sexta-feira, 20 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2968: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (35): Just Married

Finda a desastrosa Op Anda Cá, fomos enviados para Mansambo,para participar na Fado Hilário, um reconhecimento ao antigo acampamento de Galoiel,região do Corubal.Identifiquei a situação por causa dos lenços: a picada parecia pão ralado,chegámos a Mansambo acastanhados pelo fulvo da laterite. O lenço ajudava a respirar melhor, a manter a atenção a tudo quanto se passava nas bermas, cheias de capim muito alto. Dois picadores sinistraram-se com gravidade à saída de Mansambo.

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 12 de Março de 2008:

Luís, Estou finalmente casado, chegou o momento de todos irem à festa. Já seguiu hoje uma imagem, recordo-te que tens aí uma fotografia minha com a Cristina, há aí mais três da Cristina em Bissau. Seguem ainda hoje mais duas imagens. Mesmo com dois pequenos períodos de férias até Julho, confirmo que tudo farei para termos o segundo livro pronto em 31 de Julho. Um abraço do Mário.

Operação Macaréu à vista - Parte II > Episódio XXXV > TU ÉS A NOIVA MAIS BONITA DO MUNDO

por Beja Santos

(1) A chegada da Cristina, o Bissau velho, a última noite de solteiros


Quando estamos a chegar a Bissalanca, ouve-se o ronco do avião que se atira sobre a pista, segue desabrido até parar com um grito angustiado, depois volta o focinho para a torre do aeroporto e imobiliza-se, dando o último silvo. Lá vamos à desfilada, ninguém quer ver a minha noiva desorientada e só, entre a tropa que chega e a tropa que parte. Arrumado o carro, corremos para a galeria de vidro de onde é possível ver todos os passageiros a descer até ao cimento a escaldar que leva à chegada das bagagens.

A Cristina aparece protegida por uma capeline azul, parece que está a sorrir para os mirones que acenam, depois são aqueles minutos das bagagens, abrem-se as portas e saem magotes de militares, que senhoras e crianças há muito poucas. Avanço desajeitado, confirmo que é mesmo a Cristina que se despediu de mim em 24 de Julho de 1968, parece que a sufoco com abraços e beijos. A Cristina traz o sorriso largo e mais franco do mundo, vê-se que vem exausta, arrumamos tudo no carro e regressamos a casa dos Rosa, seguem-se os cumprimentos, as bebidas frescas, ela dá as primeiras notícias com interesse para aquela plateia a cinco, a Isabel Payne ainda não chegou. Proponho voltar um pouco mais logo, o Emílio parte para o Beng 447, o David para o HM 241, chega a Isabel e a Elzira declara ter coisas a fazer no liceu. Saio dali e vou pôr-me à sombra na Associação Comercial de Bissau, mesmo ao lado do Palácio do Governo, a minha noiva tem que descansar.

Levo comigo Maigret na Escola, um Simenon excepcional, um comissário mítico a escalpelizar a vida de uma aldeia, num ritmo literário perfeito. Tudo começara na Judiciária onde Joseph Gastin, professor em Saint-André-sur-Mer, perto de La Rochelle, lhe solicita uma audiência. Gastin vem pedir ajuda, uma velha pérfida, odiada por todo o povoado, fora assassinada com um tiro de carabina, insinua-se que o mestre-escola é o autor de tal barbaridade. Inicia-se aqui o primeiro de uma série de diálogos prodigiosos: Gastin é professor e secretário da autarquia, recusa-se a fazer favores aos ricos, remediados e pobres, exige que os pais mandem os filhos à escola, uma pessoa que age assim só cria inimizades à volta.

O mestre-escola adianta pormenores sobre o homicídio, Maigret, enquanto o escuta, recorda-se do vinho branco e das ostras daquela região. Toda esta história é tão intrigante que ele não resiste a ir à terra das ostras e mexilhões, nas Charentes. Maigret chega a Saint-André-sur-Mer e instala-se num albergue, começa a coscuvilhar, vai cheirando a atmosfera, esgravata as intrigas, não investiga oficialmente mas acaba sempre por obter resultados, o professor é detido, Maigret fala com todos: o tenente da polícia, o médico, a mulher do mestre-escola, o funileiro, a clientela do bar, os alunos.

