segunda-feira, 16 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2952: In memoriam (4): O meu amigo Alferes Farinha dos Santos (Luís Dias)




CCAÇ 3491
Dulombi e Galomaro
1971/74




1. Em 16 de Junho de 2008 recebemos uma mensagem do nosso camarada Luís Dias com um texto alusivo ao seu grande amigo Alf Mil Farinha.
Agradecemos a sua deferência, pois este trabalho foi publicado no seu Blogue Histórias da Guiné 71/74 A CCAÇ 3491 - Dulombi no dia 13 deste mesmo mês.

Caro Carlos Vinhal
Aqui estou eu com mais uma estória: a do meu amigo Alferes Farinha, infelizmente já falecido, mas que pela sua maneira de estar, pela forma como lidava com os outros tornou-o, uma figura muito popular na CCAÇ 3491.

Gostaria de a partilhar com os elementos da vossa/nossa imensa Tabanca Grande, caso entendam publicá-la.

Aceite um abraço para si e para todos os tertulianos
Luís Dias
Ex-Alf Mil Inf


Foto de mais uma petiscada de graduados no Dulombi (1972) Da esq para a dir (sentados), Furs: Jara (recentemente falecido), Lourenço, Gonçalves, Machado, Nevado, o Capelão Oliveira, Sarg Gama e Fur Fonseca. Da esq. para a dir. (em pé): Alf Dias, Cap Pires, Fur Carvalho, Alf Farinha e Fur E. Santo.

Foto (e legenda): © Luís Dias (2008). Direitos reservados.

2. O meu amigo Alferes Farinha dos Santos
Por Luís Dias

O meu amigo Alferes Farinha dos Santos, infelizmente falecido em 1999, em Lisboa, devido a doença prolongada, era uma pessoa bastante estimada na CCAÇ 3491. Ainda no Regimento de Infantaria n.º 2, em Abrantes, onde formávamos Batalhão e depois de eu saber, através do meu pai, que o nosso destino era o CTIG (Guiné), o que ninguém desconfiava – todos pensavam que seria para Angola ou quanto muito para Moçambique – o Farinha confidenciou-me que, após ter sabido para onde estávamos mobilizados, pensava em dar o salto para a Dinamarca, por via marítima, e que se eu quisesse podia também ir, que o pai dele organizaria tudo e que nos arranjaria trabalho naquele país.

Confesso que o convite era tentador e depois de sabermos que íamos para as terras da Guiné, para aquele inferno, havia um forte impulso da minha parte em seguir para a frente com a ideia. Contudo, os meus pais referiram-me sempre que se eu fugisse, dificilmente me voltariam a ver… pois não teriam dinheiro para ir ao estrangeiro. A própria namorada daquela altura apoiava a minha ida… mas…este sentimento muito português da saudade, do que iria sentir… fizeram-me recuar e disse ao meu amigo que agradecia a confiança que em mim depositava mas não iria, contudo, apoiava-o se ele decidisse partir.
Ninguém foi… e fomos parar à Guiné.

O Farinha era um daqueles indivíduos super organizados, efectuando listas para tudo, tendo alguma dificuldade em improvisar – uma atitude mais europeísta do que portuguesa. Todos sabemos da nossa larga capacidade para o improviso, o que nos deu muito jeito naquelas quentes terras.

Assim, antes de ir de férias, o Farinha só falava do que teríamos de levar – roupa, medicamentos, etc. e lá estava a lista a ser elaborada, para ser seguida a preceito. Quando regressámos de férias, já com trouxa pronta para embarcar, na revisão à sua lista e na confirmação das coisas a levar… o Farinha, mesmo com tanta organização, tanta lista tinha-se esquecido, vejam lá do quê – das fardas nº3 – um fartote de riso – e lá teve de alguém da família ir de Lisboa a Abrantes, com urgência, para levar o que estava em falta.

Já na Guiné e aquando do IAO no Cumeré, o Farinha surpreendeu tudo e todos quando uma viatura do cmd-chefe do território veio buscá-lo, para o levar, pessoalmente, à presença do General Spínola. Ganda cunha comentávamos nós, mas ele replicava que era apenas um favor que deviam ao seu pai, e que, apesar da possibilidade de ficar ou vir para Bissau, decidira estar com os seus homens, e com a Companhia, obtendo do Cmdt-chefe palavras de encorajamento e de apreço (e estamos certos de que foi mesmo assim. O Farinha poderia ter arranjado um qualquer lugar em Bissau, mas a amizade e responsabilidade pelo seu grupo, pela companhia, prevaleceram).

Uma outra estória do Farinha era a dos seus famosos óculos, que ele comprara com uns aros, que ele pretendia ou imaginava - dizíamos nós - serem praticamente invisíveis, pois como afirmava; se o In visse alguém no mato de óculos, pensava logo tratar-se de pessoa que lia muito, com estudos e portanto era um graduado e, obviamente, um alvo preferencial.
Obrigava-nos, pondo-se a certa distância, a dizer se víamos os óculos ou não, se eram notados… e a malta lá lhe fazia o favor de dizer que não, que não se viam… e ele ficava todo contente.

O mesmo se passava com o seu famoso relógio que, para não brilhar à noite no mato, ele colocara uma tampa no mostrador (por acaso uns anos depois, já na metrópole, passou-se a usar uns relógios parecidos) para não ser detectado pelo brilho… pelo In e nós lá estávamos para apoiar as suas ideias… !!!!

