Guiné > Aerograma dos Serviços Postais Militares (enviado à família pelo A. Marques Lopes, no Natal de 1968, quando estava na CCAÇ 3, em Barro )> Quadra Natalícia (pormenor) > O Soldadinho de Fogo, peça em dois actos, remake do Soldadinho de Chumbo, de Hans Christian Andersen, nunca chegou a ser acabada pelo seu autor, o Mário Beja Santos...nem muito menos posto em cena. Não havia brinquedos nem meninos cristãos em Missirá, nem o palco era o mais adequado: o teatro era outro, o teatro de operações, o palco era o da guerra (de terror e de contra-terror ...). (LG)
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Texto enviado pelo Beja Santos, com data de 18 de Outubro último. Continuação da publicação das suas memórias, como alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).
O Soldadinho de Fogo
por Beja Santos
Há dias, num enterro de um familiar muito querido, conversando com o meu sobrinho Rodolfo, falei-lhe do projecto da Operação Macaréu à Vista. Em dado momento, ele disse-me:
-Lembro-me muito bem que o tio me enviou o esboço da sua peça de teatro O Soldadinho de Fogo. Se não se recorda do que me enviou, faço-lhe chegar uma cópia. O tio fazia teatro infantil e prometeu-me que me mandava da Guiné uma peça original. Gostei muito da sua ideia. Acho que tinha cabimento fazer-lhe uma referência, pois eu recebi alguns meses depois de o tio lá estar a sua carta.
Iluminou-se o espírito. Quando comecei a trabalhar nos serviços mecanográficos da Previdência Social, conheci o Fernando Antão que colaborava muito com o Teatro do Gerifalto. O Antão era o grande mobilizador das nossas festas de Natal e logo em 1964 fiz de S. José, desempenho que bisei nos dois anos seguintes. Entrava em cena de burel e barbas postiças, e dizia coisas como esta:
-Maria, tão calada na noite fechada, será este o caminho para Belém?.
O grupo de teatro amador foi tão bem sucedido que começámos a colaborar em festas de solidariedade para angariar fundos. Foi nessas deambulações que me ocorreu um remake à volta do Soldadinho de Chumbo, de Hans Christian Andersen. A ida para a Guiné despoletou o meu alter ego para um final apropriado às circunstâncias. Para quem vivia enfronhado com travessias do Geba para ir buscar cebolas, arroz e chouriço, desesperava com falta de armamento e munições, tinha que levar a Binta ao médico para lhe prescrever anovulatórios, tinha a tropa arrasada por patrulhamentos diários em Mato de Cão e vivia as inclemências da época das chuvas, a prenda para o sobrinho Rodolfo justifica-se plenamente ser aqui evocada. Vamos ao texto enviado:
Prólogo
A mãe sobe ao sótão onde estão os brinquedos. o seu olhar vagueia pelo amontoado da traquitana e a sua expressão ganha determinação, quanto às escolhas dos brinquedos já sem préstimo que vai oferecer aos meninos do orfanato. E numa cesta vai metendo um peão, bonecas de trapos, camiões e bolas. Ouve-se a voz do pai que surge na cena com ar de atarefado a dizer que é necessário partir com urgência. O estado de espírito da mãe reflecte-se na resposta, pedindo-lhe para partilhar a alegria que reside naquele sótão cheio de reminiscências da infância. O pai cede, brinca com uma espada de folha, dispõe no chão os restos de um exército de soldadinhos de chumbo. A mãe critica-lhe aquela euforia bélica. Acabam por abandonar o sótão, já com uma comunicação normalizada de adultos, o pai vai para os negócios, a mãe para as compras. Ao descer as escadas, a mãe observa com ar cismado:
-Estes brinquedos dos meus filhos escondem um segredo, mas qual será?
A mãe sai enquanto entram em cena o Roberto, o trangalhadanças e a Columbina às gargalhadas. Riem-se das conversas dos humanos, incapazes de escalpelizar o sonho e de apreender a força do lúdico. Ouve-se um poema alegórico à infância, declamado em off:
Infância, risos a brincar
horas sem minutos
dias sem tempo, sem esperar
a vida do meu sótão cheio de vultos
Lembro-me com os olhos quedos
pela saudade como me chamas, infância!
Saudades dos meus brinquedos
nesses tempos sem importância
Infância, as cordas de um baloiço
nos gritos das crianças que ainda oiço
Oh, aquela boneca de trapos, linda,
aquela boneca que não esqueço!
E brincava cheio de alegria
neste sótão, pelo chão
E a minha boneca de trapos, ria...
Ai, como ainda pulsas, coração.
Na minha boneca de trapos, há horas sem minutos,
há infância que ainda sinto
nas noites de Natal, rodeado de adultos...
Finjo escutar, finjo estar presente, minto.
Boneca de trapos, onde estás?
Ai boneca que imagino nos meus dedos cheio de nós
Ai boneca, vou ficar velhinho, vou ficar sem voz...
Segredos da minha infância, não te vás.