A velha odiada tinha diferentes poderes: trabalhara no correio, roubara cartas e conhecera alguns segredos importantes daquele povoado, insultava tudo e todos, ameaçara deserdar a sua sobrinha, enfim, não havia uma razão óbvia para aquele crime, as pistas contraditavam-se, mas Maigret através de sucessivas conversas com alunos de Gastin vai descobrir como um pobre alcoólico, um eterno perdedor, disparara enfurecido devido às denúncias daquela velha perversa e tinha-a atingindo mortalmente num olho. Ninguém como Simenon obtém efeitos destes desencontros do destino mediante interrogatórios que verrumam paixões silenciadas, e ódios adormecidos. Concluído o inquérito, Maigret oferece os resultados da investigação ao tenente da polícia, toma o combóio da noite e regressa a Paris, um pouco triste ou fatigado como aliás sucede sempre que termina os seus inquéritos.

Como uma omeleta com pão, olho para o relógio, são horas de ir buscar a Cristina e fazermos compras. A minha noiva recuperou alguma energia e mostra-me a indumentária que vestirei amanhã na cerimónia do casamento: o fato mais leve que deixara em Lisboa, azul às riscas brancas, uma linda gravata vermelha, uma camisa branca nova. Começa a arrefecer, partimos para o Bissau velho, vamos à ourivesaria, a escolha das alianças não é demorada, a Cristina mostra-se curiosa com aquele comércio estabelecido, entramos na Casa Gouveia, ela está embasbacada com o estanco monumental, ali encontra-se de tudo desde nastro e petromaxes, sementes, pratas, porcelanas dispendiosas ou despretensiosas.

Depois, convido-a a passear junto ao cais, é impossível não se ficar deslumbrado com toda aquela azáfama de pesca e estiva, os caudais de marisco descarregado, as redes que chegam e as que partem, as pequenas embarcações que tracejam as águas em todas as direcções. Ambos estamos cautelosos, escolhemos com suavidade aveludada as perguntas, fugimos à nitroglicerina escondida dos desencontros e das más interpretações, dos choques familiares, do ferro e fogo da correspondência que eu recebi.

Centro-me nos estudos dela, por ora suspensos, pergunto-lhe como vamos viver logo que finde a guerra. Considerei que esta nota introdutória ao nosso futuro tinha um poder apaziguador, travava qualquer viagem às guerras do Sector L1. Falámos de amigos, das suas mensagens de parabéns, a Cristina propôs tratar de arranjar a nossa casa logo que regressasse e dá algumas pistas. Com discrição, relembrei-lhe que tinha vindo com uma guia de marcha para as consultas de neuropsiquiatria e oftalmologia, o David não tinha encontrado outra alternativa para negociar com o comando de Bambadinca, uma semana a descansar numa cama de hospital não fazia mal a ninguém, comentei sardónico. A Cristina calou-se, o facto em si era suficientemente insólito para poder merecer reparo ou aplauso. E seguimos para casa dos Rosa, íamos todos jantar ao Solar do 10, a sopa de ostra parecia-me uma boa surpresa para a Cristina.

Findo o jantar, fomos até ao bar do Quartel General, era noite de cinema à volta da piscina, recordo a soberba interpretação de Rod Steiger, parece que ele fazia de dono de uma casa de penhores, desempenhava magistralmente um carácter sórdido. Despedimo-nos, fiquei proibido de ver a noiva a não ser na igreja, nessa noite fiquei em casa dos Payne, aonde não entrava desde Janeiro, naquela inesquecível semana em que tomei Vesperax por atacado.


(ii) A minha última manhã de solteiro


Levantei-me com um dia soberbo, chega a estar uma ligeira brisa, a luz do sol coa-se pelo arvoredo, repito o passeio da véspera, vou antes de mais fazer algumas leituras no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Ali também está um tempo magnífico, ficaram arrumadas numa mesa algumas obras que pedi para consultar. Retiro e abro o meu caderninho, faço transcrições. Escrevo logo um parágrafo que encontrei num boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, de 1883, referente à Província da Guiné Portuguesa:

“A Guiné é na actualidade um tristíssimo documento da nossa culpável inércia, documento que muito pouco depõe em abono de um povo que se diz civilizado, e que menos ainda pode ilustrar a nossa história colonial”.

Do artigo intitulado “Da Guiné e do seu valor no Império”, de António Pereira Cardoso, publicado no Boletim da Agência Geral das Colónias, de Agosto-Setembro de 1935, encontro finalmente mais um elemento concreto sobre o enigmático Abdul Indjai:

“Em 1912, Teixeira Pinto recrutou quem quis, escolhendo o nativo Abdul Indjai, oriundo do Senegal e que na Guiné se refugiara desde 1891. Ele era um antigo soldado da colónia vizinha de onde desertara depois de ter praticado um crime qualquer. Na nossa Guiné, depois de servir de criado de casas estrangeiras, dedicou-se ao comércio de permuta com o gentio, percorrendo o interior da colónia. Embora pouco escrupuloso na sua maneira de proceder, era dotado de uma coragem, lealdade e valentia que sobejamente desculpavam a sua irregular conduta e ulterior atitude que bem caro lhe custaram”.

