quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26395: (In)citações (260): Em louvor das nossas "tabancas" (ou tertúlias de antigos combatentes) (Angelino Santos Silva, escritor, natural de Paredes, ex-fur mil 'cmd', 26ª CCmds, Bula, Teixeira Pinto e Bissau, 1970/72)

1. Reprodução, com a devida vénia, de postagem no Facebook da Tabanca Grande, com data de 10 do corrente, às 23:00,  da autoria do nosso camarada Angelino Santos Silva, natural de Recarei, Paredes, escritor, ex-fur mil 'cmd', 26ª CCmds, Bula, Teixeira Pinto e Bissau, 1970/72, e que será o nosso próximo grão-tabanqueiro, passando (finalmente!) a sentar-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 897.

Frequenta, com alguma regularidade, as Tabancas do Norte, com destaque para a Tabanca de Matosinhos,
a Tabanca da Maia, e o Bando do Café Progresso. (E julgamos que também a Tabanca dos Melros,
 em Fânzeres, Gondomar.)


Tertúlias de combatentes
 
por Angelino Santos Silva


A Geração que entre 1961 e 1974/75 demandou por terras de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau para cumprir a Missão de Defender a Pátria, uma vez regressada a casa, criou um evento social até aí desconhecido nos hábitos dos portugueses: pelo menos uma vez por ano encontram-se algures num ponto intermédio do país, de modo a reunirem o maior número de Combatentes e aí confraternizarem, falando das suas vivências em África. 

Desde início criaram o hábito de levarem as esposas, depois filhos e depois netos, incluindo genros e noras. E assim tem sido a saga dos Combatentes ao longo de mais de 50 anos, após regresso definitivo a casa.

Há gente, que estando um pouco afastada destes “Encontros”,  estranha e se interroga, como o tema “Guerra” pode aproximar, direi, apaixonar tanta gente para, ano após ano conversarem alegremente de uma vida onde é suposto ter havido “sangue, suor e lágrimas”. E morte. 

E houve tudo isto. E mais. Houve cansaço, dor, mutilados, febres e outras doenças, especialmente maleitas “apanhadas pelo clima”, quando a cabeça não aguentava a pressão de viver num ambiente de guerra. Mas também houve alegrias, bebedeiras, sorrisos, cantorias e camaradagem. E algo comum a todos, que nos fez esquecer agruras e raivas por vermos um camarada mutilado ou morto ao nosso lado: o facto de termos 22, 23, 24 anos e a força de sermos jovens. Como esquecer, como não falar, como não confraternizar pela vida fora, pelo menos uma vez por ano?

Talvez pelas condições específicas da luta na Guiné-Bissau, os camaradas Combatentes que estiveram nesta Província, ao longo dos anos foram criando grupos que designam por Tabanca. E todos se mantêm ligados, quer pelas redes sociais, quer pelos “Encontros Anuais “ e há mesmo quem se encontre todos os meses e semanas. Eu, que fiz a guerra na Guiné, percebo como é importante para nós.

Das várias Tabancas que conheço e/ou participo, no passado dia 8 estive a confraternizar na Tabanca – O Bando do Café Progresso,  das Caldas à Guiné. Trata-se de um grupo simpático que há alguns anos se reúne religiosamente todos os meses. Como todos os grupos que conheço, este é também um grupo eclético pelo que nas conversas entre camaradas, além da vida da tropa, fala-se de outros temas, de A a Z, conforme o momento.

Desta vez o Ferreira marcou o encontro para a terra – que nela vive – mas esqueceu-se de nos avisar, que só um GPS concebido pela NASA nos levaria lá, sem a ajuda de um forasteiro que encontrássemos pelo caminho. Mas chegamos. E valeu a pena.

Boa comida nos serviram no restaurante. As “entradas” foram diversas e de boa qualidade e as tripas muito bem confecionadas e do agrado de todos. Desta vez a tertúlia teve a presença de algumas senhoras e cavalheiros da terra do Ferreira, gente simpática e alegre. Rosinha, dona do restaurante - porque coincidiu com o seu aniversário - prendou-nos com um belíssimo bolo e brindou-nos com alguns fados. 

Logo a seguir à refeição e antes das cantorias e conversas, foram declamados dois poemas: "Sextante", dito de forma magistral por Ricardo Figueiredo; e "Geração Africana", por mim. Algumas lágrimas surgiram ao canto do olho dos mais sensíveis.

