sábado, 11 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): "Cabrito pé de rocha, manga di sabe" (Vitor Junqueira)

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Montemor-o-Novo > Ameira > Herdade da Ameira > Café do Monte > 14 de Outubro de 2006 > Confraternização de camaradas da Guiné que se acabaram de se conhecer: ao fundo, o Vitor Junqueira, de óculos escuros, mais a filha, ladeados por Virgínio Briote e esposa. De costas, da esquerda para a direita: Victor David, Fernando Franco, António Baia e Paulo Santiago.

Foto: © Manuel Lema Santos (2006). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do Vitor Junqueira:

Luís,

O Blog tem estado muito pesado. A guerra é assim, morteiradas, cadáveres, destruição, sofrimento ...

O episódio que relato a seguir, é autêntico e poderá ajudar a descomprimir um pouco a enorme tensão que posts recentes certamente desencadearam na mente de alguns camaradas. Se achares que é publicável. E até pode acontecer que outros adiram à ideia.

Saudações cordiais,

Vitor Junqueira


2. Resposta do editor do blogue:

Vitor: É uma obra-prima!... Uma maravilha!... Vem mesmo a calhar, vou já publicá-la esta noite! Eu já desconfiava que tu tinhas muito talento para a este tipo de escrita… (que não é para todos, o saber contar uma bela estória!)…

Este é daqueles posts que vão figurar numa futura antologia do nosso blogue… Dou-te mais do que as cinco estrelas: dou-te o firmamento todo… Obrigado, Vitor, estava mesmo a precisar de ler uma short story assim, antes de dar uma aula sobre “métodos qualitativos de investigação social e em saúde” aos meus alunos do mestrado de saúde pública…

Fico com água na boca, à espera de mais.... Enfim, da receita do cabrito pé de rocha farás mais uma estória, para deleite da nossa tertúlia… E decerto terás outras, tão ou mais divertidas do que esta, relacionadas com os nossos encontros e desencontros com aqueles povos simples, hospitaleiros e amigos…

Arranja lá um título para a tua série… Como já viste, há várias: estórias de Dulombi (Rui Felício), estórias cabralianas (Jorge Cabral)… O Rui e o Jorge são dois dos nossos melhores contistas… Mas há outros, com talento... Fico à espera. Se não disseres nada, escolho um título apropriado, desde que bata certo com a tua personalidade, ou pelo menos com a imagem que eu tenho de ti, como pessoa que está bem com a vida, positiva, frontal, solidária...


3. Cabrito pé de rocha,

por Vitor Junqueira (1)


Quando a minha Companhia [, a CCAÇ 2753,] aterrou em Bissau, após uns dez dias de viagem no velho N/M TT (era mais ou menos esta a sigla para navio motor transporte de tropas) Carvalho Araújo (*), fomos acolhidos no cais do Pidjiguiti por malta que eu não conhecia de lado nenhum, que soltava uns pius esquisitos cuja razão de ser não entendia. Soube ali que eram os choferes, velhinhos, das camionetas que nos haveriam de conduzir ao destino. As viaturas, alinhadas em coluna ao longo do cais, estavam a ser carregadas enquanto as entidades superiores tratavam da papelada. Até ao desembaraço da Companhia, e enquanto carrega, não carrega, os pius acossavam-nos de todos os lados. Comecei a ficar enervado e com apetite!

Naquela zona portuária, que se poderia chamar marginal da Amura, existiam umas tabernas semelhantes às que poderíamos encontrar em qualquer lugar do Portugal de então: um garrafão de cinco litros ou um ramo de louro pendurado na frontaria, e uma tabuleta com os dizeres, casa de pasto, vinhos e petiscos.

Seriam para aí umas quatro da tarde quando entrei numa delas. Pela primeira vez na vida dirigi-me a alguém de outra ... etnia. A situação era nova para mim e um pouco estranha. Meio tonhó, perguntei num português escorreito e pausado a uma negra, com estatura de bisonte, que se encontrava sentada num mocho do lado de dentro do balcão:
– Boa tarde,  minha senhora, tem alguma coisa de que possa fazer uma sandes?
– Tem. Tem sim. Olha, tem cabrito pé de rocha, tem ...
– Cabrito?
– Sim, cabrito, é muito bom. Ainda está quente.

Virou-me as costas e dirigiu-se para um canto da baiúca de onde regressou com um pequeno tacho de barro na mão contendo uns pedacitos de carne guisada, com bom aspecto e um cheiro capaz de fazer um morto babar-se. Perguntou-me o que queria beber e falou-me em coisas estranhas, Fanta, Coca-qualquer-coisa ... Pedi uma laranjada.

Ali fiquei encostado ao balcão a vê-la rasgar a carcaça e nela acomodar o conduto. Ia magicando com os meus botões o quanto as aparência iludem. Aquela mulher enorme era um monstro de simpatia, nos gestos, no brilho do olhar, na doçura da voz. Acho que começou ali a minha paixão pela Guiné. Serviu-me com delicadeza numa pequena mesa de pinho, carunchosa e coxa, que só se mantinha de pé porque estava encostada à parede.

Comi. E que bem me soube. Ao fim de tantos dias a comer a lambeta de bordo, que nem era má, mas à qual o balanço do navio retirava todo o requinte, aquele petisco caiu-me que nem ginjas. Paguei em escudos, recebi o troco em pesos e saí animado com a perspectiva das vindouras patuscadas de cabrito pé de rocha que já se perfilavam no meu horizonte de expedicionário. Fosse parar aonde quer que fosse, não faltaria caça daquela, pois se até na cidade se encontrava ao dispor ... Aquele cabrito era mesmo delicioso. E o apelido pé de rocha? Devia estar relacionado com o habitat do animal. Altas montanhas com os picos cobertos de neve, pensei eu. O Kilimanjaro devia ficar ali perto, provavelmente.

Juntei-me ao resto da guerra, a quem dei conta das minhas descobertas e lá vou com a tropa toda, sob um altíssimo astral, direito ao AGRBIS (eu sabia lá o que isso era!). À nossa espera estava um hangar, sem portas, sem janelas, sem luz e com milhões de mosquitos, gordos e ferozes. Nos oito dias seguintes dormimos em cima dos ferros das camas porque colchões também não havia para distribuir. E quanto à bianda, ração de combate ao almoço, ração de combate ao jantar. Sobremesa, sempre à base de mancarra que umas garotas apareceram por ali a vender dentro de uns penicos que transportavam à cabeça.

O problema maior era a água. Na altura grassava uma epidemia de cólera no território pelo que nos aconselharam a beber só água engarrafada. Resultado, ao terceiro dia estava não só falido, como via as dívidas a acumularem-se. É que a única água engarrafada disponível que havia era a Perrier, usada no tratamento do whisky, que eu comprava a oitenta mil réis cada garrafa, no bar dos oficiais do Depósito de Adidos que ficava ao lado. Escusado será dizer que, por essa razão ou outra qualquer, houve caganeiras monumentais.

E eis que recebo guia de marcha para ir comandar os destacamentos de Safim e João Landim.

Força instalada, faço o reconhecimento da zona e concluo que no que respeita a infra-estruturas de apoio como tasca, restaurante, animação (batuque e bajudas), posso considerar-me um homem de sorte. Tenho ao dispor um fundo de maneio e o seu parente, o inevitável saco azul. Agora sim, tinha qualidade de vida. Permitíamo-nos comer quase à la carte. Além disso, por ali não se ouviam tiros. Perfeito ...

É neste contexto que, estando um dia a bater uma galharda sesta, sou acordado subitamente por um militar que me vem perguntar se pode ir lá fora dar um tiro com a G3 ???
– A quem? – perguntei.
– Não sei bem de que se trata –  diz ele –. É um gajo da população que está ali à porta de armas a pedir que vá alguém à tabanca abater uma peça de caça.
– Alto e pára o baile –  disse eu, meio desconfiado. – Quem lá vai sou eu.

Visto os calções num ápice, enfio os chinelos, pego na canhota que tinha dependurada à cabeceira da cama e, todo nervoso, antecipando um presunto de gazela para o tacho, dirijo-me ao cavalo de frisa que servia de porta de armas.

Lá estava o homem. Pareceu-me inofensivo. Pediu-me que o seguisse, enquanto num crioulo que eu já começava a entender, me explicava que se tratava de um cabrito pé de rocha que andava por ali a vaguear. Nisto aponta para o cocuruto de uma árvore e diz:
– Pessoal, olha ali. Por favor mata ele ...

Fiz um único disparo. Aos meus pés caiu um bruto babuíno (macaco-cão) que devia pesar para aí uns trinta quilos. Dispensei a minha quota-parte da caçada! (**)




Guiné > Zona Leste > Sector L2 > Geba > CART 1690 > Destacamento de Banjara > 1968 > Quando a fome é negra, até "cabrito pé de rocha" se come... Só que em Bissau o periquito Vitor Junqueira estava longe de imaginar que o dito cabrito era... macaco-cão!

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados.



República da Guiné-Bissau > Macacos Africanos > Selo de 1 peso > 1983 > Babuíno-hamadrias
(Papio hamadryas)

Fonte: © Franclkim Ferreira (2001-2006) . Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto > Franclim F. Ferreira > Filatelia - Mamalia (5) (com a devida vénia...)

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Notas do autor

(*) Esta foi a última viagem do Carvalho Araújo. De Lisboa para Bissau, navegou notavelmente adornado a estibordo. No regresso, ouvi dizer que chegou pelo seu pé a Cabo Verde, tendo sido depois rebocado até ao seu destino final.


(**) Voltei a comer cabrito pé de rocha, muitos meses depois e, desconhecendo a ementa, numa acção de Psico. Outra delícia! Um dia destes mando a receita.

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Nota de L.G.:

(1) O Vitor Junqueira foi alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). Vive hoje em Pombal, onde é médico.

Vd. posts de:

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoreana CCAÇ 2753 pela região de Farim (Vitor Junqueira)

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Vitor Junqueira: Irmãos de sangue, suor e lágrimas (Vitor Junqueira)

7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira

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