domingo, 23 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11750: Bom ou mau tempo na bolanha (14): "Tarrafo", um livro, um documento (Tony Borié)

Décimo quarto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



Abri o envelope, dos modernos, almofadado, tinha vindo de Portugal, tinha na estampilha o nome de uma simpática povoação da região de Águeda, lá dentro vinha um livro, assinado pelo autor, com uma dedicatória que me fez emocionar. Abri-o, tinha o cheiro daqueles livros, quando novos, usávamos desde a primeira à quarte classe, depois com o uso, e com algum mal trato, pois muitas vezes serviam de balizas para aqueles tremendos desafios de futebol, da “Terceira”, contra a “Quarta”, que era o pessoal da terceira classe contra os “ranhosos” da quarta classe, que envolvia talvez uma equipa de quarenta e tantos “garotos”, contra outra equipa de outros quarenta e tal, e que acabava sempre quando tocava a campaínha para o regresso às frias e inconfortáveis salas de aula, onde havia um professor, “com cara de mau”, parecia mesmo um “pirata”, e a terceira classe quase sempre perdia, com um golo “roubado”, pois tinha sido marcado depois de forte empurrão que estatelou no chão de terra batida, da Escola do Adro da Igreja, o franzino “puto” da terceira classe. Esses livros, quase sempre ficavam todos riscados, com marcas, nomes do colega de carteira, sinais de “copianço”, enfim toda a qualidade “gatafunhos”.

Estou a falar da Escola do Adro, como havia tantas escolas do Adro, como havia tantas ruas da Farmácia, dos Correios, da Fonte, do Rio, de Cima, de Baixo, em tantas vilas e cidades de Portugal, mas esta era a Escola do Adro, de Águeda, região onde vivem os companheiros combatentes Paulo Santiago e Armor Pires Mota. O Paulo teve o simpático gesto de me enviar o livro, para que revivesse os tempos do conflito e me lembrasse do que era essa maldita polícia que nos acompanhava nesse mesmo conflito, o livro tem esse cheiro, tem essas marcas, que nós “putos” fazíamos, muitas vezes para enganar o professor.

O Armor Pires Mota, não era eu, creio, que se a minha já um pouco debilitada memória não me atraiçoa, que o vi uma vez ou outra na tipografia onde trabalhava em Águeda, creio que até o cumprimentei, mas como dizia, o Armor Pires Mota, não era eu, o Armor Pires Mota, não enganava ninguém, teve na altura, uma personalidade e uma visão um pouco arrojada para a época, tirava os seus apontamentos durante o conflito, ali, a quente, e mesmo antes de chegar à Europa, começa a contar a verdade do que via, num jornal de província, da pequena localidade donde era oriundo, mas pertencente à região onde eu nasci e na altura viviam os meus pais, que eu, já incorporado no exército, visitava assim que tinha oportunidade, apontamentos esses, que logo tiveram alguma publicidade, e ele, sem se preocupar um pouco sequer, pois a tal polícia do estado, vigiava-nos. Por fim, chegado de vez à Europa, publica esses apontamentos em livro. Resultado, o tal livro foi logo apreendido e com os “gatafunhos” escritos a lápis, talvez vermelho e azul, como usava o pai do meu companheiro de escola, que me trazia alguns desses lápis, depois de eu o ajudar nas contas de multiplicar e dividir, em que ele não era lá muito bom, e que tinha vindo dos lados de Leiria, cujo pai era chefe dos correios que também fazia a revisão e censura dos jornais da vila nesse tempo.

O livro “Tarrafo”, para mim é um documento, com “crónicas e reportagens feitas na hora”, algumas a quente, a verdade do que via, não importava se as aldeias eram queimadas, se havia bombardeamentos com bombas de napalme, se havia emboscadas, tiros, granadas, morteiros, catra-pum-pum-pum, mortos, feridos, guerrilheiros com armas, algumas com mais potencial do que as usadas pelas nossas forças, lama, bolanhas, tarrafo, fome, sede, fartura, bajudas, umas a fugirem, outras a refugiarem-se nos braços dos soldados, risos, abraços ou beijos, companheiros com o camuflado roto e sujo de sangue, alguma alegria, ou gritos de dor e angústia, nos momentos de aflição, em que alguns companheiros feridos, pediam a morte, era a verdade, que nós combatentes sabemos que existiu, eu, pelo menos, que lá cheguei uns meses depois dele e calquei aquela terra vermelha, e dada a minha especialidade no conflito, tomei conhecimento de algumas “façanhas” do célebre Batalhão 490, assim como de outras unidades de combate que andavam por lá, principalmente pela região do Oio. Vi que era verdade, mas não tive a coragem ou talvez a lucidez, de chegar à Europa e descrever em jornais, revistas ou livros, alguns pormenores daquela maldita guerra. Na minha modesta opinião, este livro em parte deve ser lido nessa vertente, como um documento, vou colocá-lo num lugar especial da minha pequena biblioteca.

Um grande bem haja aos amigos combatentes Paulo Santiago e Armor Pires Mota e não perco a esperança de um dia os poder abraçar.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11733: Bom ou mau tempo na bolanha (13): Durante 30 anos trabalhei numa multinacional em New Jersey (Tony Borié)

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Tony

Continuas a desfiar as tuas memórias, agora motivado pelo livro que mãos amigas te fizeram chegar às mãos.

E acabas sempre por referir qualquer coisa que também me despertam memórias. Às vezes, coisas simples, como estas hoje.

Refiro-me à "Escola do Adro".
Onde eu cresci, em Vila Franca também havia uma "Escola do Adro" que, como é natural, ficava junto ao adro da Igreja. Era escola do tipo "Conde Ferreira". Mas eu fiz a escola primária na "Escola do Bacalhau", estilo "Estado Novo", que ficava a escassos metros da "do Adro", do outro lado da rua.
Como calculas que eram passados os intervalos? Pois é, 'guerra de calhoada' ou seja à pedrada de cá para lá e de lá para cá, normalmente com vantagem para os "do Bacalhau" porque dispunham de melhor posição estratégica, tinham os telhados baixos das casas baixas que se interpunham entre escolas e os "do Adro" apenas alguns troncos de árvores.

Essas guerras eram injustamente interrompidas durante alguns dias devido à absurda oposição dos moradores das casas referidas que se queixavam que a rapaziada lhes partia as telhas... era a falta de pontaria do "do Adro".

Encontraram maneira de 'resolver' a situação fazendo desencontrar os horários dos recreios mas lá se arranjou outros expedientes para irmos treinando, em antecipação, os nossos 'jogos de guerra'.

Abraço
Hélder S.

paulo santiago disse...

Tony
Como imaginas,nós de Aguada,não frequentámos a Escola do Adro,cujo edifício tem hoje outras funções,mas foi lá que fomos fazer o exame da 4ª classe.Muitos alunos das escolas do Concelho de Águeda,"desciam" à vila,pela primeira vez,por mor desse exame.
Como sempre gostei do que escreveste,e acabei de mandar o link ao Armor porque ele diz ser um pouco azelha a navegar nos blogues.
Como já em tempos disse,não perdi a esperança de reunires tudo o que escreveste,e a apresentação do livro ser em Águeda.
Abraço amigo
Paulo