sexta-feira, 28 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1004: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (1): o pudor das nossas recordações

Esposende > Fão > 26 de Novembro de 1994 > Convívio da CCAÇ 12, da CCS do BCAÇ 2852, do Pel Caç Nat 52 e outras unidades destacadas em Bambadinca, entre 1968 e 1971... Na imagem, ao centro o Beja Santos, rodeado por malta da CCAÇ 12, os furriéis milicianos Humberto Reis (à direita), o Tony Levezinho (de costas, à esquerda) e o T. Roda, ao fundo, sorridente. Na 4ª feira passada, dia 26, reencontrámo-nos doze anos depois, e revivemos o nosso passado comum por sítios míticos da Guiné: Bambadinca, Xime, Enxalé, Rio Geba, Rio Corubal, Missirá, Cuor, Finete, Mato Cão, Madina/Belel, Nhabijões, Ponta Varela, Madina Colhido, Ponta do Inglês, Baio/Buruntoni...

Foto: © Humberto Reis (2006)




Guiné-Bissau > Zona Leste > Xime > 2001 > Rio Geba. O famoso macaréu. No Rio Amazonas é conhecido por pororoca. Em termos simples, o macaréu é uma onda de arrebentação que, nas proximidades da foz pouco profunda de certos rios e por ocasião da maré cheia, irrompe de súbito em sentido oposto ao do fluxo da água. Seguida de ondas menores, a onda de rebentação sobe rio acima, com forte ruído e devastação das margens. Pode atingir vários metros de altura, mas tende a diminuir a sua força e envergadura à medida que avança. Neste rio, ou nesta parte do rio que ainda é de água salgada, dois soldados da CART 3494, aquartelada no Xime, desapareceram, apanhados pelo macaréu numa operação ao Mato Cão, em 1972. Um terceiro camarada, doutra companhia, também desapareceu (Informação do Sousa de Castro).

Foto: © David J. Guimarães (2005)

Texto do Beja Santos:

Caro Luís, foi muitíssimo agradável ter-te revisto ontem [4ª feira, dia 26 de Julho], passadas estas décadas. Do muito que falámos, estou neste momento publicamente comprometido com todos os parceiros do blogue a depor sobre o que vi e conservei da minha experiência na guerra colonial.

Durante anos, acalantei a ideia de escrever um romance sobre a minha experiência (na ficção, como em todas as manifestações de arte, escrevemos sempre sobre nós, condicionando a nossa imagem, seleccionando o que queremos comunicar aos outros). Assim, escrevi na cabeça Soncó, que teria como base os Soncó, a família dos régulos do Cuor. Com os empregos antes do 25 de Abril e os estudos, a ideia esmoreceu.

Aí pelos anos 80, ocorreu-me A Rua do Eclipse. Nem imaginas como. Um dia estava numa reunião num edifício da Comissão Europeia, em Bruxelas, olhei para a cabine de tradução, bati à porta e disse a uma senhora que gostava de almoçar com ela para lhe pedir ajuda para uma obra de ficção que estava a preparar. Ingrid Schorkps (vamos imaginar que é este o nome) ouviu-me com os olhos arregalados. Pretendia conhecer um casal belga com alguma profundidade, pois tinha imaginado um português que se apaixonara por uma belga, num contexto de triângulo amoroso. Precisava da ajuda dela e do marido, o romance iniciar-se-ia por um encontro de interesse fulminante, seguir-se-ia muita correspondência do português para a sua apaixonada (um flamenga), as vicissitudes dos encontros esperádicos, a dor das distâncias, as visitas à casa de Ingrid na Rua do Eclipse.

Na correspondência para Bruxelas, falaria da Guerra da Guiné. A verdade é que visitei a família de Ingrid, ao princípio estranharam, depois tomaram-me como um escritor a sério quando eu comecei a abrir mapas em cima da mesa, explicando os encontros que teríamos pelas ruas da Antuérpia e arredores.

A ideia também esmoreceu. As guerras coloniais que Portugal travou devem ser as mais documentadas das últimas décadas, com excepção da guerra do Vietnam. Temos os aerogramas, as fotografias, as cartas, os filmes, os relatórios. Não temos é o pano de fundo. Ontem, durante o almoço, avançámos algumas explicações. Uma delas tem a ver com a falta de rigor nos relatórios. Outra, com a privacidade e o pudor das nossas recordações.

Quando, aqui há uns anos, num ambiente recatado me pediram uma recordação inviolável, intrasmissível, falei de um enterro de uma massa encefálica numa caixa de sapatos, num cemitério em Missirá. Explico. Depois de uma grande flagelação, ao amanhecer, patrulhei as imediações do quartel. Encontrei um soldado manjaco do PAIGC morto, com a massa encefálica ao lado do corpo. Fora seguramente um tiro na nossa resposta que produzira aquela morte assim.

Pedi imediatamente uma caixa de sapatos e anunciei que iríamos enterrar o corpo com honras militares. A reacção dos meus soldados foi enorme:
- Turra é para ser comido pelos jagudis!

Mas houve mesmo enterro militar. Este é um dos muitos exemplos do pudor que nos faz calar experiências que nos mudaram o curso da existência, logo em jovens adultos.

Vou pois escrever memórias, sempre balizado pelo pudor de que os nossos camaradas, ou outros leitores avulsos, pensem que o que aqui se escreve é produto de uma mente delirante que se disfarça de herói da guerra. Nada disso. Eu fui eu e a minha circusntância: uma guerra que se travou muitas vezes a um ritmo alucinante, e com uma aprendizagem dolorosa.

Por exemplo o macaréu. Eu estava em Mato Cão, quando ouvi as águas do Geba a entrar em ebulição, com ronco medonho. Fugi apavorado para uma colina, com os meus soldados a gargalhar enquanto eu olhava vidrado as águas a espumar no terrafe. Aprendi depois o que era o macaréu, fenómeno raríssimo no mundo daquela água que vem em torrente pelo Corubal e emerge no Geba gelado.

Pois fica sabendo que a operação Macaréu à vista, as minhas memórias desorganizadas de um registo fotográfico onde às vezes ainda capto cheiros e oiço vozes, acaba de começar neste blogue. Sem data fixa e com calendário muito volúvel. Amanhã seguem mais histórias. Pode-se dar a esta carta a publicidade que entenderes.

Mário Beja Santos
(ex-alf mil Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca, 1968/70)

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