este texto é excessivamente violento, foi escrito com a cabeça quente. Vossa Senhoria, meu comandante, sabe que se isto seguir assim vai dar origem a um processo disciplinar que não vai resolver problema nenhum, mas vai prejudicar a vida de Vossa Senhoria, meu comandante, e, por tabela, a nossa companhia.

O Capitão debruçara-se sobre a secretária a escutar, atentamente, o que o seu 1.º sargento lhe ia dizendo, sem o interromper.

- Vossa Senhoria, meu comandante, sabe melhor do que eu que há aqui expressões ofensivas da hierarquia e que o RDM não admite - continuou o D***** a suar em bica. - Se Vossa Senhoria, meu comandante me permite, eu tomo a liberdade de pedir a Vossa Senhoria que reveja este texto. Vossa Senhoria é oficial do QP, sabe que eu tenho razão e que não lucra nada em insultar, embora eu não duvide da razão que assiste ao meu comandante, quem teve o topete de enviar à nossa companhia aquela papelada toda. Obviamente, se Vossa Senhoria reiterar a ordem, far-se-á como está escrito neste rascunho, mas quero que o meu comandante saiba que ninguém aqui está interessado em que Vossa Senhoria deixe a companhia e ainda por cima com uma porrada às costas.

O Capitão sorriu-se, um sorriso pleno de tristeza e profunda e insanável desilusão.
- Agradeço-lhe a frontalidade. Dê cá essa merda! - disse o Capitão estendendo a mão por sobre a secretária. - Responder-lhes assim ou assado é dar-lhes uma confiança que não merecem. Portanto, vamos fazer de conta que zurrou um burro. Espero contar sempre com essa sua frontalidade.

Como para a hierarquia era indiferente a construção do poço, melhoramento importante para a guarnição e para a população da tabanca, nem lá iria para ver a obra, o Capitão arrumou o assunto no cesto dos papéis.

Entretanto, para espanto do pessoal e desgosto da população que se afeiçoara àquela tropa, a hierarquia congeminou a rotação da Companhia para uma posição lá para o norte da Zona de Acção Sul próxima da fronteira com a La Guinée. Segundo constava, era sítio relativamente sossegado, com três ou quatro cantinas de libaneses que vendiam de tudo e mais alguma coisa, e instalações para a tropa de boa qualidade, cedidas por uma empresa com sede em Bissau e que ali exercera a sua actividade até ao início dos confuson, expressão que a população usava para designar a guerra. A preocupação do Capitão passou a ser o planeamento da rotação, que implicava entrega de todo o tipo de materiais da Companhia à que a iria substituir na famigerada ANTECÂMARA DO INFERNO.

Entre o material de guerra a entregar, cuja manutenção estivera a cargo do furriel de Armas Pesadas V*****, homem do Norte, rigoroso, competente, dedicado ao serviço e afeiçoado ao Capitão, estava uma metralhadora pesada Browning 12,7 mm m/951, que sempre cumprira a sua função sem falha alguma. A Browning fora sempre, tal como o restante armamento pesado de defesa do “aquartelamento”, uma máquina a debitar lume. Apenas os quadrilheiros do PAIGC, que teimavam em meter-se-lhe no sector de tiro, tinham razão de queixa.

Trocadas as Secções de Quartéis para a recepção do material e dois grupos de combate, a entrega e recepção dos materiais decorreu sem incidentes e, consequentemente, as Guias de Entrega foram assinadas por ambas as partes em rotação sem qualquer observação. E assim se completou a transferência das companhias, transferência essa que não agradou à nova Companhia da ANTECÂMARA DO INFERNO que, na realidade, passava de cavalo a burro. Coisas… Ora, o capitão de Artilharia A*****, comandante da Companhia de Artilharia***** recém-transferida mais para o sul, decidiu que se desmontasse completamente a metralhadora para ser devidamente limpa, pois não confiava em quem lha passara, embora a tivesse visto a funcionar como um relógio e não tivesse tido dúvidas em assinar a respectiva Guia de Entrega após assistir à conferência do respectivo completo, prova de que tudo estava em ordem.

E descansou.

Descansou ele e a guarnição da metralhadora, dada ao ripanço, ao que parecia. E pelas três da madrugada do dia seguinte, sem se fazerem anunciar, os quadrilheiros do PAIGC flagelaram à grande e à francesa a nova companhia que, surpreendida com a novidade, tardou em responder com eficácia, permitindo que o inimigo fizesse estragos, nomeadamente na tabanca, o que caiu muito mal à população. Montada a toda a pressa no meio da escuridão, a já mais do que citada Browning não correspondeu ao que dela se esperava; ficou em silêncio, um silêncio inexplicável, porquanto toda a gente a ouvira cantar aquando da entrega.