É quando me preparo para folhear alguns documentos sobre a campanha contra Abdul Indjai, publicados no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, em Janeiro de 1951, que sinto uma enorme vontade de voltar à luz crua da rua, está confirmado que este meu dia de casamento é ameno, se bem que se sinta uma crescente humidade e subida da temperatura.

Como um autómato, ouvindo a sirene que vem do Pidjiguiti, avanço para aquele porto sempre em azáfama, ponho-me à sombra e acabo a leitura de uma belíssima novela de Somerset Maugham, Um Casamento em Florença, com uma sugestiva capa de Bernardo Marques. Um pouco à semelhança do que eu sentia pela obra de Eurico Veríssimo, nunca entendi o preconceito sobre a obra literária de Maugham, de quem ouvi apreciações pouco lisonjeiras. A verdade é que a sua escrita é directa, melodiosa, atrai o leitor e não lhe dá tréguas.

É assim nesta novela: “A villa ficava no alto de uma colina. Do terraço da frente, descortinava-se uma magnífica vista de Florença. Nas traseiras, havia um velho jardim com escassas flores, mas com lindas árvores, sebes de buxo aparado, caminhos de relva, e uma gruta artificial onde a água caía de uma cornucópia, com um som fresco e argentino”.

Há uma jovem viuva, Mary Panton, fora emprestada esta villa de onde se podia admirar a paisagem toscana, na sua inocência requintada. Fora um casamento infeliz, uma experiência amarga e agora um velho amigo, Edgar Swift, que ia ser nomeado governador de Bengala, vinha pedi-la em casamento. Mary Panton está indecisa, respeita profundamente o amigo mas não o ama. Promete dar-lhe uma resposta em breve, e ela depois parte para Florença onde vai jantar com a princesa San Ferdinando e os seus amigos. É aí que conhece Rowley Flint, um jovem com péssimas credenciais, ainda por cima sem uma figura muito atraente. Rowley corteja Mary Panton, que mantém uma total indiferença perante os seus avanços.

No regresso, e nesse estado de pura indiferença, Mary Panton desabafa abertamente com o jovem pretendente acerca aquele casamento calamitoso que a deixara aliviada, depois de anos de traição e de dissipação do marido. No episódio seguinte, um violinista exilado passeia-se perto da villa, aqui se desencadeia um flirt tumultuoso que culminará com o suicídio do jovem, em perfeito desespero e que se julga ultrajado por Mary Panton. Esta pede a ajuda de Rowley para se desembaraçar do corpo, quando Edgar Swift regressa a Florença para saber a resposta ao seu pedido de casamento, Mary Panton confessa-lhe o que se passou, Swift fica embaraçado, ela aproveita para se libertar do compromisso. Rowley reaparece e começa a conquistar o coração de Mary Panton. Ambos falam de riscos daquele casamento que se perfila, e ele responde-lhe no final da novela: “Minha querida, é para isso que serve a vida: para nos arriscarmos”. Com o sorriso nos lábios, levanto-me e regresso a casa dos Payne. Está na hora de me indumentar e partir com os meus padrinhos para a Catedral de Bissau.

N.º 5 da Colecção Miniatura, tradução de Leonel Vallandro, capa de Bernardo Marques. Hoje é uma raridade para bibliófilos. Somerset Maugham, se dúvidas houvesse, revela nesta escrita o seu talento superior: Não há uma falha no encadeado, os personagens estão perfeitamente caracterizados, a concisão e a simplicidade tomam rapidamente conta do leitor

(iii) A noiva veio atrasada mas muito linda!


Quem passava junto à Catedral, a partir das 18h, sentia imediatamente a atmosfera do casamento. Padrinhos bem ornamentados, noivo conversador e engravatado dirigindo a palavra aos seus convidados, alguns dele informalmente vestidos mas muito festivos: capitão Laranjeira Henriques e mulher, Benjamim Lopes da Costa, Domingos Silva, Teixeira das transmissões (para que conste: António Fernando Ribeiro Teixeira), o Barbosa da boina verde, o ruidoso Vidal Saraiva que a todos surpreendeu por vir fardado, pára um carro e saem cerimoniosos a Inês e o Alexandre Carvalho Neto.

