1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Março de 2013:
Queridos amigos,
Aqui temos um relato de um guineense sobre o desencadear do conflito político-militar de 1998-1999.
Diplomata, poeta, declamador e músico, o autor privilegia o poético, nota-se que tem um grande orgulho sobre as qualidades amáveis do seu povo, faminto de paz.
Este seu “Adormecer de um sonho” (que título tão lindo!) é uma obra bem intencionada, tem aqui belos parágrafos, se bem que no seu conjunto haja uma arquitetura fruste e soluções nitidamente precipitadas que fazem do seu balanço uma obra bem elaborada mas sem direção.
Um abraço do
Mário
Adormecer de um sonho
Beja Santos
Em “Adormecer de um sonho”, por Carlos-Edmilson Marques Vieira, edição da União Nacional dos Escritores e Artistas de S. Tomé e Príncipe, 2010, voltamos ao palco do conflito político-militar de 1998-1999, numa toada por vezes onírica, por vezes com o recurso a imagens violentas, trata-se de uma narrativa de condenação de uma guerra que veio dividir gentes tão sofredoras de outra guerra que também dividiu famílias, crescendo assim o número de ferimentos que estão para sarar. Bissau é a cidade de Ôdocomé, as fações militares são os corpos dos caçadores de cabeças, o país chama-se Lambdò-Land.
Estamos nas primícias do conflito, “O dia tinha começado a gatinhar na brisa, embalado pelo vento fresco e manso que soprava, balançando as copas das árvores, varrendo das estradas a areia vermelha do Sahara, que o vento quente da noite anterior tinha espalhado sobre a cidade. E também sobre as folhas das árvores e as paredes das casas que já lá vão quase três décadas não foram pintadas”. Convém não esquecer que o autor é também poeta e músico.
Há uma corrente elétrica, uma agitação palpável no número inusitado de militares que circulam armados, há também civis armados até aos dentes, não se entende esta tensão guardada em silêncio, mas estamos em África. Inúmeros rumores circulam nos mercados, algo irá acontecer, os militares estão descontentes, a tensão, para que não restem dúvidas, atravessa as forças armadas, como alerta o narrador: “De um lado estavam os jovens oficiais que clamavam pela modernização e redefinição da missão dos caçadores de cabeças, adaptada à nova realidade do mundo moderno, do outro, os mais antigos que continuavam a advogar o usufruto das regalias e normas herdadas da Luta de Libertação Nacional”. Foi um dia de vai e vem de pessoas e conciliábulos, uma febre sem causa aparente, depois veio a noite e trouxe um sossego provisório, fica-se a saber que os jovens quadros, no seu convívio, protestam contra as mordomias, a clique pegajosa que ciranda em torno do senhor absoluto que promete progressos enquanto inexoravelmente afunda as esperanças do país. O senhor absoluto é o Buntyó que agora anda às turras com o seu velho camarada das trincheiras, Carfala, houve para ali uma briga muito feia, o Buntyó suspendera Carfala do cargo de chefe da Casa das Armas, tinha-se armado a cegada. É percetível o clima de intentona, o autor socorre-se da retórica mais gongórica, temos para ali grandes discursos e invetivas, do tipo: “Somos o único país do mundo em que os funcionários públicos, quer dizer trabalhadores do Estado, ficam meses a fio sem receber o salário e não somos capazes de sair todos juntos à rua, para varrermos do pelouro os incapazes de cumprir a mais elementar das obrigações de um Estado, que é pagar o salário dos funcionários”.
Um outro interveniente da narrativa regressa a casa e recorda Bolama, trata-se de uma memória dolorosa, assim: “A cidade encontra-se coabitada por pessoas, morcegos, ratos, sapos, cobras e lagartixas. Nas noites de lua cheia, a luz entra sorrateiramente, sem arrogância, mas com abundância suficiente, como a chuva que também entra pelas frestas das telhas partidas pelo tempo, pelos rombos das portas e das janelas escancaradas, num infindo namoro com o vento que vem do horizonte marinho”. E depois fala-se de um encontro entre este interveniente, Ibraim, com um amigo, de nome Midana, depois surge Djena, filha de Nandtida e de Bedém, este fora colega dos dois, agora trabalha na Embaixada em Berlim, discreteia-se sobre a vida humilhante do corpo diplomático daquele país, com salários suspensos e corridos das casas alugadas tal a contumácia dos calotes, depreende-se que o azedume por tanta situação caótica envenena o espírito de todos. O autor conhece do que fala, é diplomata de carreira, ocupou o cargo de delegado permanente da Guiné-Bissau junto da UNESCO, depois oficial de ligação da UNESCO junto da União Africana, foi mais tarde colocado em Lisboa.
