sexta-feira, 28 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!

Guiné > Pelundo > Dezembro de 1969 > João Tunes (no jipe, do lado esquerdo, o caixa-d'óculos), na altura Alferes Miliciano de Transmissões da CCS do BCAÇ 2884, e já apanhado do clima, apesar dos bons ares do chão manjaco... Mas o pior, foi quando o mandaram, com guia de marcha, para o reino do Nino, lá para as bandas de Catió...

Foto: © João Tunes (2005)


Mensagem do João Tunes:

Caro Luís,

Difícil, muito difícil, resistir aos teus desafios (2). Talvez por esse dom de mestria, tão teu e transpirando sinceridade, de nos fazeres psico pela via do companheirismo sedutor. Tão bem o fazes que dou frequentemente cá comigo a pensar que ao Caco lhe faltou perspicácia suficiente para te aproveitar os talentos e substituir, sob tua inspiração, o raio daquela guerra estúpida e inglória por uma imaginária Guiné Melhor que metesse em convívio alegre, culto, amigo e solidário, o Amílcar e os seus rapazes, a nossa malta das tropas-macacas mais das operações especiais, Alpoim e outros heróis e os não tanto, os guineenses e os caboverdianos de um e outro lado e até de lado nenhum, as bajudas lindas até serem mães precoces, mais os cubanos e outros mais, até os que tais.

Teria sido bem melhor, um ronco do tamanho de todas as bolanhas juntas, voltávamos todos excepto os acidentados, porque - como hoje tão bem se demonstra - até fomos e somos todos, os de um e outro lado, não só bons rapazes como amigos até não mais podermos ser. E, assim, o cacimbo seria, apenas, uma simples imagem meteorológica. Não aquilo que foi, um desarranjo mental, mas vital, na medida em que foi um grito de nojo humano em estar na guerra, fazer a guerra, acreditando eu que não há mãe no mundo que ande a parir filhos com o fito de os meter a matar, muito menos para morrerem.

Pedes tu, caro Luís, contributos para estórias de cacimbados. Difícil, digo em resposta à chamada. Por um lado, julgo que cacimbados teremos sido todos nós porque não tomei até hoje nota de algum camarada que por lá tenha perdido a humanidade. Por outro lado, falece-me a capacidade de não me repetir e nisso muito te devo mais ao blogue, na exacta medida saudável de tanto teres ajudado à catarse que nos liberta da memória traumática ligada aos melhores anos das nossas vidas. E, com a catarse, ganhando-se em paz e em distância, perde-se a piada do acicate de mexer e remexer nas feridas. Ou seja, em termos criativos e comunicacionais, há bens que vêm por mal.

Pela minha parte, encontrei cacimbados em tudo quanto era sítio guineense. E havia um que encontrava todos os dias, logo pela manhã, quando me punha a olhar o espelho para praticar as artes do barbear. Mas, como tudo é relativo, os mais cacimbados entre os cacimbados encontrei-os no Sul da Guiné, no chamado reino do Nino (3). Em Catió, em Guileje, em Gadamael-Porto, em Cacine. Piores que estes só mesmo os metidos em Bissau, no Depósito de Adidos, vindos dos pontos quentes e aguardando regresso, a gerirem uma espécie de loucura sincrética entre as feridas na alma e no corpo em mistura com o alívio ansioso de dali saírem vivos, tentando ainda treinarem os gritos, as lágrimas, os abraços, os beijos dos seus no regresso ao seu meio e viver naturais.

Como disse, já se me secou a capacidade de contar mais que o tanto e tão bem contado pelos outros camaradas. E se não acrescento um ponto, para quê somar mais um conto? Mas, para que não digas que me baldei à chamada, envio-te, com a companhia de um abraço amigo, dois textozinhos que publiquei em Abril de 2004, exactamente sobre estórias de cacimbos e de cacimbados (os factos são veros, só os nomes dos personagens foram alterados) e em que o tom de escrita é notoriamente o da pré-catarse (hoje escreveria diferente, mas preferi manter as versões originais porque o cacimbo se nota mais, ou demais) (2)

I - TIREM-ME DAQUI !


II - E O JIPE NUNCA VOOU


Abraços amigos e camaradas para todos os estimados tertulianos.

João Tunes
Blogue > Agua Lisa (6)
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Notas de L.G.:

(1) Resposta a um pedido meu, de 17 de Julho:

Amigos & camaradas:

Há um desafio meu e do Mexias Alves para falarmos do cacimbo da Guiné e dos seus devastadores efeitos... Quem nunca se sentiu cacimbado, que atire a primeira pedra... Estórias sobre o cacimbo, aceitam-se e pagam-se alvíssaras (...)

(2) A publicar, em breve.

(3) Vd. post de 12 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVI: No 'reino do Nino': Catió, Cacine, Gadamael, Guileje (1970)

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