domingo, 15 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2945: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (34): Presentes de casamento

"A Cristina em Bissau... A Cristina chegou a 15 de Abril [de 1970],vivemos em Bissau cerca de três semanas, incluindo a minha baixa à neuropsiquiatria, no HM241.Passeámos, fomos muito bem acolhidos, jantámos em todos os tasquinhos da Península. Bissau,confirmo por estas fotografias,tinha um cosmopolitismo de guerra,era um crescimento articial de bem-estar em torno da presença das tropas" (BS).


"Abdul Injai é uma das figuras lendárias da pacificação do Oio, na 1ª campanha de Teixeira Pinto. Valente cabo de guerra de origem senegalesa, comandou fulas, futa-fulas e mandingas. Como prémio, foi nomeado régulo do Oio e do Cuor. Terá cometido excessos e confrontado a administração portuguesa. Em 1918 foi demitido de régulo do Cuor, terá pilhado armas da população, recusou-se a prestar contas a Bolama[, capital da colónia], segue-se uma campanha a partir de Farim, em 1919 que levou a sua prisão e partida para o exílio. O capitão-tenente João Quadros chamou-lhe «rebelde ardiloso que não merece quartel».




Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 5 e 10 de Março de 2008:


Luís, junto mais um episódio, se tudo correr bem ainda haverá mais quatro em Março. Seguirão ilustrações referentes a Abdul Indjai e o livro do Ellery Queen. Recordo-te que tens aí muitas imagens de Bissau, tais como a Catedral e a Praça do Império. Uma outra possibilidade era a imagem do reordenamento dos Nhabijões. Estou ansioso que voltes da Guiné e nos contes o que viveste. Um abraço do Mário.



Operação Macaréu à vista > Episódio XXXIV > TOCCATA E FUGA BWV 565, em ré menor, de Johann Sebastian Bach

por Beja Santos
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(i) Os presentes de Bambadinca

Num ápice, vou a Bafatá buscar os presentes destinados à Cristina: uma pulseira e um anel em filigrana de prata que encomendara ao ourives, passei pela casa Teixeira e trouxe La Traviata, cantada por Joan Sutherland, Miti Truccato Pace, Carlo Bergonzi e Robert Merrill, orquestra e coro do Maggio Musicale Fiorentino, conduzida por Sir John Pritchard, e o 5º Concerto de Beethoven, executado por Wilhelm Backhaus, Hans Schmidt-Isserstedt dirige a Filarmónica de Viena.

No regresso a Bambadinca, acompanho aos Nhabijões uma delegação que vem de Bissau com um jornalista que me é apresentado como o príncipe Xisto Bourbon-Parma. Príncipe ou não, é um jovem gentil, traja uma fatiota de caqui, de vez em quando estaca, surpreso, perante uma situação dispara umas fotografias, faz perguntas, toma notas. O visitante, ao que consta, pretende visitar a Guiné, conhecer todos os recantos possíveis e avaliar a fundo o projecto da Guiné Melhor. Terá sido ele quem escolheu o reordenamento dos Nhabijões, nessa altura em franco desenvolvimento, erguem-se dezenas e dezenas de moranças alinhadas substituindo a espontaneidade dos aldeamentos Cau, Bedinca, Imbume, Bulobate, Mancanha e Mandinga.

É um reordenamento ousado, e dispendioso, envolve o batalhão de engenharia com muitos meios, muita negociação com os homens grandes dos Nhabijões, os patrulhamentos ficam a cargo da CCaç 12, da CCS e do Pel Caç Nat 52. A experiência dirá que as gentes de Madina-Belel, bem como as do Baio-Buruntoni não foram dissuadidas, continuaram a vir abastecer-se e a obter informações junto da sede do batalhão. Aliás, quem vinha do mato não precisava de grandes exercícios de estilo: perto do reordenamento, tivessem cambado o Geba, vindo a pé por Samba Silate ou cambado o Udunduma, escondiam as armas, punham um pano a tapar o tronco, a partir daí deixava de haver qualquer interpelação militar, a denúncia civil estava praticamente interdita.

A 14 de Abril [de 1970], reuno pela última vez com o Pires (em breve vai trabalhar na CCS / BCAÇ 2852), com o Cascalheira e com o Ocante, as folhas dos pagamentos estão prontas, já se efectuou a troca do fardamento, para a semana chegarão botas novas, mosquiteiros, bem como cantis e cartucheiras, todo o equipamento estava por um fio.