Da próxima que lá for, vou de barco até a eclusa da barragem, subo e vou a correr por lá acima até chegar à Rua da Marroca, local do restaurante da Rosinha.

Um abarço, saúde om ano para todos Combatentes e suas família.
Angelino dos Santos Silva

Combatente na Guerra Colonial Portuguesa na Guiné-Bissau

PS - Deixo-vos com os dois poemas :

SEXTANTE

Tracei a vida a régua e esquadro
como se fora uma quadricula
estudei ângulos, revi a deriva
e lancei as sortes no xadrez da vida

Nas contas usei a tabuada
mexi números, tracei a equação
somei pelos dedos da mão
dividi a sorte pela raiz quadrada
e fui à vida de bota fardada

Em águas turvas naveguei
por mar em tempos navegado
ao chão da selva cheguei
dormi sem cama, comi sem mesa
joguei às escondidas de arma na mão
e nesta complicada equação
pisei a linha e perdi o norte

Quis o sextante livrar-me da morte
voltei à vida sem trunfos na mão
lancei os dados em busca da sorte
ganhei ao xadrez, perdi ao gamão
nos cálculos imperfeitos da equação

Traz-me o sextante nesta aflição
realinho a quadricula a régua e esquadro
cálculo o risco, sou enganado
consulto as linhas da palma da mão
e aguardo as sortes da equação

E a vida se faz, fazendo
umas vezes parada, outras correndo
em matemáticas de contas incertas
umas vezes erradas, outras certas
e as contas desta equação
apenas se fecham nas tábuas de um caixão.


GERAÇÃO AFRICANA

Já lá fui e voltei
Já lá fomos e voltamos.

Percorremos o lado negro da vida
tropeçamos na face má da sorte
e andamos por trilhos e picadas da morte.

Talvez com sorte digo eu
muita sorte dizemos nós
quando em passos cuidados e tremidos
caminhamos sem rumo e sem norte
lutando para segurar a vida
matando para sacudir a morte.

Já lá fui e lutei
Já lá fomos e lutamos
Já lá sorrimos e penamos.

E abrimos a caixa de pandora
e antes de virmos embora
enfrentamos medos e emboscadas
carregamos sonhos e granadas
corremos perigo e aflição
bebemos água da bolanha
comemos colados ao chão
adormecemos de arma na mão
socorremos camaradas feridos
beijamos rostos estendidos
cerramos os punhos cantando
festejamos a vida chorando
deixamos os sonhos esquecidos
zangamo-nos com deus e o diabo
apertamos a raiva mordida na mão
e levamos a cabo heroica missão
deixamos áfrica
e regressamos a casa
mais leves de coração.

Já lá fui e voltei
Já lá fomos e voltamos
E pouco pedimos em troca.

Apenas… respeito e consideração.
Da vida e das mãos se faz uma nação.
Das lágrimas de um povo se faz História.
Da Geração Africana se fará Memória.

Poemas da autoria de Angelino Santos Silva, 
disponíveis na sua página do Facebook)

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, Angelino, vou fazer um poste no blogue com a tua apresentação à Tabanca Grande. De facto, continuava de pé o nosso convite, que vem já de finais de 2023, para integrares o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.... Passas a ser primeiro grão-trabanqueiro do ano de 2025, sentando-te no lugar nº 897, sob a proteção do nosso emblemático poilão (não há tabanca sem poilão...).

Apreciei oo teu escrito sobre as nossas tertúlias e os dois poemas teus, recitados no convívios dos "Bandalhos" (eles gostam mais deste termo do que "tabanqueiros": são originais, plurais e divertidos)...

Historicamente, a Tabanca Grande foi/é a mãe de todas as tabancas... E fez, todos os anos, de 2006 a 2019 (até à pandemia) um encontro nacional...Vamos ver se temos quorum e coragem para retomar a iniciativa... Um alfabravo para tii e também para o Ricardo Figueiredo. Luis

Anónimo disse...

Obg, amigo e camarada Combatente, Luís Graça. Todos, nunca somos demais e agora que somos menos, o teu trabalho na Tabanca Grande assume importância fundamental para a História de Portugal. Cabe-nos manter viva a chama do Combatente, até ao último combate de cada um de nós. Abraço a todos os Combatentes na Guerra Colonial Portuguesa em África. Angelino