quarta-feira, 26 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P989: SPM - Serviço Postal Militar (Beja Santos)

Lisboa > 2006 > Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70). Conhecido afectuosamente, entre os seus camaradas de guerra da zona leste, sector L1, Bambadinca, como o "tigre de Missirá" (1).

Foto: © Beja Santos (2006)

Texto, enviado em 30 de Junho último (com a menção "para o teu mês de férias"), pelo meu camarada e amigo Beja Santos, membro da nossa tertúlia.

Caro Luís:

O texto não é inédito, mas creio caber completamente nos intentos do nosso blogue. Tu publicas quando quiseres. A minha ausência durante algum tempo não deve ser encarada como menos companheirismo pelo teu esforço inexcedível. Não te esqueças que já tenho 61 anos e a energia tem limites. Mas não duvides que a partir das férias darei uma contumaz colaboração. Na 2º quinzena de Julho telefono-te.

Abraços do Mário Beja Santos





Guiné-Bissau > Cacheu > Barro > 1968 > Feliz Natal..."Este é mais outro aerograma que descobri. Mandei-o, pelo Natal, em 1968. O que eu quis transmitir é que eram natais de morte e que o que procurava era esquecer, dando de beber à dor". Aerograma: "Querida irmã e cunhado, um Natal feliz e que o Ano Novo seja sepre melhor que o anterior. António Manuel... Uma ginginha!.. Pois dar de beber à dar é o melhor" (2)...

Fonte: © A. Marques Lopes (2005)



A HISTÓRIA DE PORTUGAL ATRAVÉS DO SPM (3)

por Beja Santos

Para quem nasceu depois do 25 de Abril, SPM não quer dizer nada. No entanto, para cerca de um milhão de jovens que combateram na guerra colonial ou que intervieram em tal período noutras parcelas do Império, SPM era a ligação à vida que ficara por viver no outro lado do oceano.

Se adicionarmos a cada militar o seu agregado familiar, temos milhões de portugueses a comunicar por escrito, entre 1961 e 1974. Inventou-se o aerograma, uma folhinha amarela ou azul, que se dobrava e colava, circulando de avião entre as províncias e a Metrópole.

SPM era o acrónimo de Serviço Postal Militar, um engano na sua codificação significava ficar sem notícias durante bastante tempo. Estes aerogramas, caso venham a ser estudados, são seguramente o depósito mais importante das mentalidades deste período crucial da nossa História.

Os comandantes militares advertiam os seus subordinados de que nunca se devia falar da guerra nos seus aerogramas, recordando mesmo que a polícia política os podia ler. A prática ensinou que tal recomendação não podia ser seguida, pois os combatentes tinham que falar das suas vidas. Não sendo a minha estória útil neste caso, posso depor que por cada aerograma que escrevi teria sido convocado pela PIDE todos os dias, já que fiz o meu diário com referências a operações e patrulhamentos, relato de feridos e mortos, contactos estabelecidos, juízos sobre oficiais, sargentos e praças, menções geográficas delicadas, opiniões desfavoráveis quanto ao evoluir da guerra, etc. Nada me aconteceu porque certamente a PIDE tinha outras coisas mais importantes a fazer.

A vida afectiva de milhões de pessoas está contada nestes aerogramas. Houve gente que adoeceu ou que até se suicidou porque recebeu denúncias de traições das mulheres, morte de familiares, perda de colheitas, negócios mal sucedidos... E quem ler esta prosa fica, no mínimo, a perceber que os da Metrópole não percebiam praticamente nada sobre a atmosfera da guerra.

Como é público, o Arquivo Histórico Militar já está a receber toda a correspondência trocada neste período por quem, voluntariamente, a quiser entregar. Oxalá todos nós tenhamos consciência de que este património é único, bem como os relatos das operações, as fotografias, as lembranças de artesanato e até o armamento capturado.

Nenhuma outra geração poderá ser tão bem analisada como a minha, nos seus gostos e preferências, nos seus anseios e esperanças, na radiografia das suas dores e na aprendizagem da adultez no quotidiano da guerra. Mas os da Metrópole também podem ser melhor conhecidos dado que estes relatos não omitiam a esfera do íntimo: a prosperidade ou o abandono das aldeias; o crescimento suburbano, o mais ensino, saúde e habitação; a emigração ou os primórdios da sociedade de consumo; o alento que se pretendia dar ao familiar combatente, mesmo quando não havia nenhuma convicção ideológica na defesa da Pátria.

