sexta-feira, 16 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22376: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (61): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
Está para breve a digressão em torno de vários cemitérios na Flandres, Paulo prometeu a um amigo identificar e fotografar lápides de vários familiares. Sempre zelosa, e ajudada por um bambúrrio da sorte, Annette adquire num alfarrabista de Bruxelas um Guia Michelin sobre campos de batalha da I Guerra Mundial, as batalhas de Ypres entre 1914 e 1918, cerca de dois milhões de mortos, o sonho da Alemanha Imperial em obrigar os britânicos a retirar e conquistar a França. Annette confessa a Paulo que aquelas fotografias mostrando Ypres completamente arrasada, templos e casas vetustas reduzidas a escombros, os impressionantes cemitérios dos Aliados e dos Alemães pareciam suficientes para jamais se pensar em guerra, só que ela regressou cerca de 20 anos depois mais avassaladora que os gases-mostarda e aqueles canhões que à distância de 14 quilómetros reduziam cidades a cinzas. Ficou estupefata quando leu o comentário que naquele dia 9 de abril de 1918 o Corpo Expedicionário Português sofrera um desastre tão grande, que aproximava a tragédia a algo que não se via desde Alcácer Quibir. E Annette vai escrever logo de seguida uma operação que Paulo viveu na região do Xime, em 8 de março de 1970, a cerca de meio ano de findar a sua comissão, será a única operação que lhe deram para delinear e executar, e Paulo confessa que teve muito orgulho nos resultados obtidos, regressou sem mortos e feridos e apanhou os guerrilheiros numa surpresa total.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (61): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adoré Paulo, mon triomphe de l’amour, imagina tu a sorte que tive, num alfarrabista do Boulevard Lemonnier, a uma curta distância da Rua do Eclipse, encontrei a um preço irrisório, de um conjunto de guias ilustrados Michelin da I Guerra Mundial, uma edição de 1919 sobre Ypres e as batalhas de Ypres, propondo viagens com partida e chegada em Lille (diga-se, de passagem, que depois de consultar as cartas geográficas, é o mais lógico itinerário que devemos seguir para encontrar as lápides funerárias dos tais John Minton, Craig Lloyd, Robin Stewart, e depois seguimos para Calais, ando à procura dos cemitérios). Confesso-te que dormi mal, sei que esta guerra foi o horror dos horrores, que na região de Ypres morreram dois milhões de homens, que se travaram batalhas sanguinolentas, autênticas carnificinas, e sei o que os portugueses sofreram na última ofensiva alemã, iniciada em 7 de abril e que apanhou o contingente português a 9 de abril, ali acontecendo uma tragédia, diz o guia que foi a maior que os portugueses sofreram depois da batalha de Alcácer Quibir.

Os próprios autores do guia se interrogam como foi possível escolher aquele terreno, uma bacia natural formada por uma planície marítima cheia de canais, com pequenas colinas arborizadas, mas sobretudo pensar que esta rede de canais do rio Yser, cheia de riachos, um verdadeiro sistema hidrográfico incompatível com o modelo de guerra que ocorria noutros sítios, o das trincheiras. Daí a singularidade desta frente, onde os nevoeiros e as chuvas torrenciais descarnaram o solo que está quase ao nível do mar, é uma terra esponjosa, a 30 centímetros da crosta parecem logo lençóis de água, imagina agora a potentíssima artilharia a destruir Ypres e os destacamentos dos Aliados, uma região cheia de quintas que se irão tornar fortins com bunkers cimentados cercados de arame farpado. É neste cenário que em breve iremos visitar que irão ocorrer a violenta ofensiva alemã de 1914, a contraofensiva aliada de 1915, um compasso de espera até 1917, a ofensiva alemã de 1918 e a resposta aliada nas planícies da Flandres, quando a Alemanha já está exangue e pedirá o Armistício.

Estou a sublinhar alguns dos dados destas quatro grandes batalhas que envolveram a Alemanha Imperial que aqui implantou dois exércitos e um sistema impressionante de artilharia, alguns dos melhores canhões da época, do outro lado britânicos, canadianos, neozelandeses, franceses e belgas. Os alemães pretendem chegar até ao Mar do Norte, destroçar os britânicos, o imperador alemão pretende fazer uma entrada solene em Ypres, haverá lutas encarniçadas à volta da saliência de Ypres, recuos e avanços de um lado e do outro, tudo isto entre outubro e novembro de 1914, tudo ficará num impasse. Exasperada pelo seu insucesso, a Alemanha Imperial vai sistematicamente destruindo Ypres com bombas incendiárias. Pelas consultas que fiz, creio que Craig Lloyd irá morrer a 17 de dezembro, o Exército Alemão lançou um violento ataque sobre Langemarck e Bixschoote, foi uma autêntica tempestade de lama, na retirada os belgas inundaram os campos.