Fomos ainda ao paiol ver o estado as munições, o Pel Caç Nat 52, foi-me garantido pelo major de operações, durante as duas próximas semanas ficará no posto avançado de Udunduma, fará patrulhamentos no Cossé e Badora, apoiará uma coluna ao Xitole, e haverá outras actividades congéneres, mas operações de grande porte não. O sargento Cascalheira dá-me a sua palavra que não haverá desmandos nem se envolverá em desacatos. Despeço-me de todos, há uma enorme risada para aquele alferes que vai comprar a bajuda a Bissau... Benjamim Lopes da Costa, Domingos Silva, Barbosa e Teixeira irão representar o pelotão no meu casamento. Pedi ao Queirós, com a maior discrição, que ficasse, o diabo tece-as, um apontador de morteiro 81, um de 60 e dos bazuqueiros são especialistas indispensáveis. Cherno marcou férias, vai para Bissau, pois claro, mas Seco e Tunca garantirão o apoio aos morteiros 60.

É quando me vou fardar e acabar de arrumar as minhas coisas que a professora Violete me acena à porta de casa. Convida-me a entrar na sala e na presença de D. Ema, silenciosa mas com um sorriso beatifico, entrega-me um embrulho: ´
- É um presente insignificante. É uma peça de biscuit, apercebi-me que o Sr. alferes gosta destes objectos. Não tenho herdeiros directos, é uma arte europeia que não é aqui muito apreciada. A nossa casa, nos bons tempos, estava aberta aos convidados do administrador Aires. Agora somos duas mulheres sós, ninguém olha para estes objectos. Com sinceridade, faço votos para que tenha uma longa e feliz vida matrimonial.

E entregou-me, pedindo todas as cautelas, um embrulho em papel lustroso com um lindo laçarote, sem deixar de me anunciar:
- Quando vier, vamos continuar com as nossas leituras. Se tiver tempo, não se esqueça de passar pelo Centro de Estudos da Guiné e trazer aqueles boletins de que lhe falei.

Subo para o Unimog, os camaradas do batalhão acenam, é um contentamento sincero que me comove. Mas a emoção maior é o Pel Caç Nat 52 me rodear em circulo fechado, pela primeira vez toda a gente me vem abraçar, a minha mão direita é segura com firmeza por uma outra mão direita, vai apoiar-se no corações de todos os meus soldados. É a maior prova de consideração que um guineense presta a um amigo. Parto contrito, esmagado pela grandeza da hospitalidade destes fulas e mandingas.


(ii) Em Bissau, recebo ordens dos meus padrinhos

De Bissalanca a Brá é um pulo, quem me dá boleia larga-me no interior do BENG 447, atravesso as barracas mague, vejo por toda a parte longos corredores de cimento ensacado, nunca se construiu tanto como agora, entro numa estrutura metálica com tecto de lusalite e vou cumprimentar o meu padrinho. O Emílio Rosa está investido da sua responsabilidade de monitor espiritual e mestre de cerimónias, dá-me as informações mais frescas: hoje durmo lá em casa, amanhã também, a noiva fica amanhã em casa dos Payne, o melhor é aproveitar a tarde de hoje e ir tratar das coisas da alma, o padre Afonso pretende falar comigo, se possível amanhã com os nubentes. Alargo o meu sorriso face à seriedade da declaração e ao anúncio das medidas protocolares.

Entretanto, chega o Rui Gamito, não vem por acaso, quer saber qual o tipo de prenda que nos faz falta, eu não tinha resposta a dar, muito superficialmente a Cristina e eu tínhamos abordado o aluguer da casa a partir do seu regresso, em Maio, estando os electrodomésticos, postos de parte, por razões de transporte, e sendo eu um noivo sui generis, que oferecia à noiva discos como prenda de casamento, era impossível dar uma resposta sobre as nossas necessidades quanto ao recheio da casa. Deixei a minha mala e sacos entregues ao Emílio Rosa e parti de jeep para o centro de Bissau. Apanhei o padre Afonso, ele ia dar catequese, acordámos que conversaria comigo depois da missa das 18h30.



"Capa do romance policial Dez Dias de Mistério, de Ellery Queen. Nº 73 da Colecção Vampiro,tradução de Elisa Lopes Ribeiro, capa de Cândido da Costa Pinto. Indiscutivelmente uma obra-prima do romance policial dos anos 40,inscreve-se no ciclo de Wrightsville,uma imaginária povoação não muito longe de Nova Iorque que será o palco de outros romances imaginosos de Queen. Desta feita, uma mente cruel urde uma vingança que leva à destruição um jovem casal amoroso. Queen trabalha com anagramas e os 10 Mandamentos para chegar à verdade. O desfecho clarificador, no final, é esmagador, os Van Horn desaparecem, depois de 10 dias de mistério" (BS)...


