Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadicna) > CCAÇ 1439 (1965/67) > Missirá > O alf mil João Crisóstomo e o régulo do Cuor, Malan Soncó, alferes de 2ª linha.
1. Continuação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil at inf, CCAÇ 1439 (1965/67)
Dias 2, 3 e 4 de Dezembro de 1966
Realizou-se a Op FIFA no Chão Balanta que consistiu em emboscadas e batidas na região de Colicunda, Durante as emboscadas não houve contacto com o IN.
Foram capturados três elementos , sendo dois de menor idade e entregues ao posto Administrativo e o terceiro entregue ao BCAç 1888.
Dia 7 de Dezembro de 1966
Eu fiz parte desta operação, mas não me recordo de pormernores, excepto do momento em que Quebá Soncó foi ferido. Por isso transcrevo o que consta do relatório até esse momento, e falarei/lembrarei depois Quebá Soncó.
(...) A CCaç 1439 realizou a Op Harpa na região a N de Cherel, a fim de explorar uma informação dum prisioneiro que disse conhecer a casa de mato de Cubadjal.
O prisioneiro que serviu de guia não colaborou devidamente com a tropa, tendo conduzido por um itinerário muito vigiadoo pelo IN. Desta forma as NT foram detectadas a cerca de 1.000 metros do acampamento por uma a sentinela dupla que se encontrava colocada sobre uma árvore absolutamente camuflada. À aproximaçnao das NT a sentinela disparou várias rajadas de P. M. alertando desta forma todo o acampamento. Quando as NT, numa tentativa de aproximação rápida do referido acampamento o mesmo encontrava-se abandonado. Feita uma batida, foi encontrada uma tabanca a qual tinha sido da mesma forma abandonada." (...)
"Resultados obtidos: Destruiram-se 13 casas de mato no acampamento IN e 10 casas na tabanca satélite.
Foi destruida grande quantidade de arroz e capturados 4 pentes de munições cal 7.9.
Baixas estimadas em número não estimado."
E o relatório diz então que, "quando a sentinela disparava sober as NT ( portanto no início da aproximação) foi atingido numa perna o caçador auxiliar contratado Quebá Soncó, evacuado para o HMP".
(...) "Mais uma vez foi distinguido o 1º cabo nº 5939264, Dionísio Lopes Ferreira, tendo demostrado a sua competência e sangue frio, não abandonado o ferido mesmo debaixo de fogo IN, prestando uma assistência permanente e cuidadosa." (...)
Lembro bem esses momentos e a dedicação e sangue frio do cabo enfermeiro, como vem descrito.
O que discordo é do momento e situação em que isso aconteceu. Se isto tivesse sucedido durante a aproximação, não teria havido mais esse assalto ao campo inimigo, deixando o enfermeiro a cuidar de Quebá Soncó.
Estas “rajadas de metralhadora” e o ferimento de Quebá Soncó foram depois do assalto quando já regressávamos e de repente começou um forte tiroteio, que era a uma distância razoável e que durou algum tempo.
Não sei se Quebá Soncó era considerado “caçador auxiliar contratado”. Ele era o filho do régulo de Missirá, Malan Soncó, a quem na devida altura iria suceder como régulo de Missirá. O que sei é que ele estava sempre connosco, sempre com um grande sorriso contagiante e sempre voluntário inspirando com o seu exemplo o resto do pessoal da tabanca.
Acabada a Guiné, quando voltei, logo que fui a Lisboa fui visitá-lo ao Hospital Militar Principal. Ficou contente de me ver e mostrou vontade de conhecer Lisboa antes de partir para a Alemanha onde ia para lhe porem uma perna artificial. E, mesmo na condição em que ele estava, de muletas – ele insistia que não era problema e se podia movimentar – eu peguei nele e de taxi andei com ele dum lado para outro e mostrei-lhe Lisboa tanto quanto pude fazer. Ele não o esqueceu e depois de voltar à Guiné escreveu-me uma carta lembrando isso, carta essa que faz parte do mencionado Poste de 23 /01/21 (**).
