Guiné > Região do Cacheu > Guidaje > Cufeu > Maio de 1973 > A caminho de Guidaje, os comandos da 38ª CCmds deparam-se com um espectáculo macabro... Cadávares de combatentes das NT e do IN abandonados, na sequência da batalha de Guidaje... Nesta imagem, brutal embora de má qualiddade, vê-se o cadáver de um elemento das NT, africano NT (provavelmente da CCAÇ 19), com a cabeça apoiada num tronco de árvore...O braço, assinalado com um círculo a amarelo, é o do 1º Cabo Cmd Mendes, à procura de documentos para identificar o cadáver.
Foto: © Amilcar Mendes (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Há tempos o nosso camarada A. Mendes, ex-1º Cabo Cmd da 38ª CCmds (Os Leopardos) (Guiné, Brá, 1972/74), abordou aqui o tema (delicado e doloroso) dos nossos mortos em combate, naturais da metrópole ou da Guiné, que terão ficado abandonados na zona do Cufeu, perto de Guidaje (1). Já o convidei a aprofundar este assunto, que mexe com todos nós: "Um dia que queiras escrever sobre isso, estás à vontade... Por muito doloroso que isso seja, temos o dever de contar a verdade"...
No post anterior, da autoria de outro camarada que conheceu o inferno de Guidaje, o 1º cabo paraquedista Vitor Tavares, também há uma referência explícita ao sinistro cemitério de Cufeu (2).
2. No passado dia 3 do corrente, o Amílcar mandou-me a seguinte nota:
Com respeito a tua pergunta sobre os restos mortais das NT que ficaram no Cufeu, deixa primeiro que eu mande mais algumas coisas de choque para despertar consciências e preparar os espíritos e depois vamos lá, ok?
Como reparastes a verdade sobre Guidaje (3) teve o condão de derrubar algumas barreiras mas só algumas. Ainda há verdades que eu acho que são demasiado, digamos, reais.
Corri toda a Guiné, conheci cada mata, cada bolanha, cada etnia, aprendi a falar crioulo, ouvi muitas queixas das pops [populações] naquele tempo sobre militares portugueses, coisas que tu nem imaginas e que constatávamos serem verdades muitas delas (e que se eu hoje aqui as contasse seria sacrificado).
Os excessos também fizeram parte da nossa passagem por lá e e, sem ter sido santo, garanto-te que só no contexto do factor guerra é que os cometi.
Vamos deixar que os camaradas continuem a falar das suas experiências, que eu noto agora serem os relatos já menos poéticos e mais reais. E aí eu irei falar-te da parte encoberta do chamado Cemitério de Cufeu.
Não sei se reparaste que na foto do camarada morto no Cufeu (4), que tu publicaste, vê-se uma mão a mexer no cadáver: é a minha mão à procura de documentos para identificar o corpo. Naquele caso não tinha, por isso passou a número, pecebeste?
Acho a que a derteminada altura em Guidaje os mortos eram números que era não preciso humanizar para não dar rosto à tragédia e os números eram fáceis de apagare. Mas as ordens vinham sempre de cima e essas eram: façam o que puderem!
Perante esse cenário e com dificuldades de evacuações de feridos, como é que se evacuavam mortos?
Guiné > Região de Bafatá > Saltinho > Fevereiro de 2005 > O abutre ou jagudi (corruptela do crioulo jugude). Foto do João Santiago, filho do Paulo Santiago... Na batalha de Guidaje (Maio/Junho de 1973), quantos combatentes, de um lado e de outro, ficaram no terreno para pasto dos jagudis ? Nunca o saberemos ao certo...
Foto: © João/Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.
O destino final de muitos foi o chão da bolanha, pois foi preferível isso do que ver os corpos a servirem de repasto aos abutres. Dito assim, parece demasiedo cruel, mas mais cruel era ficar onde estavam. E repara que esses corpos não foram deixados ali por nós, nós apenas ali os encontrámos.
Hoje ficamos por aqui, ok? Voltaremos ao assunto mais tarde e em mais pormenor.Se quiseres, podes publicar.
Um abraço e fica bem.
A. Mendes
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1123: Um espectáculo macabro na bolanha de Cufeu, em 1973 (A. Mendes, 38ª Companhia de Comandos)
(2) Vd. post de hoje > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida
(...) "Entretanto a CCP 121, seguida pelos Fuzileiros, elementos do exército e um grupo de Companhia de Comandos Africanos, que foram regressando da Operação Ametista Real, cruzaram-se connosco no Cufeu. Seguimos rumo a Binta, não sem que víssemos inúmeros cadáveres em decomposição, alguns já só em esqueleto, dando a indicação de não serem todos referentes aos mesmos combates.
"Esta zona, sim, era um autêntico cemitério ao ar livre. Para provar isso, quem esteve em Guidaje, nesse período, deve-se ter apercebido que, quando fazia aragem desse lado, o cheiro era bastante acentuado" (...).
Vd. também post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto
(3) Vd. posts de
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1199: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (1): Sete anos de serviço
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1200: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (2): Um dia de Natal na mata de Cubiana-Churo
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1201: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (3): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (I parte)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1203: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (4): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (II Parte)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1205: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (5): uma noite, nas valas de Guidaje
24 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...
(4) Vd. post de 23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1203: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (4): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (II Parte)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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