Entrei na 5ª Rep, um dos cafés mais buliçosos de Bissau, àquela hora todos bramavam aos gritos sobre histórias havidas com minas e emboscadas, a um cantinho andei a vasculhar por livros e tirei dois, um policial de Ellery Queen e chamou-me a atenção um livro de Doris Lessing, com um título assombroso, A Erva Canta. O primeiro, intitulado Dez dias de mistério, li-o sofregamente nas minhas duas últimas noites de solteiro. Ellery Queen volta a Wrightsville, desta vez para ajudar Howard Van Horn, que conheceu há dez anos em Paris. Howard é escultor, parece que sofre de amnésia, está num grande sofrimento, Ellery aceita acompanhá-lo até Wrightsville. Começa aqui um policial gigantesco, cheio de anagramas num enredo onde a tragédia grega se insinua. Existe Diedrich Van Horn, o pai de Howard, e Sally, a jovem madrasta de Howard, bem como Wolfert, o tio de Howard e irmão de Diedrich. É à volta deste quarteto que se desenvolve uma tragédia genialmente urdida por uma mente vingativa, em dez dias desenvolve-se um projecto de ódio que gira à volta dos Dez Mandamentos. Ellery Queen em poucos momentos terá alcançado no romance policial uma construção tão poderosa com um desfecho que se vai descodificando como uma espiral de angústia, de modo a que o criminoso vai deixando cair as suas guardas, ficando nu perante a ruína e destruição que provocara de premeio, num projecto diabólico que conduzira dois jovens apaixonados à morte.

Nunca resisto ao fascínio do cais do Pidjiguiti, as fainas do embarque e do desembarque, a estiva, a gritaria dos pescadores, o ilhéu do Rei como pano de fundo. Olho à direita, para o edifício do Comando Naval, sou assaltado pela saudade do comandante Teixeira da Mota.

Regresso à catedral, e depois da missa procuro o padre Afonso. Imprevistamente, sem nenhuma preparação aparente, ajoelho-me e confesso-me. Levanto-me depois da absolvição, chegou a minha vez de reclamar o que venho pedir à Igreja para a minha festa. Existe órgão mas não sei se existe organista. O padre Afonso diz que sim, posso contar com música de órgão. Pergunto se é possível casar ao som da Toccata e Fuga BWV 565, de Johann Sebastian Bach. É uma peça magnificente, é um céu que se rasga, na minha imaginação Deus Todo Poderoso tem os braços abertos para receber os seus filhos, é um triunfo do Juízo Final. Isto na Toccata, e na minha imaginação. A fuga é um passeio por este mundo, um calcorrear até chegar a Deus, obter a Sua misericórdia, ao som das trombetas. Claro, tudo na minha imaginação, depois do piano e do violino nada me sacia mais na música que o órgão, ali encontro sempre imagens, ali alcanço alguma serenidade. Está prometido, casarei ao som da Toccata e Fuga BWV 565.

Prevê-se que a Cristina chegue ao princípio da tarde de amanhã, há algumas compras a fazer, prometo que voltaremos a seguir à missa das 18h30. E vou para casa dos meus padrinhos. Ao jantar, volto a receber directivas: o Emílio e o David acompanhar-me-ão a Bissalanca; a noiva desloca-se para casa dos Payne, a Isabel sairá connosco, nesse dia jantaremos no Solmar, iremos a seguir ao Quartel General tomar uma bebida, depois deitar cedo e cedo erguer, os padrinhos trabalham, os nubentes que passeiem, desfiando as suas promessas e juras de amor.