Dia 17 de Dezembro de 1966
No dia 17 de Dezembro de 1966 realizou-se a Op Hera, no Chão Balanta.
Noto que esta operação é quase uma repeticão de uma que teve lugar em 10 de
Junho, operação GOLO 1. A região era realmente muito perigosa, como tristemente
e à custa de muitas mortes nas NT, se
viria a confirmar depois da CCaç 1439 ter
voltado, acabado o seu tempo de comissão na Guiné. E por isso a frequente presença da CCaç 1439 nesta região,
durante a nossa “comissão”.
Para que conste transcrevo o
relatório:
(...) "No dia 17 de Dezembro de 1966 realizou-se a Op Hera, no
Chão Balanta, que consistiu em montagem de emboscadas a N de Chubi e Sée seguida de batida às tabancas de Bissá,
Funcor, Blassé, Sée e Chubi.
Durante esta operação não foram detectados quaisquer elementos supeitos. Verificou-se que a população manifesta desejos de melhor colaborar com a tropa, dando a impressão de fadiga de descontentamento perante as atitudes do IN que visita aa tabancas, exigiundo tudo inclusive bufalos. As NT através de palestras e pequenos serviços de enfermagem continuous a exercer influência psicológica no seio da população.
Dia 23 de Dezembro de 1966 : Ataque a Missirá (vd. próximo poste, Parte XIX)
Carta do (António Eduardo) Quebá Soncó, filho do régulo de Missirá, enviada ao João Crisóstomo, Datada de Hamburgo, 6 de agosto de 1967. Reprodução de alguns excertos:
E depois acrescenta: "Ainda conto ficar na Alemanha durante pelo menos mais um mês."
Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
(´*) Último poste da série > 2 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22680: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XIV: um mês de novembro de 1966 relativamente tranquilo: no decurso da Op Hino, foi abatido o antigo pescador de Enxalé de nome Jorge, de etnia papel, que servira de guia ao IN aquando do ataque a Porto Gole
(**) Vd. poste de 23 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21797: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (83): Pergunta ao Beja Santos: afinal quem era o filho mais novo do régulo de Missirá? E quem foi o seu sucessor? (João Crisóstomo, Nova Iorque)
9 comentários:
João, Merry Christmas!...
Estou no Porto (ou melhor, Madalena, V. N. Gaia), e tenho boas notícias, vou ser operado em janeiro ou por aí (se os exames estiverem todos bem...). Foi a melhor prenda de Natal que recebi, logo no dia 22 (em que tive consulta com o meu ortopedista)...
E tu, antes de ires a 28, para o hospital, lê aqui mais um poste das tuas memórias... Espero que gostes, a série com as tuas memórias já estava parada há um mês e três semanas.
Foi bom teres reproduzido a carta do Quebá Soncó, datada de 6/8/1967, temos poucas referências ao Hospital de Hamburgo, na Alemanha então Ocidental... Oxalá apareçam mais documentos deste tipo. Nem sabemos quantos dos nossos camaradas passaram por lá durante a guerra...
Beijinhos para a Vilma, grande abraço fraterno para ti, meu e da Alice. Vai correr tudo bem.
A Revista ELO, da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armas, ecocou, na sua edição de julho de 2013, os 50 anos do programa de acolhimento, tratamento e reabilitação dos deficientes portugueses da guerra do ultramar / guerra colonial, no Hospital Militar de Hamburgo. Ver Destaque > Memória Viva, página 9.
http://www.adfa-portugal.com/jornal_elo/2013/07/Elo_jul_2013.pdf
Excerto da revista ELO, da ADFA, julho de 2013, pág. 9, com a devida vénia:
Destaque > EVOCAÇÃO DOS 50 ANOS DO INÍCIO DA REABILITAÇÃO DOS DEFICIENTES DA GUERRA COLONIAL NO HOSPITAL MILITAR DE HAMBURGO
http://www.adfa-portugal.com/jornal_elo/2013/07/Elo_jul_2013.pdf
Pequeno historial
Em 1963 uma delegação alemã visitou Portugal. Integrava essa mesma delegação o General médico, Diretor do Serviço de Saúde Militar da República Federal da Alemanha, que foi convidado pela Cruz Vermelha Portuguesa, através do então Movimento Nacional Feminino, a visitar o Hospital Militar Principal, onde já se encontravam um número significativo de deficientes vindos dos conflitos das ex-colónias portuguesas de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.