Mal a aurora despontou lá para Oriente, verificou-se que faltava uma peça naquela máquina de cuspir ferro e fogo: nada mais nada menos que o extractor, segundo informação da ignara guarnição da metralhadora! E no relatório da flagelação, que fez seguir até ao topo da hierarquia, à falta de melhor justificação da ineficácia da resposta, o capitão A***** não hesitou em culpar a Companhia de Caçadores**** que lhe passara uma arma inoperacional, embora não tivesse tido dúvidas em assinar a respectiva Guia de Entrega sem observações que pudessem vir a justificar alguma falha posterior. E sem ter tido a hombridade de colocar a questão ao seu homólogo para que este, eventualmente, a resolvesse. Bem vistas as coisas, a falta de um extractor é questão de lana-caprina, que qualquer capitão sabe como resolver sem estardalhaço.

Ora, no Comando Militar, onde tudo parecia indicar que se percebia tanto de metralhadoras Browning 12,7 mm como de lagares de azeite, ninguém duvidou da narrativa do capitão A*****, manifestamente ressabiado com a rotação que lhe calhara em rifa. E vai daí, remete-se uma nota, confidencial-pessoal, ao capitão K***** para que respondesse à funesta questão do extractor, logo ali transformada em casus belli, à falta de melhor que demonstrasse o empenho do topo da hierarquia na satisfação das necessidades das companhias em sector. Claro que o assunto era um não-assunto, porquanto se havia uma peça em falta, ainda por cima coisa tão corriqueira como um extractor, bastava oficiar o capitão A***** para que o requisitasse ao Serviço de Material em Bissau e elaborasse o competente auto de extravio ou incapacidade do especioso extractor para apreciação superior ou, mais eficaz ainda, ordenar ao dito que enviasse um extractor à companhia que dele carecia. Mas não. A nota confidencial-pessoal pareceu ser a coisa mais eficiente e eficaz para resolver aquele caso bicudo do extractor alegadamente em falta e devolver, num abrir e fechar de olhos, a total operacionalidade à companhia do capitão A***** na defesa do “aquartelamento”.

Enquanto o pau ia e vinha, a companhia do capitão K***** estava entretida a reconstruir um abrigo que herdara derruído e a restaurar o espaldão do morteiro 8 cm que fora invadido pelo baga-baga e se encontrava inoperacional por herança, tudo isto e mais não sei o quê sem espalhafato nem relatórios lamurientos.

Face ao conteúdo da confidencial-pessoal, o capitão K***** rascunhou uma resposta cordata, que se resumia a explicar que, segundo o Manual de Funcionamento da Metralhadora Pesada Browning 12,7 mm m/951, esta arma não possuía extractor amovível que pudesse, consequentemente, extraviar-se ou danificar-se; de resto, a Companhia de Caçadores ***** possuía o duplicado da Guia de Entrega devidamente assinado sem observações, mas mais do que isso, a citada arma sempre funcionara durante a permanência da Companhia na anterior posição e voltara a fazê-lo durante a entrega do material na presença do capitão A*****. E ponto final.

Ao chegar ao Quartel-general do Comando Militar, a resposta à confidêncial-pessoal desencadeou uma verdadeira tempestade de comentários, qual deles o mais inadequado. O conteúdo daquele pedaço de papel, mais ou menos rectangular, era um escândalo! E por tal razão foi levado, com urgência, ao gabinete do Chefe da Repartição de Logística onde se encontrava o capitão G*****, recém-chegado à Guiné no comando da *****.ª Companhia de Comandos, a tratar de assuntos relacionados com a sua companhia aquartelada em Brá, uma pequena cidade militar entre Bissau e o aeroporto de Bissalanca. Para aumentar a confusão e dar opiniões do estilo «Eu acho que…», o chefe da Secção que recebera a resposta do capitão K***** fazia-se acompanhar de três ou quatro majores do CEM.

Posto o tenente-coronel do CEM chefe da repartição ao corrente da resposta e dos antecedentes, houve logo quem adiantasse que o subscritor além de «intratável» era fulano que «tinha a mania de que sabia mais do que o capitão A*****». Para aquela oficialidade altamente qualificada, era inconcebível que o capitão A ***** não soubesse o que dizia e, portanto, a malfadada Browning tinha mesmo extractor amovível que o capitão K***** sonegara na transferência do material! A resposta deste capitão não passava de um disparate, de uma heresia, de uma espécie de desculpa de cabo quarteleiro apanhado em falta, a necessitar de acção adequada ao despautério!
O capitão G*****, aluno brilhante da Academia Militar e não menos brilhante oficial da Arma de Cavalaria e dos Comandos, que fora apanhado no meio daquela tempestade sem nada ter a ver com a questão, era velho conhecido e amigo do capitão K***** e não deixou de se irritar com aquela vozearia que nada adiantava, porquanto não passava de um conjunto de opiniões pessoais não fundamentadas, logo subjectivas, arbitrárias e gratuitas, de achismos, que nada valiam perante o que constava do Manual, ou seja, sem qualquer suporte na chamada Doutrina. E resolveu entrar na dança.

