quarta-feira, 3 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24279: Historiografia da presença portuguesa em África (366): Diogo Gomes na obra de Vitorino Magalhães Godinho (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
Não deixa de ser uma fascínio e provocar uma grande admiração folhear estes documentos de expansão portuguesa coligidos por Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011), obra da sua juventude, este data de 1943, serão publicados ainda 2 volumes, em 1944 e 1956, uma trilogia que é hoje uma raridade bibliográfica. Neste primeiro volume, aquele que se irá consagrar como o maior historiador português dos Descobrimentos procede ao levantamento das fontes que se propõe estudar e comentará um acervo de documentos, hoje reconhecidamente de valor irrefutável, tudo à volta do projeto henriquino. A escolha da Relação de Diogo Gomes tem extrema importância a vários títulos: primeiro, vemos o historiador a cortar cerce em confusões de Diogo Gomes, mostrando haver poucas coincidências entre o seu relato e o de Zurara; segundo, tratando-se a Relação de Diogo Gomes o primeiro escrito na contemporaneidade do Infante D. Henrique, revela os conhecimentos científicos da época, caso de se pensar que o Senegal era o braço ocidental do Nilo, tudo dentro de uma lógica do mundo concebido por Ptolomeu; terceiro, Vitorino Magalhães Godinho deixa bem claro que o Infante D. Henrique tem a alma de um cruzado, de um empreendedor comercial e o desejo de espalhar a fé, as informações que vai obtendo das sucessivas viagens seguramente que lhe terão dado conta que o islamismo já tinha forte difusão, a despeito de um grande espaço destinado à cristianização, junto dos povos animistas. Esta Relação é muito mais do que uma curiosidade, tudo começa em Ceuta e nas ilhas do mar oceano do Ocidente, resolvido o diferendo das Canárias, aposta-se no povoamento da Madeira e dos Açores.

Um abraço do
Mário



Diogo Gomes na obra de Vitorino Magalhães Godinho (1)

Mário Beja Santos

Na sua juventude, aquele que se virá a credenciar como o mais importante historiador dos Descobrimentos portugueses, Vitorino Magalhães Godinho, publica duas obras que serão a alavanca da sua assombrosa investigação, no arranque da década de 1940: A Expansão Quatrocentista Portuguesa e os Documentos Sobre a Expansão Portuguesa. Logo na introdução do Vol. I de Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, o historiador deixa bem claro que sabe ao que vem, pauta-se pela evidência científica, não vai haver fantasia nem batalhas de Ourique nem as invenções da historiografia de Alcobaça, alerta-nos para as fontes do seu estudo: as narrativas (crónicas, relações); fontes diplomáticas (diplomas régios, diplomas emanados de entidades com direitos senhoriais, bulas pontifícias); documentos diversos, obras técnicas (tais como roteiros, regimentos náuticos, tratados cosmográficos e náuticos). E elenca o conjunto de todas estas fontes que pretende compulsar para o seu trabalho.

É exatamente neste vol. I, publicado pela Editorial Gleba em 1943 que Vitorino Magalhães Godinho retoma o estudo da Relação dos Descobrimentos da Guiné, atribuído a Diogo Gomes e que tinha sido publicada em 1900 no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. Que importância se pode conferir a tal relação? É o único documento publicado por um navegador ou explorador contemporâneo do Infante D. Henrique, Diogo Gomes (ou Diogo Gomes de Sintra) está bem identificado como o colaborador do Infante, tendo exercido atividades de responsabilidade no reinado de D. Afonso V. O debate que ainda hoje persiste sobre a autoria da Relação é se teria sido ditada a Martinho de Boémia ou por este redigida e/ou modificada.

Chama logo à atenção a forma como arranca o texto:
“De que modo foi achada a Etiópia austral, a qual se chama Líbia inferior, além da que Ptolomeu descreveu, agora chamada Guiné pelos descobridores portugueses, a qual descoberta referiu Diogo Gomes, almoxarife do Paço de Sintra, a Martinho de Boémia, ínclito cavaleiro alemão (o historiador refere que ao tempo ainda não havia nenhum estudo crítico sobre a Relação de Diogo Gomes). A Relação começa sempre com o início do projeto henriquino, as viagens ao rio do ouro, as expedições conduzidas por Nuno Tristão e António Gonçalves, a procura do caminho para Tombuctu, as viagens de Gonçalo de Sintra e Dinis Dias que foram para além da Ponta da Galé, a construção da fortaleza de Arguim, novas armadas com Gil Eanes, Lançarote de Lagos, Nuno Tristão e Gonçalo Afonso de Sintra, as capturas de gente africana, prosseguem as expedições, já se está no país dos Jalofos, mais adiante passa-se o rio de S. Domingos e o rio Grande (o Geba) “e tivemos ali grandes correntes do mar, e na enchente faz grande ímpeto, o que chama o macaréu, porque então não há âncora que possa aguentar. Por esse motivo outros capitães e homens deles temiam muito, julgando que era assim todo o mar além, e me rogavam que voltasse. E a meio da maré ficou o mar bastante manso, e vieram os mouros da terra nas suas almadias e nos trouxeram as suas mercadorias, a saber: panos de seda ou algodão, dentes de elefante e uma quarta de malagueta em grão. E parámos aí, nem passámos além por causa das correntes do mar. E quando veio a maré cheia aconteceu-nos a nós como antes e assim nos voltámos a donde nos saímos”.