São exactamente 18h30 da tarde quando se ouvem no órgão os acordes iniciais da Toccata e Fuga BWV 565, em ré menor de Johann Sebastian Bach. O organista aprimora-se e vibra, recomeça mas a noiva demora a chegar. Caminha para as 19h quando a noiva se apresenta na companhia do David Payne, logo atrás a Isabel, vem linda num fato que parece atapetado de penas, uma grinalda engastada no penteado, poucas jóias mas exibindo os trabalhos do ourives de Bafatá. A igreja enche-se, o padre Afonso preside a cerimónia. Houve primeiro missa, segue-se a cerimónia.

O fotógrafo recrutado na véspera desloca-se por todos os lados, parece que não há ninguém que não fique no registo. Numa fotografia que ainda não conseguia recuperar, já na sacristia parece que saímos todos da estufa: o penteado da noiva desmancha-se, o semblante do noivo está luzidio, o olhar vago, os padrinhos nitidamente afogueados, até o padre Afonso não escondia o desespero com o calor. Antes, tínhamos vivido momentos tocantes, quando a Cristina levou as suas orquídeas a um altar lateral, aproximaram-se duas senhoras que nos cumprimentaram e arranjaram as flores numa jarra. Alguém comentou: “É a mãe e a irmã do Amílcar Cabral”. Regressámos a casa, mudámos de roupa, partimos para o jantar no “Pelicano”.

(iv) Uma boda em que me endividei por vários anos


Quem viu gente a esvoaçar à nossa volta na igreja e no restaurante deverá ter imaginado que o registo de imagens era impressionante. Não foi, como passo a explicar. Ainda estávamos na sobremesa, aparecia o bolo de noiva, e entrou o fotógrafo congestionado a dizer que toda a reportagem se tinha perdido. Atreveu-se a sugerir que nos voltássemos a vestir, a Cristina ouviu tudo atordoada, para mim, alferes em Missirá e arredores, aceitei a lacuna e pedi ao senhor fotógrafo que não se preocupasse mais. Há fotografias avulsas, a há um filme em super-8 que captou a chegada à igreja da lindíssima noiva, aspectos da cerimónia, depois o jantar, os padrinhos e os amigos todos sorridentes.

Mas houve acontecimentos que não ficaram no filme: o abraço do Cherno, sempre tímido, que comunicou a realização de batuque e baile em nossa homenagem, dois dias depois; a taça de champagne que derramei sob a mulher do capitão Laranjeira Henriques enquanto agradecia os brindes de outros convidados; e a dívida que contraí com o Rui Gamito que insistiu em emprestar-me cerca de cinco mil escudos em dinheiro guineense, escapou-me completamente esta dívida, um dia, talvez em 1976 ou 1977, a Cristina e eu entrámos na cervejaria Portugália para comer o bife com ovo a cavalo, apareceram o Rui Gamito e a mulher, num instante recordei tudo, corri para eles envergonhado, entreguei logo um cheque, desfazendo-me em desculpas.

Foi uma boda lindíssima, eu estava feliz pelos padrinhos, pelos queridos amigos, é certo que um pouco amargurado pela falta das nossas famílias e de todos os meus soldados. Missirá estava ali, representada pelo Teixeira, pelo Barbosa, pelo Domingos e pelo Benjamim, estavam ali os dois médicos de Bambadinca, a quem tanto eu devia, sabia que outros podiam ter participado, mas eu não podia iludir ter vindo a Bissau com uma guia para as consultas de oftalmologia e neuropsiquiatria.

Capa do livro Maigret na Escola. No final da década de 50, Maigret era um detective consagrado e o Brasil editou-o do princípio ao fim. A editora era a Bestseller, de São Paulo, a tradutora a Carla de Almeida, as capas eram semelhantes, só mudava a cor e, obviamente, os títulos. Estas traduções não tiveram grande sucesso entre nós, a Bertrand começou nesse tempo a publicar muitos títulos.

Eu tinha aqui a noiva mais bonita do mundo, era escusado lançar mais penas sobre o meu destino. Aquela guerra reorganizara as nossas vidas, entreguei-me totalmente àquela mulher que soubera preencher ausências, silêncios e muitas incompreensões, de Julho de 1968 até hoje. E procurei amá-la, dividido entre a nossa felicidade pela vida que começava e pela guerra que iria continuar. Começámos o nosso conhecimento, dentro de dias seremos surpreendidos por um massacre no “chão manjaco“, seremos recebidos na caso dos nossos amigos, o Cherno preparou um glorioso batuque, perto do bairro da Ajuda. Vale a pena contar.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 15 de Junho de 2008 Guiné 63/74 - P2945: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (34): Presentes de casamento

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