Toda a década de 60 (a que António Barreto chamou “década de ouro do desenvolvimento português”) está aqui espelhada e microscopicamente contada nestes aerogramas que tendem a ser deitados para o lixo quando os seus protagonistas morrem ou, a arrumar os seus papéis, verificam que estes documentos deixaram de ter significado nas suas memórias. É tempo de reflectirmos sobre o que eles nos podem contar, seja como memória viva, seja como testemunho de uma guerra que alguns ainda acreditam que poderia ter sido ganha pela força das armas.

D’este viver aqui neste papel descripto reúne as cartas de guerra de António Lobo Antunes para a sua mulher, entre 1971 e 73, quando combateu em Angola. O título é uma citação de uma carta de Ângelo Lima ao Prof. Miguel Bombarda, e supunha-se ser este o nome do primeiro romance de Lobo Antunes, que acabou por ser Memória de Elefante (aliás, sobejamente referido nestes aerogramas).

Estas cartas são de uma enorme vibração, muitos leitores poderão rever-se, outros conhecer um brutal testemunho da guerra. Primeiro, sentimos o palpitar daquele que viria a transformar-se num dos nossos maiores escritores. Para quem conhece as suas primeiras obras, há aqui expressões nestes aerogramas que o identificam:

- “O calor é enorme e grosso: dá-me a sensação de respirar a palha de um colchão”;
- “aqui estou eu, em Luanda, sob um calor tórrido: o chichi parece chá, os mosquitos formam nuvens densas, e ao tomar duche o corpo sabe-me a sal”;
- “Isto é o fim do mundo: pântanos e areia. A pior zona de guerra de Angola: 126 baixas no batalhão que rendemos, embora apenas com dois mortos, mas com amputações várias. Minas por todo o lado. A Zâmbia quase à vista”;
- E, finalmente, “O que mais me aborrece aqui é a estupidez e a histeria dos alferes. Falam aos gritos, discutem constantemente, emitem uma média de 83, 5 palavrões por minuto (...) O alferes G., madeirense, traz permanentemente debaixo do braço um livro de actas que parece um registo de baptismo. No interior (folheei-o ontem) toma ele nota das fitas que vê. Várias colunas: nome do filme, actor e actriz principal, classificação. Mas adiante, pensamentos recolhidos do Hall Caine. E versos, sonetos patrióticos dizendo que é bom morrer defendendo Portugal! O alferes E., cabo-verdiano branco, com um sotaque desagradabilíssimo, lê o Larteguy e fotonovelas policiais, e tira um curso de detective particular por correspondência (...)”.

Segundo, são cartas de guerra mas também podem ser vistas como um romance. Quando a prosa é muito boa, o leitor pode sempre que questionar se está a ler um diário, correspondência, ou pura ficção. Romance em que um alferes-médico escreve apaixonadamente à sua mulher, fala da sua ternura, da moral das tropas, da intensidade da guerrilha, do quotidiano. Como todos os militares, barafusta pelo atraso das cartas, enuncia os seus projectos, queixa-se das cartas dos seus familiares, como se ele estivesse a fazer safari. A mulher está grávida e fala-se na criança que vai nascer. As saudades crescem, a criança nasce, o alferes vem à Metrópole. O resto não se conta porque o leitor tem todo o direito de conhecer os dois anos de comissão de António Lobo Antunes, acompanhar os seus estados de alma e um amor que roçou o sublime.

E quem tem dúvidas de que a guerra colonial existiu e transformou várias gerações, leia este livro (4).

___________

Notas de L.G. :

(1) Vd. post de 29 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

(2) Vd. post de 18 de Dezembro de 2005 > Guíné 63/74 - CCCLXXXVIII: O meu Natal de 1968 em Barro (A. Marques Lopes)
(3) Artigo publicadop originalmente no Notícias da Amadora, edição 1632, de 22 de Junho de 2006
(4) Título: D'este viver aqui neste papel descripto
Autor: António Lobo Antunes
Editora: Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2005, 432 pp.
ISBN: 972-20-2898-7
Vd. o site não oficial do escritor > António Lobo Antunes

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