sexta-feira, 9 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22355: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (60): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
Annette interroga Paulo Guilherme quanto à natureza dos seus relatos, pergunta-lhe se tudo quanto ali se diz é a clara certidão da verdade, de acordo com o que a memória permite e os papéis guardam. A resposta surpreende-a: há omissões, há segredos invioláveis, há papéis enganadores, caso de relatórios de operações que não podem ser tomados a sério. E dentro daquela vivência intensa manda o pudor que nem tudo se conte, viu-se gente com muito medo, havia um canalha que procurava permanentemente guias médicas, doía o dedo ou doía o ouvido, sempre doente, por coincidência adoecia na véspera da operação. E há histórias secretas, como a daquele oficial que até se quis mutilar para não aturar quatro alferes que o achincalhavam. Nem tudo se conta, dentro e fora da guerra. Parece que Annette ficou um tanto desconsolada, mas convicta que há segredos sobre os quais ninguém se atreve a escrever.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (60): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adoré Paulo, proporcionaste-me ontem à noite, na longa conversa telefónica que tivemos, momentos intensos de meditação. Quando procurei voltar ao teu passado na Guiné e te pedi que tivesses a maior das franquezas comigo, queria saber se estavas a contar integralmente, e de acordo com as tuas lembranças, tudo o que efetivamente acontecera no período em que foste militar. Surpreendeu-me a tua pronta resposta: há a verdade histórica, há omissões, silêncio mais ou menos absoluto sobre certos factos, em consciência não pretendi adulterar ou perverter a sequência cronológica dos acontecimentos nem dos seus protagonistas. Mas nunca ultrapassei, por razões de pudor, a decisão de os pôr por escrito. Dou às pessoas silenciadas o dever do arrependimento e a liberdade de consciência.

Sentada, enquanto conversávamos, fui tomando notas dos esclarecimentos que prestavas, foste mesmo ao início da tua preparação militar em Mafra, tudo te parecera positivo ali, menos a comida, desnecessariamente abominável, não havia necessidade de aparecer um caldeiro com arroz de frango que metia patas e cabeças, um nojo. Foi ali que descobriste satisfação de te saber capaz de ir a trote até Mafra e voltar, adaptaste-te às marchas, rias-te interiormente das justificações ideológicas para a guerra colonial dadas pelos instrutores. Sentiste benefícios do período da especialidade em que foste exposto a muita dureza. Guardas a melhor das lembranças do período em que foste dar recruta na ilha de São Miguel, vejo nos teus papéis inúmeras referências a um certo deslumbramento quanto à descoberta de que possuías capacidade para liderar, há mesmo uma expressão curiosa que retive de uma carta enviada a um familiar: “Descobri que sei comandar, faço-o sem rispidez ou teatralidade, mas não ponho esse princípio da liderança como primordial quando voltar à vida civil, agora é vital que o aceite e desenvolva, pois irei acabar naturalmente com essa voz de comando”. Não escondes mesmo que houve algum choque adaptativo na vida da caserna e que a primeira noite em Missirá foi determinante para as decisões que tomaste nos dias seguintes, ias formar uma mentalidade ofensiva, procurar melhorar as condições de vida de quem ali vivia. Mas logo nessa noite te confrontaste com o furriel que mostrava frascos com dedos e orelhas, disseste-lhe sem hesitação que tal não voltaria a acontecer enquanto estivesses ali. Quando te falei neste assunto, respondeste que tinha ficado escrito não por razões de moralidade de última hora, era o princípio que exigias a ti e de ti para os outros, somos militares, iremos combater a sério, mas não somos torcionários.

Quando te abordei sobre questões de sexualidade, e tendo tu descrito num documento um episódio passado com um soldado branco e um africano, foste perentório: só me interessou explicar àquele homem as consequências da impulsividade, ele teria que pensar o que sucederia ao outro, daí não ter registado o nome deles, tudo decorreu na confidencialidade, ninguém soube da história. Falaste na complexidade do mando: fazer a guerra, cuidar do abastecimento de militares e civis, zelar pela segurança, em casos extremos fazer a justiça com o apoio do régulo, ser confidente, e disseste ter recebido muitas confissões, ouvido muito desespero, procuraste zelar pelos outros, usando sempre, quando possível, da absoluta discrição.

Viste gente cheia de medo em vários teatros da guerra, jamais contarás a conversa havida com um comandante de Bambadinca que contou a história de um comandante de unidade, altamente deprimido por se sentir desautorizado pelos seus alferes, e tu foste enviado para subtilmente pôr aquela gente a fazer guerra e só ali não voltaste mais porque te garantiram que o dito oficial seria doravante respeitado. Impossível contar a história, trazer nomes à baila. Entendeste que devias passar sumariamente pela profunda depressão de um teu colaborador que teve que ser evacuado e sujeito a tratamento psiquiátrico durante anos, aliás confessaste que te sentias altamente responsável de ter estado desatento a certos sinais e sobrecarregá-lo com tarefas que agudizaram o seu estado depressivo.

