sábado, 10 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22361: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (15): A religião, a fé e o medo

Cobumba - António Eduardo Ferreira - Saída do abrigo


1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 8 de Julho de 2021:


A religião, a fé e o medo

Quando a religião, a fé e o medo se misturavam, por vezes, aconteciam coisas que ainda hoje me dão que pensar. Não sou a pessoa mais indicada para falar destes assuntos…, mas, posso e quero falar sobre duas situações a que assisti quando da minha estadia em Cobumba. A primeira teve a ver com uma missa, a única que por lá aconteceu e a que eu assisti. Estávamos ainda há pouco tempo naquele sítio. Um dia, apareceu lá um padre não sei como nem de onde veio, talvez de alguma companhia próximo dali.

Naquele local, onde a missa aconteceu, estavam dois pelotões da nossa companhia, quase toda a formação e ainda uma secção encarregada do morteiro que lá se juntou a nós… Todos os que estávamos por ali, disponíveis, fomos assistir à missa. Não sei se seria hábito de todos os que assistiram à cerimónia irem à missa nas suas terras na metrópole. Eu não era um grande frequentador… os domingos e dias santos eram para mim os principais dias de trabalho.

Apesar da missa ter acontecido junto a uma árvore, não muito grande, sem nenhumas condições, todos os que a ela assistiram, de pé, estavam com muita atenção, parecendo estar a viver intensamente aquilo ali que estava a acontecer.

Algum tempo depois num dia em que eu estava de serviço, de condutor, ao fim da tarde, com mais seis camaradas fomos até junto ao rio Cumbijã com a viatura, onde esperamos pela chegada do sintex com o pessoal que nele regressava depois de uma ida a Cufar, como acontecia algumas vezes. Estávamos já há cerca de meia hora à espera que eles chegassem, e ao mesmo tempo íamos vendo e ouvindo os Fiat que andavam por ali perto a bombardear, em que era fácil de os observar. Se noutro tempo… algumas vezes, eles chegavam a voar quase junto às árvores, depois da chegada dos mísseis Strela as coisas mudaram muito no que diz respeito à altitude em que efetuavam os bombardeamentos!... Durante a conversa que fomos mantendo enquanto esperávamos, alguém do grupo disse que a “Maria turra” de que todos nós ouvíamos falar, tinha dito que em breve nos iam atacar.

Era uma conversa normal que ouvíamos com frequência, na rádio, em que ela dizia que tinham feito grandes estragos em alguns sítios com flagelações em que tinham destruído abrigos e provocado baixas nas nossas tropas, em que grande parte dessas notícias eram falsas. Entretanto, os Fiat foram embora enquanto nós íamos esperando pelo pessoal que tardava em chegar.

Passados poucos minutos, dos Fiat terem abalado começamos a ouvir rebentamentos, não muito longe, a nossa primeira sensação foi de que seriam os Fiat que tinham voltado a bombardear, mas a realidade era outra, foram precisos breves instantes para nos apercebermos que agora quem estava a ser bombardeados éramos nós. 

Foi a flagelação mais intensa, à distância, com que fomos contemplados enquanto estivemos em Cobumba. Naquele dia, foram vários sítios de onde nos atacaram em que utilizaram três tipos de armas, o canhão sem/recuo, o RPG e o morteiro. 

A sorte naquela tarde esteve connosco, apesar de todo aquele arraial apenas um dos nossos apontadores de canhão sem/recuo sofreu ferimentos leves, ainda antes de disparar o canhão foi atingido por estilhaços de uma granada de RPG que rebentou próximo dele, em que o canhão ficou inoperacional. Com o morteiro eles fizeram fogo com uma precisão que se tem sido alguns minutos mais tarde podia ter resultado em graves consequências para nós… 

Desde o inicio da picada que tínhamos de percorrer do rio até ao ponto mais distante onde se encontravam as nossas tropas, eram cerca de quinhentos ou seiscentos metros, em linha reta, eles conseguiram colocar uma granada de cada lado ao longo da picada, com cerca de setenta metros entre uma e outra. As últimas duas caíram próximo do sítio onde nos encontrávamos, junto ao rio. 

E foi aí que uma vez mais a religião, a fé ou o medo, voltaram a fazer-se sentir. Alguns dos que estavam por ali, em condições normais, por vezes, até diziam mal dos padres da religião e de alguns que a seguiam. Mas, aquilo a que foi possível assistir, foi ver todos a entrar para dentro do leito do rio, naquele momento a água tinha descido muito o que era normal… e vê-los e ouvi-los a rezar em voz alta. Enquanto eu, cheio de medo, entretive-me a tentar fazer um buraco na lama dentro do leito do rio, para lá me deitar. Disparate meu, mas em situações assim… por vezes o disparate acontece! Por isso já me desculpei…

Algumas vezes, ainda sou levado a pensar na frase, que, com frequência ouvia falar, que a fé move montanhas. Não sei se move…, mas em conjunto com o medo, pelo menos, naquele caso mudou comportamentos. 

Quando os camaradas chegaram no Sintex, junto de nós, o ataque já tinha terminado, ainda bem que eles demoraram, assim safamo-nos de ter vivido aquela situação na picada no regresso… onde não havia sítios para nos abrigar, se tal fosse necessário.

António Eduardo Ferreira

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE FEVEREIRO DE 2017 > Guiné 61/74 - P17059: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (14): A minha ida ao Xime

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