1º Acto
Roberto escarnece do soldadinho que, tal como Columbina, vai ser oferecido aos meninos do orfanato. Columbina desespera:
-Vão voltar a atirar-me ao ar horas e horas seguidas, até eu partir-me.- O soldado brada:
-Não entendo a vossa lógica onde só está certo o que é compreendido, o resto está tudo errado. Quero ver o mundo com outra abertura. Mas hoje temos que juntar esforços para conhecer o segredo de Natal. A mãe dizia há pouco que quer conhecer a verdade dos brinquedos. Pois os brinquedos querem saber a verdade dos homens.
Segue-se uma rixa, os brinquedos têm os ânimos incendiados. Já não se toma partido pelos brinquedos que vão ou ficam. Acaloradamente, os brinquedos querem ver do sótão a festa de Natal desses humanos de quem também troçam. O Roberto, o bufão abandonado, espicaça-os e subestima-os:
-Sabem porque é que nunca me deitarão fora, querem saber porquê? Eu sou o único de todos nós que não pode ter uma cara triste, quando eles estão tristes precisam do meu rosto alegre e brincalhão.
Entre zangas, arrufos e cumplicidades, o bufão sai vitorioso na sua maldade ao pedir a pena de morte para o soldadinho de chumbo por querer quebrar a fantasia, a razão de ser universal de todo o brinquedo. O bufão grita para o Mágico:
-Não há crime mais grave do que um boneco querer ser um homem, nós somos objectos de ilusão, não devemos querer imitar os homens.
O Mágico está indeciso quanto à sentença e escolhe Veríssimo, o Pantalonas, o extravagante palhaço que rufa os tambores, para dizer sim ou não ao castigo que de ser atribuído ao soldadinho. Pantalonas grita que não há castigo. Estala o clímax do desespero. Com voz solene, o Mágico considera que foi violado o art. 1º do estatuto da tragicomédia. E é assim que o soldadinho é condenado à perda temporária do uso da razão.
Ouvem-se os gemidos da Boneca de Louça, da Columbina, as gargalhadas inocentes do Pantalonas e termina o 1º acto com o soldadinho lançando o seu desassossego sobre a assistência:
-Quis e quero conhecer a verdade dos homens feita numa noite de Natal. Eu vou esperar até saber. Eu estou cheio de esperança!
2º Acto
Os brinquedos desceram à sala de brincar das crianças, no sótão só se vêem a Boneca de Louça e o soldadinho. O boneco, mesmo castigado, renova o seu propósito de conhecer o sonho dos homens quando esperam o Natal e enquanto se divertem com os brinquedos. Vendo o soldadinho tão desgostoso, a Boneca de Louça desafia-o para celebrarem a seu modo a festa que não partilharão com os homens. Então, o que é que irão fazer?
-Está ali uma caixa com figuras de barro. Todos os anos, por esta altura, os meninos costumam colocá-las dentro de uma caixa com uma estrela, põem musgo no chão, ouve-se música celestial. mas este ano a avó comprou figuras novas, estas de certeza que não voltarão a servir. Pois, brinquemos com elas.
A Boneca de Louça e o soldadinho trocam presentes. Diz o soldadinho:
-Toma esta estrela, protege-te com ela, deu-ma o meu pai pouco antes de morrer numa batalha terrível. Precisamos sempre de uma boa estrela na nossa vida.
Regressa Veríssimo, o Pantalonas. Dança para o soldadinho e para a Boneca de Louça. Entretanto, por ter findado o recreio dos meninos, foram regressando os outros bonecos ao sótão. O soldadinho e a Boneca de Louça escondem-se atrás de uma cadeira, no centro da boca de cena, a observar o movimento ruidoso dos outros bonecos à sua volta. Uma Luz intensa ilumina-os, fixando depois sobre o presépio. Atraído pelas exclamações do soldadinho que está maravilhado, os outros brinquedos aproximam-se, pé ante pé, circundam o presépio. O soldadinho exclama emocionado:
-Viram? Valeu a pena esperar, valeu a pena ser condenado por esperar. Vale a pena ter dúvidas, vale a pena sonhar. Eu sou um soldado que não serve para a guerra, pois quero ser como os homens e quero sonhar com a paz que vem anunciada pela estrela que vem dos céus.
A peça termina com um regozijo generalizado entre os brinquedos que promovem uma grande festa de Natal. A música deve expressar a turbulência e a vivacidade desejadas a esta cena culminante.
Eu esqueci completamente este Soldadinho de Fogo. Aquela época das chuvas está a esmagar-me, mesmo que os meus sonhos não esmoreçam como não esmoreceu o meu soldadinho. A palavra flagelação era arbitrariamente usada na Guiné para uma grande, média ou pequena tormenta de fogo, com ou sem canhão sem recuo, com muitas ou poucas costureirinhas, com muito aranzel das morteiradas, igualmente arbitrário era o número de mortos e feridos.
Escusam de perguntar porquê, tudo era flagelação desde que houvesse fogo sobre os nossos quartéis, com a duração de horas ou minutos. Ora, naquele dia 26, jantámos cedo fartos dos bifes de javali que Cibo Indjai tinha oferecido à messe. Era noite escura, seriam aí umas 8 horas, eu conversava com o Teixeira que me descrevia a sua vida enquanto emigrante em Darmstadt e em Marselha. Aliás, foi numas férias em que veio de França até Felgueiras que a tropa o apanhou pelo pescoço.