O Farinha era um indivíduo calmo, mas era só aparência, porque pela forma como fumava, sabíamos que fervilhava no seu interior, mas era amigo do seu amigo e foi graças a ele que eu vim ter ao quartel, quando, logo na primeira operação, me deixaram perdido no mato (ver estória do Alf Dias, neste blogue e também no blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné).

A sua perdição eram as bajudas, mas quando fomos para a sede do Batalhão, aí eram as professoras (cabo-verdianas) de Galomaro, pelas quais arriscava uma porrada do comandante… indo pernoitar fora, de quando em vez, e avisando-me de que, em caso de ataque ao quartel, comandasse também o seu GC, porque ele dificilmente conseguiria reentrar nessa altura, mas logo que terminasse a flagelação informasse as sentinelas que ele viria, para não levar um tiro, pois normalmente a seguir a um ataque havia sempre um grupo a sair em perseguição e podia tocar-lhe a ele… e senão estivesse haveria barraca - "Oh Dias! É pá não te esqueças! Eu não quero ser apanhado em falta, ou dado como desertor!".

Felizmente, enquanto ali estivemos, ele pode efectuar as suas escapadelas sem que houvesse crise.

Alinhámos juntos em dezenas de operações (normalmente estávamos agrupados o 1.º GCOMB (Alf Ribeiro, mais tarde o Alf Leite e depois o Fur Batista) com o 4.º GCOMB (Alf Patente) e o 2.º GCOMB (o que eu comandava) com o 3.º GCOMB (comandado pelo Farinha)), e estivemos no primeiro contacto com o In que a Companhia teve (11 de Março de 1972– Paiai Lemenei – Operação Alma Forte).

Na Operação Trampolim Mágico, em Fevereiro de 1972, em que os nossos dois grupos de combate foram reforçar o BART 3873, de Bambadinca, depois de avançarmos pelas matas do Fiofioli, levando connosco as mulheres, crianças e velhos das tabancas controladas pelo In, que fugia à nossa frente, face ao nosso número, tive a única chatisse com o meu amigo.

Durante a noite o In ia lançando granadas de morteiro, para tentar obter uma resposta nossa, a fim de localizar as nossas posições. Ora o Farinha ordenara que tapassem a boca dos bebés com fita adesiva da bolsa de enfermagem. Talvez tivesse razão… porque o barulho repercutia-se na mata e eles podiam dar connosco, mas tive compaixão pelas crianças e pela aflição das mães e tirei a fita da boca dos miúdos – pensei que podiam morrer por dificuldades em respirar e anulei a ordem dada (eu era o oficial mais antigo, embora ele fosse mais velho de idade).

Em Novembro de 1972 fui nomeado para ir frequentar o Curso das Unidades Africanas, em Bolama e S.João. Isto queria normalmente dizer que iria parar a uma unidade africana e portanto deixaria a Companhia, o que me pôs naturalmente triste. A CCAÇ, naquela altura e desde há vários meses só tinha 3 alferes, porque o do primeiro pelotão quando estava de férias na metrópole, em Julho de 1972, deu baixa no Hospital Militar do Porto e não mais voltou.

Então o Farinha engendrou o seguinte; disparava um tiro na perna, por acidente, e teria de ser evacuado e eu, deste modo, já não ia porque só ficava um alferes e ainda como tinha sido estudante de medicina, já sabia, inclusive, o sítio exacto onde dava o tiro de pistola, em que não ficasse ferido com muita gravidade. E dizia isto com grande convicção, até porque sempre passava umas férias em Bissau. Claro que não aceitei… bolas! Era cá uma pinta… este Farinha.

Após a nossa chegada do Ultramar ainda convivi algum tempo com ele e com a sua família, aliás tinha estado com ele numa discoteca junto da Avenida de Roma, na noite de 24 para 25 de Abril de 1974 e foi ele também quem me acordou, por volta das 08h30, para vir para rua porque os militares tinham-se revoltado. Fui ao seu casamento, soube do nascimento da filha e fomos falando de quando em vez, depois, com o passar dos anos, fomos perdendo o contacto, especialmente após o seu divórcio.

Quando em 1999, foi decidido efectuar o 1.º Grande Encontro da nossa companhia que iria ter lugar em Abrantes, 25 anos depois de termos regressado, tentei apurar o seu paradeiro, telefonando para casa dos pais, tendo sido surpreendido pela notícia do seu falecimento dois meses antes, no Hospital de Santa Maria, devido ao seu grande vício – o tabaco (o que aquele malandro fumava…).

Nesse mesmo dia, à noite, falei com a mãe e chorámos juntos a lembrar algumas peripécias dele e da amizade que nos unira.

Cerca de um ano depois, soube através da ex-mulher, que os pais tinham falecido, com a diferença de um mês um do outro. Tinham muito orgulho no filho e sentiram muito a sua perda.

Amigo Farinha, temo-nos lembrado de ti nos nossos encontros, da tua simplicidade, da tua às vezes genuína ingenuidade, da tua amizade, da tua natureza, da tua franqueza, do muito que nos fazias rir, com as tuas estórias…!

Que Deus tenha a tua alma em eterno descanso.
Luís Dias
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Notas de CV

(1) Vd poste de 30 de Maio> Guiné 63/74 - P2901: O Nosso Livro de Visitas (15): Luís Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491 (Dulombi e Galomaro, 1971/74)

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