(iii) Recordações do último passeio de um oficial só


Tenho a manhã do dia 15 por minha conta, a leitura do Ellery Queen está a encher-me as medidas, sinto necessidade de me passear no meio da sublime arte africana e vasculhar papéis. Despeço-me da Elzira e do Emílio, estou de regresso antes da uma da tarde, para seguirmos para Bissalanca. Desço o bairro, em minutos estou na Praça do Império, olho sempre intrigado para aquele monumento que comemora a pacificação da Guiné, em 1936, uma viga colossal de pedra que parece vigiar o Geba ao fundo; e entro no Centro de Estudos, uma casa onde já me sinto bem. Compro os boletins que D. Violete me pediu e começo a cirandar, ocioso, à volta das estantes. Por puro acaso, encontro uma fotografia de Abdul Indjai, em pose de estado, magnífico, quase luxurioso.
A obra intitula-se Memória da Província da Guiné destinada à Exposição Inter-Alliada, de Paris, por Armando Augusto Gonçalves de Moraes e Castro, Bolama, Imprensa Nacional,1925.Encontrei aqui um parágrafo assombroso:«A Guiné é, de facto, a mais rica das nossas Províncias africanas nas possibilidades de produção agrícola.Quem for activo e inteligente,quem tiver na vida o grande sonho de vir a ser rico pelo esforço próprio-aqui encontrará o El-Dorado das suas legítimas ambições.»Esta fotografia mostra-nos o Bissau Velho, confirmo o que anotei nos meus cadernos e escrevi nos aerogramos: é a arquitectura que se encontrava em Mortágua, Mangualde ou Penalva do Castelo. Tenho saudades de me passear no Bissau Velho,onde comprei livros, música e alguma roupa (BS).


Depois sento-me a ler um relatório de 1890, escrito pelo então governador interino Joaquim da Graça Correia e Lança. Passo para o meu caderninho viajante o seguinte: “Ainda recentemente em Geba terminou uma luta que nos convence que não podemos contar com a afeição dos fulas pretos. Mussá Muló praticou tais violências que Ambucu, régulo de Ganadu, os expulsou dos seus territórios. Corrae, irmão de Ambucu, que via em Mussá Muló o verdadeiro senhor do território fula de Geba, sonhava com a independência deste presídio, sob a autoridade daquele régulo. Corrae pretendia declarar guerra ao presídio de Geba e o pretexto que encontrou foi a protecção dada pelo Governo aos mandingas e beafadas, que recentemente tinham fundado duas tabancas em São Belchior e Sambel Nhantá. Na sequência, o chefe de Geba convocou os régulos aliados a pegar em armas contra o rebelde Corrae. Este foi derrotado e deportado para Moçambique”.

Arrumo este relatório e logo me desperta a atenção dois artigos, um sobre a Guiné em 1893 e outro referente ao período 1907-1908, ambos publicados na Revista Militar, em 1946. O tenente-coronel José Augusto Velez. Falando de 1893 escreve que a guarnição militar era constituída por três companhias de polícia, sediadas em Bolama, Bissau e Geba e que havia três postos militares, um no chão dos mandingas, nas margens do Geba, Sambel Nhantá; outro no chão dos beafadas, em Sambel Chior; e mais um outro no chão dos fulas, o de Bula.

É bem curioso o artigo do brigadeiro Nunes da Ponte sobre a Guiné de 1907-1908. Escreve ele, e eu registo metodicamente: “A ilha de Bissau, com 35 km de comprido e 10 de largura não era suficientemente conhecida porque nunca tinha sido explorada. Nem mesmo se sabia ao certo qual a sua população, então avaliada em oito mil homens, distribuídos por grande número de tabancas, das quais as principais eram Intim, Bandim, Safim, Contume e Antula, todas impenetráveis ao branco”. E, mais adiante: “Não havia uma carta regular da ilha. A Praça de São José de Bissau era insignificante como povoação. Era triste, lúgubre, soturno o aspecto daquele pequeno aglomerado populacional. A vista esbarrava-se contra a muralha escura, de traçado rectangular, com um baluarte em cada ângulo, que cercava a Praça em toda a extensão, contornada por fosso largo e profundo”. Olho para o relógio, está na hora de regressar.



Despedi-me da Cristina no cais da Rocha do Conde de Óbidos em 24 de Julho de 1968. Espero vê-la dentro de uma hora. Neste momento nem me ocorre pensar que a lua de mel vai desaguar no internamento da neuropsiquiatria. O importante é que tudo vai mudar, espero em Agosto regressar a Lisboa e aos estudos. Caminho pensativo com a sorte que está reservada aos meus soldados, de quem me irei separar e muito provavelmente perder-lhes o rasto. Vou pensativo, é injusto viver-se, partilhar-se tanto sofrimento em conjunto e depois afastarmo-nos.

E lá vamos os três a conversar em voz alta, a caminho de Bissalanca. O padrinho Emílio não deixa de observar:
- Sê gentil, já não estás na guerra. Que a Cristina não se aperceba da guerra durante este tempo.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 30 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2902: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (33): A correspondência epistolar na véspera do meu casamento

Por razões de viagem ao estrangeiro do editor L.G., que tem esta série a seu cargo, não se publicou, na semana passada, o episódio nº 34. As nossas desculpas ao Mário e aos seus fãs.

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