Lembro-me que estava a beber um leite com chocolate para fazer esquecer o gosto daquele javali quando caiu uma morteirada que levou o plinto em plena parada, seguindo-se o fragor das chapas do depósito de géneros despedaçadas por outra morteirada. É exactamente quando avanço para o abrigo do morteiro 81 que o Teixeira se atira para entro do bidão pejado dos cacos das garrafas de quem bebia na messe ou por ali passava. Adivinha-se o grotesco de carregar ao ombro aquele latagão com os pés em sangue e levá-lo para a enfermaria. Súbito, o fogo esmoreceu e não tinha começado há mais de um minuto. Não fossem os vestígios da intrusão própria para aterrorizar e teríamos inventado a flagelação. Ainda fogueámos durante alguns minutos mas a contenda parou por aqui. Trocámos mensagens com Bambadinca e o episódio fica para a história: o Teixeira foi o último ferido ligeiro daquele batalhão [o BCAÇ 1904] que amanhã de manhã parte para Brá [, a noroeste de Bissau].
A 27, na messe de oficiais, [em Bambadinca,] já na companhia do BCAÇ 2852 (2), oiço o discurso da tomada de posse de Marcelo Caetano e à noite escrevo para Lisboa:
-Mensagem bem elaborada, capaz de agradar aos nostálgicos do salazarismo e daqueles que confiam em promessas de abertura. É impossível encontrar uma saída política para esta guerra no que ele disse. Caetano e todos nós vamos sofrer as consequências.
O regresso a Missirá é quase caótico, tal a quantidade de chuva e lama nas bolanhas de Finete. Continuo aos tombos devido à acção do Fenergan. O Joaquim da Conceição partiu e o novo condutor é o Setúbal. É um pouco arrelampado, gosta de buzinar na noite escura na mata cerrada, disse-me a gargalhar que é para afastar os macacos. Mas é zeloso, nas suas mãos teremos viaturas menos avariadas. Na véspera, preparava-me eu para dormir e ele bateu-me à porta com estrépito exibindo uma requisição de massa consistente, uma nova ventoinha e óleos para os travões.
A escola primária dá frutos, o cadernos das cópias são a prova disso, as esferográficas já não desaparecem misteriosamente e Albino Amadu Baldé, o sargento de milícias envolveu-se na escolarização dos seus soldados. Oiço Bach mas também Grieg, Schuman, Scarlatti e Wagner. Depois de amanhã, acordei com os furriéis, sairemos de madrugada para patrulhar Paté Gide [, a noroeste de Missirá, a seguir a Sancorlá].
Desde a flagelação de 6 de Setembro [de 1968] que confiro grande importância ao conhecimento dos acessos e trilhos usados pelos homens de Madina-Belel.
Irei ter a última discussão acalorada com Saiegh. É já madrugada quando ele me bate à porta da morança para dizer que não há condições para patrulhar Paté Gide pois há grandes lutas entre os caçadores nativos e os milícias, acrescendo que pode haver um contacto muito feroz com o inimigo. Procuro explicar a Saiegh que a imaginação deve ser controlada, não é por haver tensões que a tropa está menos apta para patrulhar. Iremos mesmo a Paté Gide.
De pé, cuspindo fogo pelos olhos, Saiegh diz sentir-se subalternizado por não ser branco. Varado pelo argumento mais inesperado e mais injusto, peço ao Saiegh para se conter e recordar uma admiração que por ele nutro e que é pública. Ele irá para férias em breve, aproveitará a sua estadia em Bissau para encaminhar o seu futuro para a Companhia de Comandos Africana que está em preparação.
Fomos de facto até Paté Gide, nada a assinalar. Vou ainda demorar um mês para ficar com um quadro composto da situação. No Cuor, o bigrupo controla a população civil junto a Quebá Jilã e na zona do rio passa, em Mansoná. Com regularidade, militares do PAIGC e as suas milícias vão atravessar a estrada entre Gambana e Canturé para cambar o Geba seja nos Nhabijões seja em Santa Helena e Mero. Como não temos armas para dissuadir a instalação permanente daquela presença, ir até lá é probabilístico, esperá-los, rondá-los, atemorizá-los é talvez a única resposta possível.
Irei até Quebá Jilã donde trarei provas da presença de população que vive na órbita do PAIGC. E em Chicri e na sua vizinhança irei agora dar-vos notícias de algumas refregas. Dentro de dias, volto à estrada Bambadinca/Xime depois de ter conversado com o novo Major de operações. Vamos até ao Burontoni. Não guardo saudades da viagem. Explico porquê.
________
Nota de L.G.:
(1) Vd. último desta série > 31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1229: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (18): Não fujam, nós não somos bandidos!
(2) Vd. posts de:
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )
4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)
(...) "O Batalhão anterior tinha sido o BCAÇ 1904 (1966/68): foi no tempo deste batalhão que explodiu, por acidente, o depósito de material de guerra" (...)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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