quinta-feira, 27 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P995: Carta aberta ao Paulo Santiago: Nenhum relatório militar falava do nosso 'sangue, suor e lágrimas' (Luís Graça)

Paulo:

Os meus parabéns pela dramática, viva e fiel reconstituição que estás fazer da tragédia do Quirafo… Foi assim que chamámos à terrível emboscada que custou a vida a um número indetermindao de civis, a 5 milícias e a 11 militares, mais um desaparecido, em 17 de Abril de 1972... Incluindo o teu amigo e camarada, o Alferes miliciano Armandino, da CCAÇ 3490...

Passados muitos anos isto ainda mexe contigo, com o Mexia Alves, com o Joaquim Guimarães, com todos nós… Mexe muito, mesmo... Mesmo aqueles, como eu, que já não estavam na Guiné nessa época e que só tinham ido uma vez ao Saltinho - e muitos, nem isso! -, nunca tendo passado por Quirafo nem andado na picada que ia dar à Foz do Cantoro, na margem direita do Corubal...

Confesso que, pela minha parte, senti um arrepio pela espinha acima ao ler o teu texto…Lembrei-me de outros encontros, sangrentos, no meu tempo, envolvendo a minha Companhia, a CCAÇ 12, e outras forças... Tentei imaginar - mas não o consegui - o horror que foi essa emboscada com Canhão s/r, RPG e Kalash !!!... As tuas imagens dos restos da GMC, testemunha muda da tragédia, são brutais… Se falassem, quantas GMC abandonadas por essa Guiné fora, vítimas de minas anticarro e/ou emboscadas, não contariam outras estórias tão terríveis como a tua ?

Paulo: Nenhum historiador sabe ou saberá transmitir este conhecimento vivido da guerra da Guiné que tu tens, que eu tenho, que nós temos, esse sofrimento indizível que guardámos este tempo tempo, e que tentamos pôr em palavars, penosamente… E que te leva a dizer: Não consigo escrever mais hoje...

Mais: como me dizia ontem o Beja Santos, que teve a gentileza de vir almoçar comigo e trazer-me preciosa documentação para o blogue, dos tempos em que ele era o tigre de Missirá - a propósito, ele manda-te dizer que nunca andou de cajado nas operações, andava sempre com a sua G3 e os seus guardas-costas, tinha isso sim a mania de que era invulnerável, pelo que nunca se deitava no chão debaixo de fogo... Como dizia o Beja Santos, os relatórios da nossa actividade operacional, feitos por homens que se batiam apenas por mais um galão, servis e subservientes, não contavam toda a verdade, muitas vezes branqueavam a realidade, douravam a pílula, escamoteavam responsabilidades, truncavam os factos, exageravam as baixas do IN, mitificavam os roncos, enganavam o comando, humilhavam e ofendiam os operacionais...

Há o risco, como adverte o Beja Santos, de a verdade, a meia-verdade, a mentira, oficial ou oficiosa, vir a tornar-se a verdade historiográfica... Se nós nos calarmos e levarmos para cova o nosso conhecimento vivido da guerra da Guiné, são os filhos da mãe dos Lourenços e dos Lemos que irão contrar a história por nós, através dos seus pseudo-relatórios...

Paulo: Sobretudo nenhum relatório falava do nosso sangue, suor e lágrimas... E é isso que dói!

Tu e o teu filho João - achei lindo o seu gesto de querer ir contigo na viagem de regresso à Guiné, na viagem de todas as emoções - vocês, dizia eu, prestaram uma grande serviço, a todos nós, portugueses e guineenses…

Agora seria ouro sobre azul se conseguisses localizar o comandante desta terrível emboscada e chegar à fala com ele … Ainda será possível localizá-lo, através dos teus amigos de Bissau, por exemplo, o Sado, oficial superior da Guarda Fiscal da Guiné-Bissau ? E pedir ao Jorge Neto, jornalista, para o entrevistar e mostrar as tuas fotos ? Irei pedir a outros amigos de Bissau como o Pepito e o Paulo Salgado, para juntarem os pauzinhos e darem uma ajuda ao Jorge Neto...

Precisamos urgentemente do depoimento desse comandante, se é que ainda está vivo e quer (e pode) falar… Também seria bom localizar o Baptista, o transmissões, que foi ferido e apanhado à unha e depois dado como morto…

O teu post é nº 990… Faltam dez para chegarmos aos 1000. É uma meta bonita na história (curta) da nossa tertúlia virtual. Vou reservar-te este número para o teu próximo texto, a parte IV da tragédia do Quirafo… É a minha pequena homenagem a ti e ao teu Pel Caç Nat 53, ao Armandino e aos restantes camaradas da CCAÇ 3490, bem como aos milícias e civis de Madina Bucô que estavam lá, na maldita picada do Quirafo, nessa maldita segunda-feira, 17 de Abril de 1972 e que – muitos deles – não voltaram a casa para contar aos seus filhos e netos o que era uma emboscada nas picadas da Guiné…

Fico na expectativa da(s) tua(s) próxima(s) mensagem(ns).
Luís Graça

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