Na sua maioria, esses mutilados eram vítimas de rebentamentos de minas. Esta visita deu origem à assinatura de um protocolo em que oss médicos militares alemães aplicariam a sua ampla experiência adquirida com mutilados das primeira e segunda guerras mundiais, no tratamento dos mutilados portugueses. O referido protocolo também estava relacionado com a presença da Força Aérea Alemã na base de Beja e dependências em Alverca.
Em 1964, os primeiros deficientes de guerra foram internados no Serviço de Cirurgia do Hospital Militar de Hamburgo (nessa data chamava-se Standortlazarett, depois Bundeswehrlazarett) e eram levados diariamente para tratamentos para o hospital de acidentados em Hamburgo – Hospital de Bergedorf.
Em 1966, foi colocado no Hospital Militar de Hamburgo o então Capitão-de-Fragata, médico, Dr. Franz Traut, especialista em ortopedia de guerra, que criou o Serviço de Ortopedia e também foi o responsável pela instalação de uma casa ortopédica dentro do Hospital Militar.
Para complementar o processo, disponibilizou duas enfermarias, uma com seis camas e outra com quatro, destinadas aos deficientes das Forças Armadas portugueses. Criou também o Serviço de Fisiatria e chamou a fisioterapeuta, Srª. Frauke Maltusch, docente no Hospital Universitário de Eppendorf, em Hamburgo.
Os mutilados eram transportados de e para Portugal nos aviões militares de transporte alemães – a princípio Noratlas, depois Transal, sempre acompanhados por um oficial médico ou sargento enfermeiro portugueses. Os custos inerentes a todo o processo, eram suportados pelo estado alemão.
Em 1975 e em virtude dos conflitos coloniais terem terminado, o número de camas foi reduzido para seis.
Em 1986, o então Capitão de Mar-e-Guerra, médico, Dr. Franz Traut passou à situação de reforma (os médicos alemães eram obrigados a passar à reforma aos 60 anos) e foi substituído pelo Coronel médico, Dr. Joachim Niehaus.
Este acordo terminou em 1991 e os últimos deficientes militares regressaram a Portugal, em setembro de 1991. A partir desta data, apenas aqueles que necessitavam de tratamentos
que não encontravam resposta em Portugal, eram autorizados a irem para o Hospital Militar de Hamburgo.
Atualmente, a chefia do Serviço de Ortopedia e Cirurgia de Acidentados é exercida pelo Coronel Médico, Dr. Bernhard Klein, o qual já efetuou diversas deslocações a Portugal, tendo visitado o então Hospital da Força Aérea e a ADFA.
O Dr. Franz Traut, a fisioterapeuta Frauke Maltusch e outros elementos ligados aos Deficientes das Forças Armadas (DFA), em 1981, foram condecorados pelo então Chefe do Estado-Maior do Exército, General Garcia dos Santos, em cerimónia pública no Estado-Maior do Exército.
Em 1977, o General Ramalho Eanes, na qualidade de Presidente da República, visitou os Deficientes da Forças Armadas no Hospital Militar de Hamburgo.
Caros João Crisóstomo e Luís Graça,
Um excelente artigo muito bem complementado. Isto é história pura e simples.
Mas o que me chamou mesmo a atenção foi o acompanhamento do João a um "estropiado" da guerra, o tal grande coração que todos nós nos habituamos a conhecer e julgo que a respeitar.
