Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Saltinho > 1972 > Homens do Pel Caç Nat 53, em plena época seca, a caminho da Foz do Rio Cantoro, um afluente do Rio Corubal.
Foto: © Paulo Santiago (2006)
Texto do Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72), actualmente residente em Aguada de Cima, Águeda:
Como relatei no post anterior (1), o meu primeiro contacto com o capitão-proveta Lourenço deixou-me uma péssima impressão, mas não havia outra solução, caso o Pel Caç Nat 53 continuasse no Saltinho, senão aguentar, resistindo e discutindo, quando fosse necessário.
Quanto aos Alferes Milicianos, só me lembro do nome de três: o Armandino (2), o Rainho e o Garcia. O Armandino e eu, infelizmente, convivemos durante poucos dias. Era uma pessoa excepcional, com uma cultura acima da média, membro do Orfeão Académico de Coimbra, com o qual tinha ido à Expo de Osaca em 70, salvo erro.
Segundo me disse , ele representava a oposição ao Ganho (conhecido defensor do regime) dentro do Orfeão, daí a sua chamada prematura para a tropa.Tirara o curso de Operações Especiais em Lamego. Foi ele quem me convenceu a ficar no quartel, não indo de imediato para Contabane, onde tinha alguns homens, e de onde vinha uma viatura ao quartel buscar as refeições para o pessoal branco do 53, que lá se encontrava.
O Rainho era bom tipo, tinha uma saúde frágil, nunca deveria ter ido para o mato e muito menos para atirador. Mas influências da PIDE levaram-no, também prematuramente, às fileiras da tropa e àquela especialidade.
O Garcia era uma merda, queria apanhar uma hepatite para ser evacuado, então bebia
uma bazooka [garrafa de cerveja de 0,6 l], acompanhada por uma banana ao pequeno- almoço. Era um irresponsável, estava-se cagando para os soldados, estes por sua vez não lhe ligavam puto, a sorte era o grupo de combate ter bons Furriéis.
O Alf Armandino conseguiu desanuviar, em parte, a tensão inicial que nascera entre mim e o Lourenço. Eu tinha férias marcadas com início em 2 de Abril [de 1972]... A 30 de Março apanharia a avioneta no Xitole, e, assim faltavam meia dúzia de dias para largar o camuflado durante um mês. Já imaginava os copos que iria beber na aldeia, dia 3 de Abril, 2ª feira de Páscoa.
Andavam estes pensamentos na minha cabeça, quando uma noite, ao jantar o Lourenço diz que precisa falar comigo no gabinete. Lá vou ao gabinete, onde começo a ouvir uma maluqueira:
- O comandante de Batalhão C. Lemos (3) ordenou uma operação com início na próxima madrugada seguinte, com duração de 2 dias. O objectivo é armadilhar o Celo-Celo, para de seguida começar a construção de uma picada ligando Quirafo à foz do rio Cantoro (4)...
Caíram-me os tomates no chão, mas antes que dissesse algo ele continuou:
-Gostaria muito que você fosse nesta operação, apesar de não ter o seu grupo de combate completo.
Não resisti mais e disse-lhe: a) achar uma barbaridade abrir uma picada do Quirafo ao Cantoro, zona de duplo controle, onde não há população e onde nunca houve nenhuma tabanca; b) meses atrás o General dissera lá no Saltinho que os patrulhamentos ao Cantoro ou mais além, não tinham razão de ser devido à ausência de população e não ser no momento local de passagem do IN; c) não ir sem o meu Gr Comb completo para qualquer operação; d) para terminar, não sabia para que raio interessava armadilhar o Celo-Celo, que ficava no cu de Judas, já quase na zona da companhia de Dulombi. Andara lá perto numa operação que saíra precisamente, deste último local.
Começou com um choradinho, que eu já tinha muita experiência, conhecia bem a zona, enfim era uma ajuda que me pedia... Eu, parvo, fui na conversa do tipo. Disse-lhe que iria na operação com quatro dos meus soldados africanos. Não me foi difícil arranjar quatro voluntários.
Na madrugada seguint, às 4 horas, saímos auto-transportados até ao Quirafo. O percurso entre Madina Buco (5) e Quirafo era picado pelo destacamento e milícias daquela tabanca (Madina).
Chegados e apeados, tomámos o rumo da foz do Cantoro, para a partir daí flectirmos para o Celo-Celo. Atingimos a foz do Cantoro por volta do meio-dia e, parámos perto deste local para comermos alguma coisa da racção de combate.
Parados há poucos mikes [minutos], um dos meus soldados diz ser conveniente sairmos do local pois encontra-se um enxame de abelhas perto, que poderá atacar mal sinta o cheiro das
latas abertas. Agarrei no equipamento e fui com os meus homens informar o Lourenço. Não nos ligou puto:
- As abelhas não representam problema - diz o gaijo com a sapiência de um ignorante.