- Vossa Excelência, meu tenente-coronel, vai perdoar-me, mas não pude deixar de ouvir a conversa. E conhecendo eu o capitão K***** como conheço, não tenho a mais pequena dúvida de que se ele diz que a metralhadora pesada Browning 12,7 mm m/951 não tem extractor amovível é porque não tem. De resto, o capitão K***** foi durante três anos instrutor de armas pesadas dos Cursos de Sargentos Milicianos. De qualquer forma, se me é permitido o atrevimento, esta questão não carece de discussão, não é uma questão de opinião, porquanto basta consultar o Manual a que ele se refere. E o que lá está é lei, salvo melhor, mais douta e abalizada opinião.

Um silêncio incómodo inundou o amplo gabinete do Chefe da Repartição e ficou a pairar, por alguns instantes, deixando ouvir o zunir do ar condicionado.

- Bem… - disse, finalmente, o Chefe da Repartição um tanto ou quanto contrafeito - Ó M*****, faça-me o favor de dizer à ordenança para ir à biblioteca e trazer o manual da Browning.

E toda aquela oficialidade aguardou em silêncio expectante a chegada do tira-teimas.

E foi a desilusão. Preto no branco, sem qualquer margem para dúvida, não se falava naquele caderninho de capa parda de qualquer extractor, amovível ou outro que fosse; a maldita metralhadora do descontentamento daquela oficialidade, ainda há pouco pronta a lapidar, se necessário fosse, o atrevido capitão K***** e a sua heresia, não tinha extractor amovível!
E de fininho, sem mesmo pedirem a licença regulamentar ao Chefe da Repartição, foram saindo de orelha murcha e rabo entre as pernas, deixando o capitão G***** tratar do que ali o levara.

Afinal, o execrado e execrável capitão K***** sabia mesmo o que dizia.

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6 comentários:

Anónimo disse...

Pergunto eu:

Excelente "estória".
Agora pergunto eu, que não entendo nada de armas pesadas, então o extractor não faz parte da culatra, e se este estivesse danificado,fazia pelo menos um tiro visto que o cartucho ficava na câmara.Adiante.

Faz-me lembrar as "estórias" de capitão de artilharia --" do sexa passou na mexa" ou "não posso fazer a operação porque tenho os rádios avariados" resposta do QG "info Teixeira Pinto pacificou a Guiné sem rádios" ao que este responde "Mandem Teixeira Pinto".

AB
C.Martins

Carlos Vinhal disse...

Também se brincava com as estrias da G3, que, diziam, podíamos perder sem dar conta.
Carlos Vinhal

Valdemar Silva disse...

Sim, sim, Carlos Vinhal, um matarruano que apareceu na recruta do CSM, em Santarém, nunca tinha visto o mar e duvidámos que alguma vez tivesse tomado banho a sério, caiu nessa das estrias da G3, era seminarista ou teria sido.
Mas havia aquela muito famosa em transmissões de em vez 'diga se me ouve, escuto' diziam 'diga se me escuta, oubo'.

Abraço
Valdemar Queiroz

Luís Dias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luís Dias disse...

Belíssima "estória", aprazível e de acordo com o modo "desportivo" com que muitas vezes se lidava com as situações que nos surgiam, nos meios militares. Eu sei bem o que me custou, a luta diária, entre o Cumeré e Bissau, para conseguir entregar a tempo o material da companhia, de modo a conseguir partir com o Batalhão no barco de regresso à metrópole, em 28 de Março de 1974, quando o próprio comandante do meu BACAÇ dizia que era quase impossível, conseguir efectuar o espólio dentro do tempo que dispunha.

E, já agora, apenas para referir que a metralhadora Browning 12,7mm tomou em Portugal a designação de Metralhadora Pesada 12,7mmNATO (.50 Winchester) m/955 Browning M2 e não m/951 (a assinatura do acordo de defesa, com adesão à NATO é que se realizou em 1951).
A Browning M2HB, de origem EUA, é uma das mais notáveis armas de sempre, saída do engenho de John Browning, um dos mais notáveis inventores de armas de fogo. A metralhadora opera por meio de gases, com curto recuo do cano no momento do disparo. O travamento realiza-se através de uma lingueta que mantém a ligação da culatra ao cano até o projéctil se encontrar no seu interior. O percutor está alojado na cabeça da culatra e possuí um extractor de dupla calha e a ejeção não se realiza. O invólucro detonado é abandonado pelo fundo da caixa da culatra (semelhante à ML Madsen). O arrefecimento faz-se pelo ar que circula nos orifícios de ventilação da manga que envolve a câmara e pelo ar apoiado pela considerável massa do cano. Faz ainda parte do arrefecimento a substituição manual do cano ao fim de 300 tiros. A arma pesa 38,1Kg e tem uma cadência de tiro entre os 400 e os 600tpm.
Abraço
Luís Dias

13 de maio de 2023 às 12:40

Luís Dias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.