De algum modo deixaste-me alarmada quando me falaste no interesse muitíssimo relativo que têm os relatórios das operações e deste-me o exemplo concreto daquele que escreveste sobre o acidente da mina anticarro em Canturé, em outubro de 1969. Ninguém te perguntou nada sobre o relatório que, aliás, viria a ter aspetos úteis no futuro, na medida em que falaste nos sinistrados que ali viste ao duplo traumatismo craniano de Cherno Suane, teu guarda-costas, foi graças a esse relatório que conseguiste muitos anos depois que o processo dele fosse reexaminado e Cherno obteve o estatuto de deficiente das Forças Armadas. O que concretamente me disseste é que em muitos relatórios há referências despudoradas a mortos, que nunca ninguém viu, e também deste o exemplo concreto que te ofereceste para inserir em material destruído durante flagelações a Missirá e Finete as quantidades de material que te pediam em Bambadinca, inclusivamente tiveste um inquérito, veio um coronel a Missirá perguntar como é que tu tinhas desassombro em pôr tantos cobertores, lençóis e fronhas, capacetes destruídos durante as tais flagelações, tudo aquilo somado dava para três contingentes de Missirá e Finete? Tu contaste a verdade, a história acabou por ali.

Terrível é o que igualmente contas do processo de averiguações com aquela criança queimada por uma granada incendiária deixada abandonada num carro de apoio em Finete, em 1966 (dois anos antes de chegares à Guiné), a criança tirou a cavilha e ficou com as costas e pernas literalmente queimadas, era uma granada de fósforo. Recebeste ordens para orientar o processo, inquiriste a mãe da criança, ela própria também queimada quando procurou ajudar o filho, ela confirmou que a granada estava numa viatura militar, mandaste deprecadas para capitão, alferes e sargentos da dita unidade militar, uns não se recordavam de nada, outros não sabiam o que se tinha passado exatamente, alguém se lembrou que houvera evacuação da criança e da mãe, a culpa morreu solteira. E Abudu Cassamá, a criança sinistrada, nunca teve direito a qualquer indemnização de um ato de negligência militar. E em conversa ao telefone, meu adorado amor, tu disseste-me que nada mais podias fazer, para quê trazer nomes à baila, quantos atos desumanos foram cometidos assim, faltando ao dever de justiça?

Continuo, meu amor, a pensar em tudo quanto me disseste, no fundo, a vida em atmosferas tão intempestivas como aquelas que enfrentaste possui as suas conspirações de silêncio, guarda em poços fundos histórias imundas, segredos em que ninguém quer mexer. E, felizmente, como me é dado ver até agora da tua comissão militar não houve horrores de violações, brutalidades dementadas, barbaridades sobre as vítimas da guerra. Estou absolutamente convicta de que esses horrores, a terem existido, nunca te calarias.

Oh, ainda faltam dias para chegares, sei que estás cheio de trabalho, parto amanhã para Bruges, é uma surpresa, uma itinerância com os novos intérpretes, tenho a certeza absoluta que tu adorarias andar comigo nestas viagens. Mas eu depois conto-te tudo. Bisous, meu cavaleiro andante, meu estrénuo senhor do meu coração. Bien à toi, Annette
Quando concluía o meu livro "Nunca Digas Adeus às Armas", os primeiros três anos da guerra da Guiné, Húmus Edições, 2020, pus-me à cata de imagens elucidativas e com as quais eu me identificasse, não só pela qualidade como espelharem factos históricos do referido período. Assim cheguei ao contacto com o João Sacôto, que me autorizou a usar imagens suas estampadas no blogue. No conjunto disponibilizado, duas impressionaram-me muito. A primeira representa a partida do Cachil, um ponto da Ilha do Como onde depois da Operação Tridente criara um destacamento. A segunda notoriamente tem a ver com a partida de regresso, estamos no Pidjiquiti, os militares indumentam-se com a farda que precedeu a cor de sardão, uma imagem serena, trocam-se impressões antes do batelão os transportar para o navio. Como eu gosto destas imagens!
Foi em 2015 que estive pela última vez com o Benjamim Lopes da Costa, meu antigo 1.º Cabo do Pelotão de Caçadores Nativos 52. Zanguei-me com ele seriamente na noite de 3 de agosto de 1969, o Benjamim perdeu a cabeça durante um encontro com uma coluna de abastecimento que apanhámos, na noite escura, desatou aos impropérios, dei-lhe ordem de prisão. A cordialidade que nos unia foi mais forte, restabelecemos a amizade sempre que ele vinha a Lisboa tratar do seu problema canceroso fazia festa. Infelizmente, nunca mais tive notícias do Benjamim.
Pedi ao João Crisóstomo fotografias da sua passagem por Missirá. Como me agrada vê-lo ao lado do régulo Malam Soncó, de quem guardo uma saudade sem consolo, foi um interlocutor espantoso, e o que me surpreende é vê-lo aqui ainda tão viçoso e dois anos depois, quando o conheci, era verdadeiramente um homem grande, cabelo todo branco, ainda direito, mas a amarrecar, os olhos iam perdendo brilho. Mas a lucidez e bom-senso surpreendiam-me a qualquer momento do dia.
O meu mais recente desgosto, preludia seguramente outros que por aí virão, desaparecimento de gente que marcou a minha vida. Mas o que devo a Mamadu Camará não tem qualquer forma de recibo, quer pela dádiva da sua vida, prontificou-se para se sacrificar salvando-me dos estilhaços de uma granada de morteiro 82, em julho de 1969, estávamos em Missirá. Adorava os seus fatos completos, fizera-se um cavalheiro que ia visitar a família à Irlanda. Muçulmano heterodoxo, adorava a atmosfera dos pubs…
O porto de Bambadinca em dia de azáfama
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Nota do editor
Último poste da série de 2 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22335: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (59): A funda que arremessa para o fundo da memória

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