quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15277: Os nossos seres, saberes e lazeres (120): Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Retido por um contratempo mais uma dia em Bruxelas, por ali andei no folguedo, nunca escondi a ninguém que temos, a cidade e eu, um enlace amoroso, ofereci-lhe, e continuo a oferecer-lhe, toda a minha curiosidade para a ver e sentir. É um festim para o coração aqui chegar, daqui parto sempre melancólico por não dar a Bruxelas a atenção que ela merece, sabendo que os eurocratas a tratam com desdém. Bati a portas familiares, percorri trajetos mais do que conhecidos, mas o essencial é partilhar toda esta satisfação, este colorido numa arquitetura onde perpassa a pedra escura, convosco.

Um abraço do
Mário


Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (3)

Beja Santos

Dei uma saltada até ao Bozar, nome porque é conhecido o Palácio das Belas Artes, a casa de maior prestígio em eventos artísticos, tanto clássicos, como os concertos da Maria João Pires, aqui se exibiram Ravi Shankar e Ray Charles, há exposições fabulosas, tudo farei para em Outubro vir ver a Europalia Istambul, representações de Constantinopla que datam do século XIX e a Europalia Anatólia, é a grande presença turca, sempre à espera que a União Europeia venha a admitir a Turquia com um melhor estatuto. O edifício está em obras, a sua sala de concertos, uma das mais lindas do mundo, está a receber beneficiações. À entrada deparou-se-me este trabalho artístico intitulado Africonda, de Pascale Marthine Tayou, seguramente uma rival da Joana Vasconcelos, aqui estão toalhas de rosto, máscaras, feno e madeira. É, no mínimo, decorativo. Não se pode entrar na sala de concertos mas não resisto a mostrar uma dessas imagens que correm mundo. Dá gosto estar aqui sentado, mesmo na geral, que me têm deixado boas memórias.

Chama-se Sala Henry Le Boeuf, inaugurada em 1929, daquele palco agradeceram as palmas Serge Prokofiev, Igor Stravinski e Louis Armstrong.

No átrio, bem perto da entrada da sala de concertos, está este monumento dedicado à memória de Henry Le Boeuf, banqueiro, mecenas e melómano que conseguiu financiamento para a sala que tem o seu nome. Não fosse este fotógrafo-amador mais que canhestro, e a escultura ficaria com os dois braços bem visíveis, paciência.

Aqui está uma porta do Bozar, há muitas como esta, enternece-me a simplicidade destas linhas da Arte Deco, cada vez me convence mais que ao nível das artes decorativas do século XX foi a corrente de vanguarda mais emocionante e que deixou mais sequelas. Não fosse caso disso, e não víamos estas manifestações artísticas permanentemente glosadas no mobiliário, na ourivesaria, no vestuário. O génio é isto.


A remexer neste acervo de imagens, aquando da visita à Igreja de Notre Dame de la Chapelle, esqueci-me de vos mostrar o que fundamentalmente aqui me trouxe, o túmulo de Bruegel, a minha admiração por este pintor não tem limites. Sempre que posso vou aos museus nacionais de Belas Artes contemplar uma obra que me encanta, A Queda de Ícaro, espero um dia ter oportunidade de vos dizer porquê. O nosso Bruegel e os seus descendentes deixaram uma obra fenomenal, se um certo quadro caía no goto do príncipe, do bispo ou do rico comerciante, tínhamos logo cópia, é por isso que a Tentação de Santo Antão, no Museu Nacional de Arte Antiga, tem vários gémeos, ainda bem, são obras-primas multiplicadas.


Quem vê fachadas não vê interiores, não há ninguém que não saiba que o que se construiu no gótico, na pedra, praticamente é irreconhecível na estatuária, em toda a imaginária, até nas soluções dos vitrais. Lá dentro, confesso, é um barroco tão pesado, tão pomposo, só apetece dar uma volta, saudar o Bruegel e fotografar o gótico. Bruxelas está cheia de falso gótico, nos tempos áureos em que o rei era dono do Congo financiou estas imitações, algumas metem dó.


O meu dia de turista caminha para o fim, nem me atrevo a dizer o número de imagens que vão para o balde do lixo, nalguns casos, não sei o que é que pensam os outros fotógrafos amadores, são imagens que perdem identidade quando as revisitamos, sabemos que andámos por ali, mas as imagens não coincidem com a emoção, são abatidas ao efetivo da memória. Passo de revés junto da Igreja de S. Nicolau por onde começou este passeio em Bruxelas, no mês de Setembro. A luz é boa para mostrar a componente da arquitetura civil a embeber-se no templo que vem da Idade Média. Confesso que gosto muito.


É fatal como o destino, não me coíbo, seja qual for a estação do ano, em atravessar pela Grand-Place, um dos ícones da cidade, já se disse que os canhões a mando de Luís XIV reduziram esta formosura a pó, mas o homem é obstinado, reconstrói estes pontos-chave da civilização e da cultura. Os alemães destruíram Cracóvia, os norte-americanos e britânicos Dresden, e depois reconstrói-se, perde-se a pátina mas o fundo do passado regressa às praias da história dos povos, é um espelho que não se pode quebrar.


Despeço-me com uma imagem da Galeria Bortier, se o leitor se der ao cuidado de ir catrapiscar no Google encontrará imagens surpreendentes de uma Bélgica que já não existe, esta galeria era um ponto alto para bibliófilos, compradores de imagens, bibelôs e antiguidades. É facto que já passa das 18 horas, ao fundo, do lado direito, está aberto um estabelecimento, onde, se eu entrar, encontrarei um devotado colecionador de obras de René Magrittte, ia mostrar-me com orgulho os cartazes deste sumo-sacerdote do surrealismo. Limito-me a fixar esta imagem, a galeria dá mostras de definhamento, já não há aquela clientela dos séculos XIX e XX, agora quer-se calcorrear as grandes catedrais do consumo… Está aqui um pouco do meu passado, ali ao lado está a Gare Central, ali se chega de trame, comboio ou metro, aproveitava os minutos disponíveis à chegada ou antes de partir para coscuvilhar papel e coisas afins. Agora vou apanhar o metro, o meu dia acabou, muito cedo parto para Antuérpia, e como temos o tempo belga agora chuvisca e o tempo esfria. Amanhã faço-vos um relato de uma cidade magnífica, por ali andaram portugueses à procura de flamengos para povoar a Madeira e os Açores, há ali afinidades históricas que não se pagam nem se apagam.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15249: Os nossos seres, saberes e lazeres (119): Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (2) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: