Décimo quarto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
Abri o envelope, dos modernos, almofadado, tinha vindo de
Portugal, tinha na estampilha o nome de uma simpática povoação
da região de Águeda, lá dentro vinha um livro, assinado pelo
autor, com uma dedicatória que me fez emocionar. Abri-o,
tinha o cheiro daqueles livros, quando novos, usávamos desde a
primeira à quarte classe, depois com o uso, e com algum mal
trato, pois muitas vezes serviam de balizas para aqueles
tremendos desafios de futebol, da “Terceira”, contra a “Quarta”,
que era o pessoal da terceira classe contra os “ranhosos” da
quarta classe, que envolvia talvez uma equipa de quarenta e
tantos “garotos”, contra outra equipa de outros quarenta e tal,
e que acabava sempre quando tocava a campaínha para o regresso
às frias e inconfortáveis salas de aula, onde havia um
professor, “com cara de mau”, parecia mesmo um “pirata”, e a
terceira classe quase sempre perdia, com um golo “roubado”, pois
tinha sido marcado depois de forte empurrão que estatelou no
chão de terra batida, da Escola do Adro da Igreja, o franzino
“puto” da terceira classe. Esses livros, quase sempre ficavam
todos riscados, com marcas, nomes do colega de carteira, sinais
de “copianço”, enfim toda a qualidade “gatafunhos”.
Estou a falar da Escola do Adro, como havia tantas escolas
do Adro, como havia tantas ruas da Farmácia, dos Correios, da
Fonte, do Rio, de Cima, de Baixo, em tantas vilas e cidades de
Portugal, mas esta era a Escola do Adro, de Águeda, região onde
vivem os companheiros combatentes Paulo Santiago e Armor Pires
Mota. O Paulo teve o
simpático gesto de me
enviar o livro, para
que revivesse os
tempos do conflito e
me lembrasse do que
era essa maldita
polícia que nos
acompanhava nesse
mesmo conflito, o
livro tem esse cheiro,
tem essas marcas, que
nós “putos” fazíamos,
muitas vezes para
enganar o professor.
O Armor Pires Mota, não era eu, creio, que se a minha já um
pouco debilitada memória não me atraiçoa, que o vi uma vez ou
outra na tipografia onde trabalhava em Águeda, creio que até o
cumprimentei, mas como dizia, o Armor Pires Mota, não era eu, o
Armor Pires Mota, não enganava ninguém, teve na altura, uma
personalidade e uma visão um pouco arrojada para a época, tirava os seus apontamentos durante
o conflito, ali, a quente, e mesmo antes de chegar à Europa,
começa a contar a verdade do que via, num jornal de província,
da pequena localidade donde era oriundo, mas pertencente à
região onde eu nasci e na altura viviam os meus pais, que eu, já
incorporado no exército, visitava assim que tinha oportunidade,
apontamentos esses, que logo tiveram alguma publicidade, e ele,
sem se preocupar um pouco sequer, pois a tal polícia do estado,
vigiava-nos. Por fim, chegado de vez à Europa, publica esses
apontamentos em livro. Resultado, o tal livro foi logo
apreendido e com os “gatafunhos” escritos a lápis, talvez
vermelho e azul, como usava o pai do meu companheiro de escola,
que me trazia alguns desses lápis, depois de eu o ajudar nas
contas de multiplicar e dividir, em que ele não era lá muito
bom, e que tinha vindo dos lados de Leiria, cujo pai era chefe
dos correios que também fazia a revisão e censura dos jornais da
vila nesse tempo.
O livro “Tarrafo”, para mim é um documento, com “crónicas e
reportagens feitas na hora”, algumas a quente, a verdade do que
via, não importava se as aldeias eram queimadas, se havia
bombardeamentos com bombas de napalme, se havia emboscadas,
tiros, granadas, morteiros, catra-pum-pum-pum, mortos, feridos,
guerrilheiros com armas, algumas com mais potencial do que as
usadas pelas nossas forças, lama, bolanhas, tarrafo, fome, sede,
fartura, bajudas, umas a fugirem, outras a refugiarem-se nos
braços dos soldados, risos, abraços ou beijos, companheiros com
o camuflado roto e sujo de sangue, alguma alegria, ou gritos de
dor e angústia, nos momentos de aflição, em que alguns
companheiros feridos, pediam a morte, era a verdade, que nós
combatentes sabemos que existiu, eu, pelo menos, que lá cheguei
uns meses depois dele e calquei aquela terra vermelha, e dada a
minha especialidade no conflito, tomei conhecimento de algumas
“façanhas” do célebre Batalhão 490, assim como de outras
unidades de combate que andavam por lá, principalmente pela
região do Oio. Vi que era verdade, mas não tive a coragem ou
talvez a lucidez, de chegar à Europa e descrever em jornais,
revistas ou livros, alguns pormenores daquela maldita guerra. Na
minha modesta opinião, este livro em parte deve ser lido nessa
vertente, como um documento, vou colocá-lo num lugar especial da
minha pequena biblioteca.
Um grande bem haja aos amigos combatentes Paulo Santiago e
Armor Pires Mota e não perco a esperança de um dia os poder
abraçar.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 19 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11733: Bom ou mau tempo na bolanha (13): Durante 30 anos trabalhei numa multinacional em New Jersey (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Caro Tony
Continuas a desfiar as tuas memórias, agora motivado pelo livro que mãos amigas te fizeram chegar às mãos.
E acabas sempre por referir qualquer coisa que também me despertam memórias. Às vezes, coisas simples, como estas hoje.
Refiro-me à "Escola do Adro".
Onde eu cresci, em Vila Franca também havia uma "Escola do Adro" que, como é natural, ficava junto ao adro da Igreja. Era escola do tipo "Conde Ferreira". Mas eu fiz a escola primária na "Escola do Bacalhau", estilo "Estado Novo", que ficava a escassos metros da "do Adro", do outro lado da rua.
Como calculas que eram passados os intervalos? Pois é, 'guerra de calhoada' ou seja à pedrada de cá para lá e de lá para cá, normalmente com vantagem para os "do Bacalhau" porque dispunham de melhor posição estratégica, tinham os telhados baixos das casas baixas que se interpunham entre escolas e os "do Adro" apenas alguns troncos de árvores.
Essas guerras eram injustamente interrompidas durante alguns dias devido à absurda oposição dos moradores das casas referidas que se queixavam que a rapaziada lhes partia as telhas... era a falta de pontaria do "do Adro".
Encontraram maneira de 'resolver' a situação fazendo desencontrar os horários dos recreios mas lá se arranjou outros expedientes para irmos treinando, em antecipação, os nossos 'jogos de guerra'.
Abraço
Hélder S.
Tony
Como imaginas,nós de Aguada,não frequentámos a Escola do Adro,cujo edifício tem hoje outras funções,mas foi lá que fomos fazer o exame da 4ª classe.Muitos alunos das escolas do Concelho de Águeda,"desciam" à vila,pela primeira vez,por mor desse exame.
Como sempre gostei do que escreveste,e acabei de mandar o link ao Armor porque ele diz ser um pouco azelha a navegar nos blogues.
Como já em tempos disse,não perdi a esperança de reunires tudo o que escreveste,e a apresentação do livro ser em Águeda.
Abraço amigo
Paulo
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