E às primeiras horas do dia seguinte, domingo, dia santo, uma rajada de metralhadora surpreende o dia nascente, logo se percebeu que era um sinal combinado. A metralha cobriu o barulho habitual da cidade, os tiros intensificaram-se, o pânico ganhou as entranhas das pessoas, endoidecidas procuravam um ponto seguro ou recolhiam a casa. Pelas 11 da manhã, a Rádio Nacional emitia uma mensagem pretendendo acalmar a população, mas da parte da tarde, começaram a troar as armas pesadas, acalmia não existia, ali estavam os mortos amontoados nas estradas e nos cantos das casas a comprovar. No hospital da cidade instalou-se o caos, e começou a debandada que ainda hoje a população recorda, tal o vigor do trauma. Trata-se de uma descrição pintalgada de todas as inquietações possíveis, todos os perigos, vibra-se com insegurança instalada na cidade, aos poucos os seus cidadãos apercebem-se que estão na linha de fogo entre duas fações altamente municiadas.
O autor arquiteta todo este desabafo nas imprecações de vizinhos sem ilusões de que esta guerra vai agravar todos os problemas, tornou-se numa população experiente em viver numa cidade sitiada: “Contavam os obuses lançados por uma parte e a resposta da outra, é que de tanto ouvirem os tiros já sabiam distinguir os morteiros vindos de um lado dos que eram enviados do outro e também sabiam reconhecer, pelo assobio do projétil silvando o ar se iria cair perto ou longe das suas casas. Quando sentiam a aproximação da bomba, gritavam para a família procurar abrigo, quem não tivesse tempo aplacava no sítio onde se encontrava, de barriga para baixo e o nariz raspando o chão".
Começa o êxodo, Nangtida e a família caminham para o Pidjiquiti à procura de um barco salvador. Num cenário dantesco, com a artilharia a bater a zona portuária, a família parte e Nangtida fica em terra, no meio daquele pavor desencontraram-se. Nangtida pede acolhimento à família de Bedém. Esforça-se por se reunir à família, provavelmente em Cabo Verde, ou em Dakar ou mesmo a caminho de Portugal, todas as suas diligências falham, não consegue embarcar. Enquanto espera no cais, presencia o diálogo travado entre Amélia e Kaajal. Amélia poetiza, vamos ouvi-la declamar os seus poemas no meio daquela atmosfera alucinante, onde ecoam os estrondos das armas.
Ficaremos igualmente a saber a história do Tio Polom, uma vítima de perseguições, fora parar à cadeia por uma denúncia caluniosa de um vizinho invejoso, ficou sete anos sem nunca ter sido ouvido e depois a polícia de segurança do Estado levou-o para casa. E tem aqui lugar uma longa estrofe em louvor da liberdade. A tragédia espreita, Nangtida não aguenta mais o desassossego que lhe vai na alma, mete-se ao caminho numa longa coluna que foge ao conflito que pôs Bissau em chama, são pessoas que abandonam as casas, parte das famílias, os amigos e os vizinhos, buscam a salvação. E perto da fronteira uma mina traiçoeira faz adormecer um sonho de uma mãe que procurava desesperadamente reunir-se à filha. Uma morte que, figurativamente, representa o desastre para onde se lançou a Guiné.
Uma obra bem-intencionada, belas imagens poéticas, temos aqui uma alma sensível que não se cansa de lembrar como os guineenses são solidários até na maior provação.
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Nota do editor
Último poste da série de 21 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11741: Notas de leitura (493): Populações da Guiné, publicação do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné - Quartel General - Repartição de Informações (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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