Espero não te estar a aborrecer com estes pormenores, é na ofensiva alemã de 1915 que surgem os gazes asfixiantes, tudo começava com uma nuvem de fumo de cor verde, uma brisa ligeira avançava para o campo dos Aliados que caíam asfixiados num sofrimento atroz. Tu já me tinhas feito a referência a um livro escrito por um historiador português, Jaime Cortesão, médico, que descreve o horror de um contingente português a entrar em Lille afetado por esses gases, em carne viva e muitos deles cegos, claro que mais tarde, visto que a vossa presença é posterior à ofensiva aliada de 1917 que, segundo o guia, teve seis fases, a tomada de linhas alemãs entre julho e agosto e a resposta alemã de agosto a setembro, uma resposta dos Aliados entre setembro e outubro e a ofensiva britânica de outubro, novos ataques entre outubro e novembro, a partir daí considera-se que Ypres fica fora de perigo de uma ofensiva brutal dos alemães. O resto tu deves saber perfeitamente. Com o Tratado de Brest-Litovsk, a Rússia é posta fora de combate, a Roménia assina a paz, a Itália está neutralizada, a Alemanha Imperial desloca todos os homens e equipamentos para a frente ocidental, o general Ludendorff, à frente de um número impressionante de divisões pretende atirar os britânicos para o mar e temos a rotura da frente em 9 de abril, demorou semanas a neutralizar estes assaltos alemães que se irão prolongar até 29 de abril. O resto tem a ver com a ofensiva libertadora e o fim da guerra.

Meu adorado, é evidente que tudo mudou desde 1919, Ypres foi reconstruída bem como todas as povoações-mártir, temos museus em locais onde se travaram batalhas, penso que era útil partirmos de Bruxelas para Lille e fazermos a primeira viagem até ao cemitério britânico de Tloegsteert, iríamos depois de Messines até Passchendaele, aqui está sepultado o tio do teu amigo Colin, John Minton, há vários cemitérios alemães, indico-te, pois, quais são, na eventualidade de os quereres visitar. E iríamos de Passchendaele a Ypres, o memorial é impressionante, há todos os dias sem interrupção um cerimonial de homenagem a todos os que caíram em nome da liberdade, já anotei o cemitério ao pé de Ypres onde está sepultado Robin Stewart. Este Guia Michelin é assombroso, mostra-nos ainda Ypres completamente em ruínas, palácios e casas muito antigas reduzidas a escombros, os templos religiosos muito danificados. Tens que me dizer abertamente se achas bem este itinerário para as visitas dos cemitérios de Ypres. A última etapa seria de Poperinghe para Lille, folheio esta obra e interrogo-me como foi possível cerca de 20 anos depois termos voltado às carnificinas e às dezenas de milhões de mortos.

Está praticamente coligido o material referente à Operação Rinoceronte Temível, pelas informações do meu coordenador, trabalho amanhã numa reunião do Comité Económico-Social, provavelmente acabará muito cedo, venho para casa e enviar-te-ei o meu relatório, se me permites usar a expressão. Não me tivesses tu enviado um documento policopiado dessa operação e ter-me-ia passado pela cabeça que era tudo pura ficção. Quem é que pode acreditar que andaste com centenas de homens numa noite escura dentro de quilómetros de arrozais, na mira de obteres surpresa sobre os guerrilheiros? E o que me admira é que foste bem-sucedido, bateste a zona ocupada e retiraste sem um ferido. Vem depressa, sei que é repetitivo, talvez muito cansativo para ti, mas é uma dor insuportável a tua ausência. Bisous, milles, mon amour éternel, Annette.

(continua)

Imagem iconográfica da terceira batalha de Ypres
O interior de uma trincheira, imagem do consagrado filme 1917
Tropas de assalto alemãs emergem de uma espessa nuvem de gás fosgénio estabelecido por forças alemãs que atacam linhas de trincheiras britânicas, na França (1917). A nuvem de gás oferece cobertura para os soldados atacantes.
A chegada da fotografia aos campos de batalha, veja-se o moinho marcado pelos estilhaços das granadas
Museu dos campos da Flandres, cemitério
Batalha de Passchendaele, homenagem aos seus mortos gloriosos
Monumento que não necessita de palavras
Excursão aos campos de batalha da Flandres
____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22355: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (60): A funda que arremessa para o fundo da memória

Sem comentários: