sexta-feira, 5 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24288: Notas de leitura (1579): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Continuamos à volta de uma narrativa de largo espectro investigacional, elaborada com uma comunicação acessível, bem estruturada, em que o recurso à diacronia permite ir conhecendo a agenda tumultuosa dos últimos meses do Estado Novo. É interessante verificar que ainda há gente saudosista que é capaz de se procurar convencer de que aquela guerra possuía sustentabilidade, o que contraria toda a documentação produzida ao nível das instâncias militares, os recursos humanos estavam por um fio, procurava-se desesperadamente comprar armas e aviões para manter o conflito em África, o ministro das Finanças estava encostado à parede, o aparecimento do livro de Spínola endureceu duas fações dentro do regime; os autores vão elencando os acontecimentos, logo o agravamento em Moçambique, a franqueza com que Bettencourt Rodrigues vai informando o poder político da gravíssima situação militar que vive. Caetano tenta uma porta de saída, pede uma moção favorável sobre a sua política ultramarina à Assembleia Nacional, convoca depois generais e almirantes (a Brigada do Reumático), para anuir à sua política ultramarina, o MFA entretanto organiza-se, há uma precipitação em 16 de março, a revolta das Caldas. Otelo Saraiva de Carvalho aprende com os erros. A operação seguinte será um êxito estrondoso, o Estado Novo cai aparatosamente, já não há ninguém que o defenda.

Um abraço do
Mário



Os últimos meses do Estado Novo, como a guerra colonial fez baquear um regime (2)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", Guerra e Paz, Editores, 2023, por José Matos e Zélia Oliveira, o primeiro investigador em História Militar, a segunda, jornalista e com uma tese de mestrado sobre a crise final do marcelismo. Estão aqui registados numa narrativa que prende o leitor do princípio ao fim os três últimos meses que antecederam o 25 de Abril. Basta ver a bibliografia para perceber que os autores consultaram centenas de documentos de arquivos nacionais e estrangeiros, temos aqui um olhar sobre aquele que terá sido o período mais tumultuoso do marcelismo, aqui se registam os principais ingredientes que conduziram ao seu colapso.

Estamos já em fevereiro de 1974, Costa Gomes regressara de Moçambique, elabora um relatório sobre a situação da província, a guerra agravara-se com a tentativa de expensão da guerrilha para sul, em Cabo Delgado a FRELIMO procurava aliciar as populações Macuas, e no Niassa registava-se também atividade da guerrilha. O potencial relativo de combate passara a ser menos favorável às forças portuguesas, era urgente a revisão das estruturas de comandos, organização das tropas e planos de operações para ganhar eficiência no combate à guerrilha. A cooperação com os regimes brancos da Rodésia e da África do Sul intensificara-se, entretanto, a FRELIMO irá receber o míssil terra-ar Strela, a Força Aérea em Moçambique já estava preparada para a chega do míssil e nenhum avião foi perdido na colónia. Em suma, a situação agravara-se.

E os autores debruçam-se sobre o problema da Guiné onde o míssil terra-ar Strela fez a sua aparição em março de 1973. Perante o abate de aviões e os acontecimentos de Guidage, Guileje e Gadamael, Spínola clama pelo reforço dos meios de intervenção e de armamento. O Chefe de Gabinete de Costa Gomes, o Coronel Ramires de Oliveira, pronuncia-se sobre o documento enviado por Spínola, e é bem claro: “O exame da situação estratégica leva-nos a concluir que se torna necessário rever as finalidades políticas a atingir, sabendo que o nosso potencial militar, com os meios que dispõe, não pode cumprir a missão que até agora lhe foi cometida.” Costa Gomes vai à Guiné, em 8 de junho haverá uma reunião de alto nível, o documento dessa reunião está hoje amplamente divulgado, cabe a Spínola a iniciativa de propor a saída das zonas de fronteira para posições mais recuadas. “Obviamente que este recuo teria consequências na segurança das populações, que ficariam entregues à sua sorte, mas isso era um problema que teria de ser visto no quadro particular de cada etnia e que podia ser resolvido com o recurso às milícias. Costa Gomes deu o seu aval à estratégia delineada, era a forma de economizar forças e evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. É interessante notar que, pouco tempo depois desta reunião, Spínola acabaria por mudar de ideias, quando, a 9 de junho, escreveu ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, discordando do abandono das zonas de fronteira e das respetivas populações, que ficariam sem proteção militar. O retraimento do dispositivo entrava em contradição com os compromissos que teria assumido perante aquelas populações, não lhe restando outra hipótese senão abandonar as funções que desempenhava na Guiné e regressar à metrópole.”

Marcello Caetano reúne com vários ministros e Costa Gomes e pergunta a este se a Guiné era ou não defensável, “ao que o general terá respondido que, se o inimigo não aparecesse na guerra com aviação própria, a Guiné era defensável. Nessa altura, existiam informações do lado português de que o PAIGC tinha um grupo de pilotos a receber instrução na União Soviética, e de que a guerrilha podia vir a dispor de aviões de origem soviética num futuro próximo.” O General Bettencourt Rodrigues é nomeado novo governador e comandante-chefe, duas companhias que iam para Angola (CCAÇ 4641 e CCAV 8452) foram reforçar as tropas na Guiné.

