terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22939: Blogoterapia (300): O tempo passa, mas as suas marcas ficam (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493)

1. Mais um artigo do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) para a nossa série Blogoterapia, enviado ao nosso Blogue em mensagem de 24 de Janeiro de 2022:


O tempo passa, mas as suas marcas ficam

Foi no dia 24 de janeiro do ano de 1972, faz hoje meio século, que fiz a minha primeira viagem de avião rumo à Guiné, depois de na condição de militar ter passado um ano menos um dia na metrópole.

As voltas a que a vida tantas vezes nos obriga!
Na madrugada do dia 22 fui levar a minha esposa à maternidade do hospital da Nazaré, onde naquela manhã nasceu o meu filho. À tarde fui lá vê-los… sem me ter despedido… na manhã do dia seguinte apanhei o autocarro que me levou até Lisboa, onde ao início da tarde eu me fui apresentar no DGA, enquanto eles continuavam na maternidade.

No dia 24, a manhã ainda vinha longe quando o avião em que viajei levantou voo do aeroporto militar de Figo Maduro. Depois de uma viagem lenta… chegamos a Cabo Verde.
Em Lisboa, quando embarcamos, a temperatura era de cerca de quatro graus, quando chegamos ao aeroporto dos Espargos, na Ilha do Sal, estavam trinta.
Depois de lá termos estado durante algum tempo, não muito, voltamos a levantar voo para concluir a viagem até ao aeroporto de Bissalanca, na Guiné. Se eu já ia completamente baralhado… quando lá cheguei fiquei ainda mais, o que talvez fosse normal… Para mim tudo aquilo era novo, começando pela minha primeira viagem de avião (logo a caminho da guerra…) onde seguia também uma senhora envergando traje militar, soube depois que era uma enfermeira paraquedista, alguém disse que ela estava a regressar depois de ter ido acompanhar um ferido.
Eu desconhecia que existiam enfermeiras nas forças armadas…

Desde que saí do aeroporto de Bissalanca até chegar aos Adidos, para mim, era como se tudo fosse um mundo novo… tal era o excesso da minha ignorância em relação aquilo com que ali estava a ser confrontado.
Depois de ter passado quase um mês nos Adidos, uma nova viagem de avião, agora até Bafatá, e nova surpresa, o Dacota em que viajei tinha os bancos em madeira, iguais aos das viaturas. Depois de termos chegado a Bafatá, eu e mais alguns que tinham viajado comigo, seguimos um novo rumo - agora em viatura para Bambadinca, a que se seguiu mais uma viagem no mesmo dia até Mansambo, onde, junto com os velhinhos, já se encontrava a Companhia que eu fui integrar.

Daquilo que fiz ontem, algumas dessas coisas, hoje, eu já não tenho a certeza. Mas estas continuam a manter-se vivas na minha mente. Ainda que há já muito tempo as tenha arrumado… só as visito quando eu entendo necessário.
Para alguns dos mais novos, e mesmo de outros menos velhos, talvez pensem que nós éramos tontos, ou atrasados, por termos seguido por aqueles trilhos… Mas os tempos eram outros. Aconteceu a alguns que estavam no estrangeiro, quando chegava o seu tempo regressavam ao nosso país para cumprir o serviço militar. Não porque gostassem de lutar contra alguém, muito menos sabendo que iam para a guerra. Mas sim porque gostavam da sua terra e dos seus.

Alguns tinham saído clandestinamente do nosso país, no início da guerra, e gostavam de poder regressar para estar algum tempo junto da família e dos amigos, mas não podiam… Porque se voltassem, alguém que não desejavam se podia encontrar com eles.

Era assim naquele tempo!...

António Eduardo Ferreira

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22427: Blogoterapia (299): Ter muita gente por perto não significa sempre estar-se acompanhado (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493)

6 comentários:

Valdemar Silva disse...

Ferreira esta é das tais que nunca esquecemos.
O teu filho a nascer no dia em que foste para a guerra na Guiné.
Ele deve dizer 'nasci na véspera do meu pai ir para a guerra'.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

MR disse...