Nós os cinco afastámo-nos. Vinha aí merda da grossa. Não teriam passado dez minutos começa o caos. Ouvimos os primeiros gritos, há uns tugas que passam a correr à nossa frente completamente desvairados, dois já tinham largado a G3. Vamos atrás deles, procurando não ser mordidos, para os acalmar. Entretanto há um caralho qualquer que chega fogo ao capim para espantar as abelhas. Começo a sentir-me perdido, imagino um grupo do IN na outra margem do Corubal, a mandar umas morteiradas para o meio da confusão. Para mim, a situação mais complicada era, pois não sabia o nome de ninguém, só o do Lourenço e do Garcia.
Aparece-me entretanto o Capitão, digo-lhe ser urgente sairmos rapidamente da zona. Rebentam algumas munições de G3 no meio do lume. O Lourenço diz ser necessário pedir evacuações, visto haver militares muito picados e um está completamente perdido após ter caído no Corubal, onde está agarrado a um tronco, só com o guincho sairá do rio. Digo-lhe que traga os homens, como
puder para uma bolanha próxima, pois só lá poderá poisar o heli. Aparece o tipo do rádio, felizmente não o largou, procuramos as coordenadas, pedem-se os helis, um deles com guincho, e há que aguardar.
Passado algum tempo, aparecem dois helis para as evacuações mais o heli canhão. Um heli vai sacar o tipo ao rio enquanto a enfermeira faz uma triagem rápida: Há cinco militares que terão de ir para o hospital militar, três serão tratados na enfermaria do quartel onde um dos heli os deixará.
Gera-se uma grande discussão entre o proveta e o piloto de um dos helis, a propósito do transporte das armas, dos militares evacuados. Os três que vão para a enfermaria do quartel levam o seu equipamento pessoal. As armas e material dos que vão para o HM terão de ser os camaradas a transportá-los. O Lourenço fica possesso:
- Como é possível um Alferes (o piloto) dar ordens a mim, Capitão, e não querer levar todas as armas dos evacuados ?
O piloto manda fechar-lhe a porta nas trombas e arranca.
- Para mim chegou! - Digo-lhe que vou regressar com os meus quatro homens, via Cansamange. Diz-me ir também regressar, via Quirafo, para onde vai pedir as viaturas.Há um soldado meu, o Abdulai Baldé, que conhece um trilho directo a Cansamange e é por aí que regressamos os cinco, dormindo nessa noite com o pessoal que estava lá destacado.
Acabou assim, em glória, o armadilhamento do Celo-Celo. Quando cheguei ao Saltinho, contei a cena aos Furriéis Dinis e Mário Rui, e recomendei principalmente a este último para ter o máximo cuidado com a ignorância e incompetência do Lourenço. Fazer tudo com a máxima segurança e procurar não embarcar na abertura da picada, caso essa maluqueira fosse por diante. Que arranjasse uma desculpa qualquer.
Em Bissau, quando cheguei para vir de férias, vários tipos conhecidos perguntaram-me pela emboscada de uns dias antes. Tinham sabido da saída dos três helis. Apanhei o voo para Lisboa no dia 2 de Abril, com uma certa preocupação (6).
__________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)
"Luís: Vou começar hoje a lembrar os antecedentes que levaram à trágica emboscada no Quirafo, em 17 de Abvril de 1972 (...).
(...) "As recordações são tão más que não consigo lembrar-me do nº da companhia, mas lembro-me de, no cais do Xime, alguns graduados da CCAÇ 2701, me avisarem para ter cuidado com o Cap Lourenço, um proveta que não seria grande merda e de um Furriel me dizer que o gajo tinha entrado no Saltinho de chapéu à cow-boy e de [pistola] Walther à cintura, com um atilho a apertar o coldre à perna... Enfim, uma verdadeira cena de filme série B!" (...)
(2) Vd. também post de 21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P976: A morte do Alf Armandino e a estupidez do capitão-proveta (Joaquim Mexia Alves)
(...) Eu estava no Xitole e dias antes o Alf Armandino, que morreu nessa emboscada, tinha estado a almoçar comigo em casa do Jamil Nasser (2), se não me engano, um almoço que o Jamil ofereceu também para festejar os meus anos em Abril.Tenho uma fotografia desse almoço onde está o Alf Armandino, que foi aliás meu camarada de Curso nos Ranger's" (...)
(3) Vd. post anterior, com data de hoje > Guiné 63/74 - P985: CCAÇ 3490 (Saltinho), do BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)
(4) Quirafo faz parte da carta de Contabane. A foz do Rio Cantoro julgo que ainda ainda faz parte desta carta se bem que o maior percurso deste rio deva vir assinalado na carta de Gobije, carta essa que não ainda não temos disponível 'on line'... Vd. o Rio Cantoro na Carta Geral da Guiné.
(5) Na carta de Contabane, o nome da povoação é designada por Sinhã Maundè Bucô, a meio caminho entre Saltinho, Mampatá e Quirafo... Julgo que seja a mesma.
(6) Vd. posts de :
12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P955: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (5): O pesadelo da terrível emboscada de 17 de Abril de 1972
20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P975: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (7): ainda as trágicas recordações do dia 17 de Abril de 1972
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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