Os milhões de contos que a África do Sul prometia emprestar para cobrir grande parte das necessidades em armamento já estavam a ser discutidas. Os autores dão depois nota dos acontecimentos da declaração unilateral da independência, do reacendimento de ataques fronteiriços e do bom-sucesso da Operação Neve Gelada, realizada pelo batalhão de comandos africanos. Não obstante, os bombardeamentos a Canquelifá com morteiros 120 irão continuar, Bethencourt Rodrigues chegou a equacionar o abandono desta posição, tal como Buruntuma. Numa nota enviada em 20 de abril, “Bettencourt Rodrigues expressa profunda preocupação pelas informações que tem do uso de viaturas blindadas num ataque noturno a Bedanda e das consequências que a evolução do potencial de combate do PAIGC podia ter junto das guarnições de fronteira. A utilização de viaturas blindadas pelo PAIGC preocupava as forças portuguesas há vários meses, havendo informações de que estas viaturas tinham sido desembarcadas no porto de Conacri em princípios de 1974. Costa Gomes efetuava diligências junto do Chefe-de-Estado-Maior do Exército espanhol para o fornecimento de minas anticarro.”

A documentação de Bettencourt Rodrigues não ilude que o inimigo dispunha de iniciativa tática, melhor equipamento militar e um grande apoio logístico, isto enquanto Silva Cunha tentava, com o recurso do dinheiro sul-africano, dar seguimento às negociações com os franceses para a compra do sistema de mísseis Crotale, além da compra dos caças Mirage, e havia também a intenção de adquirir radares que permitissem uma boa cobertura do território guineense, para além da aquisição de morteiros de 120 mm. O Secretário-de-Estado da Aeronáutica pedia novos meios aéreos, todos contavam com o dinheiro sul-africano. A narrativa prossegue com o nascimento do MFA, o programa político começará a ser definido por uma reunião em Cascais, a 5 de março; um quadro de subversão alastra em várias unidades militares, mas também nas universidades.

Caetano entende que se deve dirigir à Assembleia Nacional, pretende que se vote uma moção que não deixei quaisquer dúvidas acerca da política ultramarina que ele prossegue. Em diferentes níveis, cresce a ebulição, no próprio regime constituem-se blocos, nas Forças Armadas procura-se avaliar o impacto do livro de Spínola, o MFA clarifica posições, escolhe para chefe do movimento Costa Gomes, internamente constituem-se comissões, na militar, sobressaem os nomes de Garcia dos Santos, Otelo Saraiva de Carvalho e Manuel Monge, na política Melo Antunes, Vítor Alves e Vasco Lourenço. A imprensa internacional, devido aos seus correspondentes em Lisboa, não deixa escapar as movimentações que aparentemente estão todas ligadas ao aparecimento de um livro chamado Portugal e o Futuro. A vigilância sobe as movimentações militares leva a que o ministro do Exército mande proceder a transferências compulsivas.

Na segunda semana de março de 1974, Caetano parece muito confiante com a sua política ultramarina, seguem-se reuniões com o Presidente da República, este insiste na demissão de Costa Gomes e Spínola, Caetano pede para não continuar na chefia do governo, escreve carta a Thomaz, este recebe-o ainda nesse mesmo dia, dir-lhe-á “já é tarde para qualquer deles abandonar o seu cargo, temos de ir até ao fim". E é nesse contexto que Caetano forja uma audiência a oficiais de todas as Forças Armadas a que só se recusarão estar presentes Costa Gomes, Spínola e Tierrno Bagulho, evento que ficará para a História com o nome de Brigada do Reumático. Forja-se uma remodelação do governo. E é neste ambiente que vai ter lugar a revolta das Caldas.


José Matos
Zélia Oliveira
Avião C-130
Avião P-3-Orion (Imagem Wikipédia)
Marcello Caetano recebe a Brigada do Reumático
Uma imagem esclarecedora do fim do regime

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 1 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24274: Notas de leitura (1577): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24276: Notas de leitura (1578). Lançamento do livro do ten gen ref Garcia Leandro, "O Balanço de Uma Geração" (Lisboa, Gradiva, 2023, 360 pp.)...Vídeo com a recensão crítica do Presidente da República

2 comentários:

Valdemar Silva disse...

"...isto enquanto Silva Cunha tentava, com o recurso do dinheiro sul-africano, dar seguimento às negociações com os franceses para a compra do sistema de mísseis Crotale....".

Afinal houve ou não houve financiamento sul-africano, a tentativa parece que não faltou.

Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

A última fotografia é de Alfredo Cunha e terá sido feita no gabinete de Marcelo Caetano, mais propriamente num vestíbulo, talvez.

A penúltima fotografia é muito conhecida, mas não consegui identificar o seu autor nem a sua origem. Parece ser reproduzida de um jornal, mas não me dei ao trabalho de procurar saber qual, porque não é da minha conta. Não sou editor do blog.