FERREIRA, não consigo imaginar a enormidade do turbilhão de sentimentos opressores que te tomaram de assalto há 50 anos, originado na implacável cegueira do "DEVER".
É dolosamente comovente!
UM ABRAÇO SOLIDÁRIO
Miguel Rocha

Hélder Valério disse...

Caro Eduardo, relatas assim, de modo como que passando por cima da profundidade dos sentimentos, referindo apenas a tua perplexidade, a tua estranheza, para as coisas que te iam acontecendo, de modo sucessivo.
Cada uma das coisas/situações que indicas são suscetíveis de maior aprofundamento.
Por exemplo, a maternidade (melhor dizendo, a paternidade) em simultâneo com a partida é uma coisa, uma situação, perfeitamente capaz de baralhar sentimentos e marcar para a vida.
A viagem de avião (a primeira...) com os contrastes do clima na partida, na paragem e na chegada ao destino, que de modo geral já tem sido muito retratado aqui no Blogue, certamente que também contribuíram bastante para o aumento da ansiedade e do incómodo.
Dizes que não sabias "que havia enfermeiras nas forças armadas". Não tem mal. Muita gente também não, embora houvesse algumas referências a isso, mas, de modo geral, havia muita falta de conhecimento de tudo: clima, fauna, flora, modo como as ações militares se desenrolavam, etc.
Também, quase em jeito de desculpa para a nossa geração, fazes a consideração de que "Para alguns dos mais novos, e mesmo de outros menos velhos, talvez pensem que nós éramos tontos, ou atrasados, por termos seguido por aqueles trilhos… ". Não te penalizes, amigo, não podemos alterar o que cada um possa pensar (e lá terá o seu direito a isso) mas se é bem verdade que os "tempos eram outros", as circunstâncias também, e isso de "tontos ou atrasados" é coisa para rejeitar fortemente.

Um forte abraço.
Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Quantos camaradas, como tu, foram para a "guerra" (... não, não era nenhuma viagem turística!), acabando de ser pais, ou deixando a esposa grávida... E alguns, não sabemos quantos, já não voltaram para conhecer o filho ou a filha que nasceu e cresceu...Como o meu camarada da CCAÇ 12, o Manuel da Costa Soares, que morreu numa mina A/C no fatídico dia 13 de janeiro de 1971, em Nhabijões, no mesmo sector que o teu, o que te calhou em sorte, Sector L1(Bambadinca).

Gosto de ler os teus textos. Aparece mais vezes. O blogue precisa de autores como tu, que sabem pôr emoção no que escrevem. Um alfabravo, Luis

Antº Rosinha disse...

Apesar de historicamente muitos portugueses terem saído para correr mundo, apenas a nossa geração saíu por 24 meses, e se teve a sorte de regressar, pode contar que viveu um pouco do que foram 500 anos da vida de muitos portugueses.

Conheço alguns (muitos) que foram para a França para não serem convocados para a tropa, e falando com os filhos deles, criados ou nascidos na França, porque não vêm para Portugal, dizem eles, isto aqui em Portugal é "tudo muito complicado".

Será que seria essa a razão (inconsciente), de "país complicado" que levou que o pessoal se adaptasse àqueles cús judas durante 500 anos?

Eduardo Ferreira, foi um pesadelo para a maioria aquela partida, mas não tenhamos dúvida, para muitos da nossa geração foi aquela aventura, até com imenso entusiasmo.

Claro que quem sofria mais era quem ficava.





Jorge Araujo disse...

Meu caro Eduardo Ferreira, camarada do BART 3873 e da "irmã gémea" da minha CART 3494.
Obrigado por nos ter trazido mais este texto pleno de sentimentos.

Adiciono ao comentário do camarada Luís Graça, o caso do malogrado Manuel da Rocha Bento (Fur Mil Bento, da '3494'), natural de Galveias, Ponte de Sor, que, por infelicidade para si e para os seus familiares, não conheceu a filha recém-nascida, e esta não conheceu o pai, por este ter falecido em combate na Guiné, mais propriamente na estrada Xime-Bambadinca, no local designado por «Ponta Coli», em 22 de Abril de 1972, episódio já aqui abordado por diversas vezes.

É que a "sorte" e o "azar" não se consegue adivinhar... Acontece!

Um grande abraço,
Jorge Araújo.