Abraço,
José Câmara
Pelas datas vê -se que o tratamento e a reabilitação do Quebá Soncó terá levado cerca de 9 meses (dez 66 / set 67); ferido em combate em 7 de dezembro de 1966, helievacuado para o HM 241, em Bissau, e depois transferido para o Hospital Militar Principal, na Estrela, em Lisboa, não sabemos quando é que partiu para a Alemanha, mas deve ter sido já no 2º trimestre de 1967... Diz ele na carta,de 6/8/1967:"Logo que cheguei à Alemanha, dali por poucos dias, deram logo a perna [prótese] e agora ando a treinar a andar. Ainda conto ficar na Alemanha durante pelo menos mais um mês. Ainda me custa um bocadinho mas, depois de estar mais habituado,já não me vai custar tanto. No princípio custava-me muito mais porque a perna [prótese] estava um pouco grande, mas depois tiraram-lhe 2 centímetros e agora isto vai bem".
E depois acrescenta: "Ainda conto ficar na Alemanha durante pelo menos mais um mês." Deve ter regressado a Lisboa em setembro de 1967. Esteve no Depósito Geral de Adidos à espera de transporte para Bissau aonde chegou a 3 de outubro de 1967, conforme aerograma datado de Bambadinca, 18 desse mês e ano.
Que rumo seguiu,entretanto, a sua vida ? O que é que um desgraçado fazia depois na Guiné com uma perna artificial ? Será que teve direito a uma pensão de invalidez ou deficiência? E continou a ser-lhe paga depois da independência ? Não o sabemos...
Infelizmente o sítio (atual) do Hospital Militar de Hamburgo é só em alemão...
https://hamburg.bwkrankenhaus.de/startseite.html
Reparo agora que na carta do António Eduardo Quebá Soncó, filho do régulo de Missirá, enviada ao João Crisóstomo, datada de Lisboa, em 23 (?) de junho de 1967, ele despede-se do amigo e diz que vai partir nesse dia para Hamburgo... Incluisve mnda-lhe a direção... O que quer dizer que esteve lá pouco tempo, talvez dois meses e picos, devendo ter regresado em meados de setembro...
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2021/01/guine-6174-p21797-o-nosso-blogue-como.html
Caro Luis Graça e João Crisóstomo:
Sempre que tomo conhecimento de gestos de solidariedade como o aqui relatado sinto-me tocado no meu âmago e fico admirador dos respectivos protagonistas. O João Crisóstomo, combatente que já admirava, tornou-se para mim uma pessoa ainda mais admirável, pelo seu gesto de solidariedade para com o nosso camarada Queba Soncó.
Um grande abraço
carvalho de Mampatá.
meus caros Carvalho de Mampatá e José Camara,
Obrigado pelos vossos comentários , certamente generosos . Não creio ter feito nada que algum outro nas mesmas situações nao fizesse. Eu acredito que mais do que pela indole e temperamento, nós somos impelidos a agir quando as circunstancias ( que na maioria dos casos são acidentais e não dependem de ninguém em particular) se impõem. Como poderia eu deixar de ir visitar o Queba Soncó no hospital? Ele na Guiné era um amigo mesmo; e a bala que o atingiu mesmo a meu lado podia ter-me atingido a mim. E quando ele me disse ( mesmo com as muletas debaixo dos braços) que gostava de conhecer Lisboa e que era capaz de me acompanhar num taxi ou de qualquer maneira que eu quisesse , como podia eu ficar indiferente e não lhe proporcionar essa pequena satisfação? Só tenho pena e doi-me a consciência ainda hoje de não o ter acompanhado mais; na altura, preocupado em me derrenrascar para ir para a Inglaterra não fiz mais; mas tenho uma pena imensa de não ter tido o cuidado de o acompanhar com a minha correspondência depois de ele ter voltado à guiné. Como me doi o não saber ainda hoje do destino dum outro nativo, meu guarda-costas, que estava sempre pronto a dar a vida por mim se fosse preciso. Ele ficou por lá... Se Deus ( seja Alah, ou Geová, ou o Deus dos cristãos) me ouve, de coração lhe peço que premeie como Ele saberá fazer, a valentia e amizade destes nossos queridos camaradas portugueses/guineenses.
Joao Crisóstomo
Enviar um comentário