Descreve os palmares, os animais, volta a referir os elefantes e menciona as tocas dos crocodilos. Retornam viagem para o promontório de Cabo Verde, passam obrigatoriamente pelo rio Gâmbia, por ele navegam, vão estabelecendo relações com a população local, há quem os informe de que estavam cristãos em Cantor, falam-lhes de grandes cidades comerciais com abundância de ouro, caravanas de camelos trazendo mercadorias de Cartago ou Tunes, de Fez e do Cairo, Diogo Gomes vai obtendo informações sobre os reis, o comércio, sabe da existência do grande senhor chamado Batimansa, havia também um rei chamado Nomimans bastante hostil aos cristãos, Diogo Gomes mandou-lhe presentes, o rei apresentou-se, falaram de religião e o rei informou que só cria no Deus vivo e uno, queria ser batizado, escreveu uma mensagem ao senhor Infante para que lhe mandasse sacerdote e um fidalgo que o instruísse na fé e que lhe mandasse um açor, ave de caça, porque se admirou muito quando lhe disse que os cristãos traziam na mão uma ave que apanhava as outras aves.

No regresso vai contactando embarcações portuguesas e gente em terra. Tudo contando ao Infante D. Henrique, deu particular atenção ao que lhe dissera o rei Nomimans. “O Infante tudo fez, e mandou para ali o sacerdote parente consanguíneo do cardeal, Abade de Souto da Casa, para que ficasse com aquele rei, e o industriasse na fé.”

E dá-se a morte do Infante em Lagos, em 13 de novembro de 1460, será depois transladado para Santa Maria da Batalha. “Dois anos depois, o senhor rei Afonso armou uma grande caravela, onde me mandou pôr capitão; levei dez cavalos comigo e fui à terra dos Barbacins, ali há dois reis. O rei deu-me poder sobre as margens daquele mar, para que quaisquer caravelas que encontrasse em terra de Guiné fossem sob minha autoridade ou domínio, porque ele sabia que ali estavam caravelas que levavam espadas e outras armas aos mouros, ordenando-me que as tomasse e lhas trouxesse a Portugal (a bula de Eugénio IV de 25 de maio de 1437 concedera autorização aos portugueses para comerciar com os mouros, excetuando, porém, a venda de armamento). Com a ajuda de Deus, em doze dias cheguei a Barbacins”.

E descreve quem encontrou e dá-nos uma noção dos termos dos resgates: os mouros vendiam sete negros por um cavalo. Refere adiante que foi com António da Noli de regresso a Portugal. “E porque a minha caravela era mais veleira que a outra, cheguei eu primeiro a uma daquelas ilhas, onde vi areia branca, e, parecendo-me bom o porto, lancei a âncora e o mesmo fez António. E disse-lhes que queria ser o primeiro a pôr pé em terra, e assim fiz, e nenhum indício de homem vimos aí”. Observa Vitorino Magalhães Godinho que o descobrimento do arquipélago de Cabo Verde era atribuído a Diogo Gomes ou António da Noli ou a Cadamosto. Na Relação a viagem de Diogo Gomes em companhia do genovês é de 1462; ora a viagem do veneziano é de 1456, e documentos oficiais atribuem o descobrimento a António da Noli, cuja viagem deve ter sido anterior à de Cadamosto que ao encontrar quatro das ilhas supôs erradamente ser o seu descobridor. Mesmo admitindo que na Relação há confusão cronológica, e que Diogo Gomes acompanhasse António da Noli, não parecesse de aceitar o tirar ao genovês a glória do descobrimento, pois de contrário certamente o rei não lhe concederia a capitania de Santiago, como o próprio Diogo Gomes informa.

Trata-se de um belíssimo texto e vale a pena acompanhá-lo até ao fim.

(continua)

Estátua de Diogo Gomes na cidade da Praia, Cabo Verde
Estátua de Diogo Gomes na fortaleza de Cacheu
Vitorino Magalhães Godinho na juventude
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24253: Historiografia da presença portuguesa em África (365): António de Cértima, cônsul português em Dacar, anos 1920 (Mário Beja Santos)

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