
Queridos amigos,
Só espero não ter abusado da vossa paciência saltando da arte do século XX para a do século XVI, até ser posto na rua não descansei a contemplar grandes nomes do Renascimento e à saída fui contemplar um quadro que sempre me fascinou por Georg Baselitz, obra da década de 1960, já este mestre alemão era motivo de escandaleira. Alguns destes génios da pintura foram referências essenciais para pintores contemporâneos, é o caso de Velásquez, outros têm sido subtraídos de um plano discreto e são hoje glorificados, caso de Andrea Mantegna; diante de um belo quadro de Pieter Bruegel, o Jovem, deixei a memória esvoaçar e recordei uma exposição espantosa intitulada A Firma Bruegel, que visitei no Museu das Belas-Artes de Bruxelas, a história verídica de um empreendimento que meteu várias gerações de Bruegel a reproduzir obras que vinham de Bruegel, o Velho, e que encheram palácios por toda a Europa, nós não ficámos de fora, temos uma dessas obras no Museu Nacional de Arte Antiga. E despeço-me de Der Städel, passo as margens do rio Meno sempre ofuscado por ver a capital do euro completamente iluminada.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (205):
Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 5
Mário Beja Santos
Depois de uma viagem por obras representativas e movimentos estéticos da primeira metade do século XX e a contemplação de uma exposição da cidade de Amesterdão do tempo de Rembrandt, feita uma pausa para descansar as pernas e tomar um snack, atiro-me para o passado, estou ávido em rever algumas obras-primas que aqui visitei no início do século, penso que não constituiu o núcleo duro da coleção do banqueiro Städel, ele tinha as suas preferências pelos barrocos alemão e flamengo, há para aqui obras da maior importância, é essa a incursão que tenho o prazer de vos mostrar, e despeço-me do Städel olhando uma obra contemporânea de Georg Baselitz, da década de 1960, apreciei sempre este pintor um tanto inclassificável, alvo de escândalos, figurativo e abstracionista, onírico e prosaico, exigente pela leitura dos temas da sua pintura, sente-se a intensidade da sua polivalência, experimentou quase tudo no mundo das artes, desde as artes gráficas à encenação, da escultura ao desenho. Aqui vos deixo um resumo do que mais apreciei até soar a campainha e pôr os visitantes na rua. E mesmo aqui deslumbrei-me com a vista do Meno e a cidade iluminada, mostrarei mais tarde.
Retrato de uma jovem com o seu cabelo solto, Albrecht Dürer, 1497. Dürer frequentou a feitoria de Antuérpia, aqui recebeu encomendas, aqui teve notícia do comércio português, o seu desenho do rinoceronte é fruto dessa relação e desse acervo de encomendas temos uma obra-prima no Museu Nacional de Arte Antiga, S. Jerónimo, uma aquisição do feitor de Antuérpia, Rui Fernandes de Almada.
O geógrafo, Vermeer, 1669. Para ser sincero, era uma das vincadas lembranças que me restava da visita deste museu, um quarto de século atrás. É uma tela pequena, tudo se ilumina, como é obra e graça na pintura de Vermeer da esquerda para a direita, o que permite a quem a contempla ter acesso ao trabalho minucioso do tecido recamado, multicolor, à frente, vemos vividamente um conjunto de objetos, a postura do geógrafo parece a de um modelo, inclinado e a olhar à distância através da vidraça, e depois prende-nos a atenção um sem número de detalhes como aquela estruturação da luz por toda a tela.
Companhia de milícia do distrito XI de Amesterdão sob o comando do capitão Reynier Reael, por Frans Hals e Pieter Codde, 1633-1637. Desde que tive o privilégio de conhecer obras de Frans Hals em Haia, procuro a sua companhia, temos aqui um grupo de gente muitíssimo bem arranjada, o pintor engalanou os dois oficiais, o capitão e o tenente, ricamente vestidos, por aqui me detive, deslumbrado, e sem querer a memória esvoaçou até ao famoso quadro de Rembrandt intitulado A Ronda de Noite, esta rapaziada da tropa queria um registo para todo o sempre, são quadros em que a vivência do grupo é o clamor do poder e da riqueza dos Países-Baixos.
Ecce Homo, por Bosch, ca. 1500. Ainda não é o Bosch do fantástico e do surreal, o que me embevece é esta alucinante profundidade do quadro, a raiva e o escárnio da multidão, a quase humanidade de Cristo que parece tiritar no seu corpo flagelado, curvado, o seu olhar estende-se até à eternidade, totalmente indiferente o conjunto dos seus algozes e da multidão ululante.
Vénus, Lucas Cranach, 1532. Cranach celebrizou-se pela nudeza dos corpos, revela-se um profundo conhecedor da anatomia humana e pela invulgaridade das exposições das figuras, veja-se a escolha da cor do chão em que a deusa assenta os pés, o seu véu transparente, quase translúcido, a evidenciar-se na negridão do fundo da tela.
Retrato do cardeal Gaspar de Borja y Velasco, Velásquez, ca. 1643-1645. Foi um dos maiores retratistas espanhóis, seduziu grandes nomes da pintura até ao presente, caso de Francis Bacon que sentiu atração em distorcer uma destas telas com cardeal, recriando outra pessoa, o pintor espanhol deixa patente o peso dos pormenores, veja-se o nariz cardinalício, o seu olhar penetrante, as faces encovadas, tem majestade, tem pose, mas não nos transmite empatia.
O evangelista S. Marcos, Andrea Mantegna, ca. 1448-1451. Foi um dos maiores do Renascimento italiano, tive a felicidade de ver expostos três quadros seus com o motivo da crucificação de Cristo no Museu das Belas-Artes em Tours, dois emprestados pelo Louvre, a partir de então este genial pintor faz parte das minhas preferências.
Retrato de Simonetta Vespucci como Ninfa, Botticelli, ca. 1480-1485. Botticelli é daqueles pintores que reconhecemos à primeira vista, olha-se para este retrato e de imediato viajamos até ao Nascimento de Vénus, uma das suas obras-primas na Galeria dos Ofícios, em Florença.
Retrato do Papa Júlio II, por Rafael, 1511/12. Pintor de encomendas papais, Rafael encheu o Vaticano de obras e este quadro de alguém que protegeu as artes é uma forma de imortalidade que também Miguel Ângelo ajudou com a poderosa escultura de Moisés junto do túmulo papal na Igreja de S. Pedro em in Vincoli, não muito longe do Fórum Romano.
Praça de S. Marcos em Veneza, Giacomo Guardi, ca. 1870-1810. Esta é a Praça de S. Marcos antes da chegada de Napoleão Bonaparte que mandou fechar o fundo com a chamada galeria napoleónica, neoclássica, que deu a esta praça uma formosura ímpar. Giacomo Guardi era descendente de Francesco Guardi, a maior coleção de obras em coleção particular dele está em Lisboa, no Museu Gulbenkian.
A Virgem e o Menino com S. João Batista e Isabel, Bellini, ca. 1490-1500. É preciso ser dotado de uma finura genial para que esta composição possuir o poder magnético de nos estontear com aqueles tons azuis intensos que ganham um estranho recorte com aquele fundo de azul do céu cheio de nuvens, e como nada destoa na simetria da composição com a indumentária pobre de S. João Batista enlevado diante daquele, como diz o Evangelho, de que ele não era digno de desatar as sandálias.
A adoração dos Reis Magos numa paisagem de inverno, Pieter Bruegel, o Jovem, ca. 1630. Mal sabia o pai deste que se transformara no promotor de uma firma de consecutivas cópias que eram encomendadas pela aristocracia e a grande burguesia. O filho de Pieter Bruegel, o Velho, também não frutava a introduzir variantes, e consegue fazer conjugar, com sucesso pleno, esta mistura de religiosidade com cenas da vida quotidiana, dando um cuidado realce à neve.
Retrato da infanta Margarida, por Velásquez, 1651-1673. Uma obra pictórica de génio fala por mil palavras, esta infanta aparece num conjunto de obras-primas, confesso que a que mais gosto é Las Meninas, que está no Museu do Prado, a infanta de Espanha rodeada da sua Corte no primeiro plano, uma tela cheia de profundidade quando ao fundo se abre uma porta por onde discretamente o pintor sai.
Oberon, por Georg Baselitz, 1963 – 1964. Já se ouvem os chamamentos das 17h45, os senhores visitantes são convidados a sair, e despeço-me desta memorável visita a Der Städel contemplando o Oberon de Baselitz, este mítico rei das fadas que também atraiu Shakespeare que deu intenso vigor na sua comédia Sonho de Uma Noite de Verão, o mesmo Oberon que entusiasmou o músico Weber, o seu Oberon é peça de reportório dos concertos. O que aqui me facina é a multiplicidade de figuras que parecem exatamente saídas de um sonho, fazem parte de um formulário de Baselitz de expor temas em completa rutura com a vida quotidiana. E agora vou ver Frankfurt ao anoitecer.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 17 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26811: Os nossos seres, saberes e lazeres (681): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (205): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 4 (Mário Beja Santos)
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