segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22937: Notas de leitura (1413): A utopia de André Álvares d’Almada, Revista Sintidus, nº. 1, de 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
Saudemos o aparecimento da revista Sintidus, aqui se junta a referência para ter acesso ao seu conteúdo total. Privilegiou-se a chamada de atenção para o artigo de Raul Mendes Fernandes para as motivações narrativas de André Alvares d'Almada e o seu "Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde", aquele que será o mais belo documento de apresentação da Senegâmbia, no final do século XVI. Este marinheiro e mercador, Cavaleiro da Ordem de Cristo sonhava que Filipe II apoiasse o povoamento da região com gente vinda de Cabo Verde e lança o seu canto da sereia: afastamento das nações rivais, aproveitamento das riquezas, criação de uma nova classe de proprietários rurais naquele ponto da África Ocidental. As coisas não correram de feição, mas a narrativa é um dos documentos literários mais empolgantes de tudo quanto se escreveu na língua portuguesa.

Um abraço do
Mário



A utopia de André Álvares d’Almada

Beja Santos

A revista "Sintidus", cujo primeiro número saiu em 2018, é uma nova publicação científica na Guiné-Bissau e vale a pena conhecer-lhe os objetivos e ter acesso à versão online para aquilatar da sua importância (ver SINTIDUS).

Chamou-me a atenção o artigo “A viagem do olhar de André Alvares d’Almada”, da responsabilidade do investigador Raul Mendes Fernandes (ramefes@gmail.com). Com base na antropologia social, o cientista disseca as motivações que levaram, em 1594, o Capitão Álvares d’Almada, natural de Santiago, a publicar o "Tratado Breve dos Rios da Guiné do Cabo Verde" desde os Rios de Sanagá até aos Baixos de St.ª Ana; de todas as Nações dos Negros que há na dita Costa, e dos seus Costumes, Armas, Trajes, Juramentos e Guerras. É consensualmente a mais luminosa das narrativas daquilo que se convencionou chamar literatura de viagens do século XVI, é uma obra com mensagem, bem intencional, e aquele viajante, marinheiro, soldado, quase etnógrafo e mercador do século XVI é uma verdadeira prestação de contas endereçada a Filipe II de Espanha e I de Portugal. Homem do seu tempo, Almada pretende convencer o monarca que só há vantagens em povoar uma parte do território da África Ocidental que dá pelo nome dos Rios de Guiné do Cabo Verde com os habitantes das ilhas de Santiago e Fogo, e daí o acervo informativo luxuriante, uma quase monografia escrita em viagem sobre reinos, conflitos e guerras, modos de vida, organização da produção e comércio nos ditos Rios da Guiné.

Almada sabe que o Brasil está a ser colonizado e que Madrid tem os olhos postos nas minas de Potosi, esta “carta de sedução” tem um móbil que é a sugestão implícita de que se pode construir uma zona intermediária entre a Índia e Portugal e utilizar a força de trabalho dos escravos africanos, os moradores de Santiago seriam os agentes da civilização e do negócio, eles iriam jogar um papel estratégico entre a Europa, a Índia e o Brasil. Pretende demonstrar que o povoamento até à Serra Leoa acrescentaria fé e fazenda, embargaria o caminho à concorrência estrangeira. Isto na lógica de que ainda vigorava a divisão do mundo decorrente do tratado de Tordesilhas. Recorde-se que este homem nascido em Santiago era um militar que se distinguira na defesa desta ilha contra ataques dos corsários, recebera o título de Cavaleiro da Ordem de Cristo. Almada sonha com a cristandade e vê nesta região que também pode ser conhecida por Senegâmbia um processo de deslocação atlântica da economia oeste-africana, região onde o fluxo de escravos está no auge, segundo os números que o investigador adianta, a região designada por Senegâmbia e Ilhas Atlânticas era a maior fornecedora de escravos do continente africano, ao longo do século XVI terá fornecido aproximadamente 150 mil escravos. Este tráfico conhecerá profundas alterações com o crescimento de outros fornecedores como a Costa de Ouro, Baía de Benim e Baía do Biafra. Diz o autor que Álvares d’Almada testemunha as fortes ligações que os mercadores Mandingas estabeleciam com o comércio de longa distância no interior do continente, fala no Mandimança, o imperador negro a quem todos os negros da Guiné dão obediência, descreve ao pormenor os mercadores, as suas trocas comerciais e os mercados ao longo do Rio Gâmbia. Descrições cuidadas, como a que faz dos mercadores Mandingas:
“Este ouro, que aqui trazem, vem o mais dele em pó, e dele em peças e muito fino. Estes mercadores são bem entendidos, assim nos pesos como no mais. Trazem balanças mui subtis, marcetadas de prata, e cordões de retrós. Trazem os escritórios pequenos de couro cru, sem fechos, e nas gavetas trazem os pesos, que são de latão da feição de dados; e o marco é como uma maçã de espada. Trazem este ouro em canos de penas grossas de aves, e em ossos de gatos, escondido tudo em atilhos metidos pelos vestidos. Desta maneira, porque passam por muitos reinos, e são roubados muitas vezes, sem embargo de trazerem as cáfilas capitães e gente de guarda; e há cáfila que traz mais de mil frecheiros”.

É uma leitura sem rival, parece que regista tudo, ou é espião ou máquina registadora: como se vestem os mercadores mouros, as armas, as mercadorias dos circuitos de troca e atinge o seu apuro quando pretende imprimir à sua narrativa a configuração de que aquele mundo é paraíso terreal, e situa-se aqui aquele que será porventura o seu parágrafo emblemático:
“Esta terra é tão abundante de tudo que nada lhe falta; abastada de muitos mantimentos, muito fresca de ribeiras de água, laranjeiras, cidreiras, canas-de-açúcar, muitos palmares, muita madeira excelente. Povoando-se viria a ser de maior trato que o Brasil, porque no Brasil não há mais do que açúcar, e o pau, e algodão; nesta terra há algodão e o pau que há no Brasil, e marfim, cera, ouro, âmbar, malagueta, e podem-se fazer muitos engenhos de açúcar, há ferro, muita madeira para os engenhos, e escravos para eles”.

Segue-se a descrição dos reinos, de quem neles vive, não se esquece da navegabilidade dos rios, que há água potável, mas também animais, o que constitui a farmacopeia africana.

Como refere em conclusão o autor, a utopia de Almada construiu-se a partir da crença de que o Brasil era um sonho incerto, Sua Majestade bem podia apostar na ocupação territorial daquela ditosa Senegâmbia, assim afastaria as nações rivais, podia contar com segurança na economia esclavagista e criar uma nova classe de proprietários rurais.

A “carta de sedução” ficou para a História como documento inexcedível como observação e apresentação a um monarca de um novo mundo próspero ao seu alcance. Só que a utopia foi frustrada, o mundo deu outras voltas. E escreve o investigador: “O testemunho que nos deixou Almada revela de forma percursora uma nova visão sobre os homens e a natureza que passaram a figurar na sua narrativa como recursos a serem explorados. Neste sentido Almada é um autor moderno”.

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22927: Notas de leitura (1412): “África Dentro”, por Maria João Avillez; Texto Editores, 2010 (2) (Mário Beja Santos)

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